No pensamento de Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires. A riqueza dos povos indígenas

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08 Outubro 2019

"O pensamento do Papa Francisco sobre as populações indígenas evoluiu bastante em seus anos de pontificado. Mas foram os anos de seu serviço pastoral como arcebispo de Buenos Aires que amadureceram seu pensamento sobre o assunto", escreve Pe. Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 06-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O interesse do Papa Francisco pelas populações indígenas foi se aprofundando com o tempo. E é verdade para ele o que é verdade em geral: "Hoje temos mais consciência do que significa a riqueza dos povos indígenas, precisamente na época em que, tanto sob o aspecto político como cultural, cada vez mais se quer anulá-los através da globalização, concebida como uma ‘esfera’, ou seja, uma globalização na qual tudo é uniformizado". O Papa Francisco proferiu essas palavras em resposta a uma pergunta feito a ele por um jesuíta durante a 36ª Congregação Geral da Ordem, em novembro de 2016.

O Papa tem no coração de cada discurso e, eu acrescentaria, em geral, no coração de sua visão da Igreja e do mundo, o "povo". O homem não se entende como "pessoa" fora de um "povo". A Igreja também é um povo, o "povo fiel de Deus em caminho". Para Francisco, "povo" não é apenas "sociedade": é uma categoria histórica e mítica e isso não pode ser explicado apenas de maneira "lógica". É necessário entender a "história" e o "mito" de um povo.

Em um longo texto sobre a religiosidade popular como inculturação da fé de 19 de janeiro de 2008, Monsenhor Bergoglio focalizava o tema das populações indígenas, relembrando as conferências continentais dos bispos da América Latina e do Caribe. Nessas conferências - começando em Medellín - a Igreja na América Latina começava com aquele encontro "para tentar entender-se e descobrir sua própria missão".

Monsenhor Bergoglio identifica nas populações indígenas um ponto de partida necessário. Essa afirmação simples contém um desafio aberto que responde a uma pergunta: como uma Igreja pode entender a si mesma? De onde deve começar? Monsenhor Bergoglio escreve que em Medellín “se redescobria uma igreja escondida, composta por reminiscências de mais de dois mil e seiscentos povos nativos, com suas inúmeras línguas e tradições”. Depois, na Conferência de Santo Domingo, se discutiu sobre a unidade e a pluralidade de culturas indígenas, afro-americanas e mestiças e foram dados passos à frente para reconhecer o continente latino-americano como um "continente multiétnico e pluricultural", com uma "visão de mundo de cada povo". Não apenas é aceita a pluralidade cultural e social, mas se reconhece nela a "ação ininterrupta de Deus".

Gostaria de assinalar aqui quatro desafios importantes - entre os muitos - que o então monsenhor Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, tinha bastante claro e abordou no sentido de aprofundar uma compreensão dos povos indígenas e de sua riqueza. Os textos citados podem ser encontrados na obra Nei tuoi occhi è la mia parola. Omelie e discorsi di Buenos Aires 1999-2013 (Nos seus olhos está a minha palavra. Homilias e discursos de Buenos Aires 1999-2013, em tradução livre), Milão, Rizzoli, 2016.

1. Para além de um quadro individualista: do inconsciente ao mito. Em uma conferência da XIII Jornada Arquidiocesana da Pastoral Social (16 de outubro de 2010), Monsenhor Bergoglio afirmava: “Na vida de hoje está presente uma tendência cada vez mais acentuada de exaltar o indivíduo. É a primazia do indivíduo e seus direitos sobre a dimensão que vê o homem como um ser em relação". A visão individualista pode ser traçada "no individualismo possessivo do liberalismo oitocentista". Mas, escreve monsenhor Bergoglio, pode "também responder às visões psicológicas do início do século XX que absolutizaram o inconsciente como fonte de explicação e destino dos homens". Portanto, é interessante e importante distinguir entre “mito” e “inconsciente”, pois, quando se fala de populações indígenas, a distinção é muito importante. E marca a superação radical da tentação individualista. Em particular, para monsenhor Bergoglio, fazer parte de um povo significa participar de uma "identidade" comum, mas também ter um senso de pertencimento a um "destino" coletivo. Portanto, o povo não é apenas o seu presente, mas também é um futuro. Falar de populações indígenas significa não só falar de "origens", mas também de tensão ao futuro. O povo é um processo, é um "tornar-se povo", um "trabalho lento", o Papa define.

2. O ritmo do tempo se forma com base no espírito. Um segundo desafio é bem ilustrado em uma intervenção do Monsenhor Bergoglio na plenária da Pontifícia Comissão para a América Latina, realizada em Roma em 18 de janeiro de 2007. Aqui ele afirma outro ponto significativo que pode gerar interessantes desafios éticos: “Toda cultura tem seu centro no tempo, que cadencia a vida e as suas expansões e concentrações nas estações, no clima e organizando o trabalho, as festas e o descanso em harmonia com as crenças de cada povo". O tempo está no coração de uma cultura. O ritmo que emana de uma concepção de tempo é o coração pulsante e o ritmo de vida de uma população indígena. Aliás, monsenhor Bergoglio define-a como parte da "busca de um centro" e é espiritual no sentido de que "inclui todos os elementos humanos, corpo e alma, pessoa e sociedade, coisas e valores, momentos e história [...] tudo". Portanto, toda população transforma não apenas o espaço, mas também o tempo, dando-lhe forma "de acordo com seu espírito, ao que deseja, ao que lembra e com ao que projeta". A gestão do tempo é expressão espiritual de um povo que toca sua memória e seu futuro.

3. A visão global "Deus-homem-mundo". Um terceiro desafio é descrito no texto já mencionado de 19 de janeiro de 2008. Aqui Monsenhor Bergoglio afirma que a evangelização das populações indígenas deve ser inculturada, ou seja, é necessário respeitar suas "expressões culturais, aprendendo sua visão do mundo que da globalidade Deus-homem se torna uma só coisa que impregna as relações humanas, espirituais e transcendentes”. Desta fazem parte ritmos, vestuário, música, alimentos, mas também - por exemplo - seus rituais de cura e também "as contribuições do âmbito rural e a influência das camadas sociais urbanas marginalizadas que se reúnem para conservar seus valores". A visão de mundo própria das populações indígenas fala de uma globalidade "deus-homem-mundo" que nós perdemos.

4. A importância da integração. Os povos indígenas não são massas anônimas e passivas, mas "sujeito ativo", "sujeito cultural". Suas culturas são um desafio positivo para a compreensão do mundo. "A América Latina entra na história do mundo quinhentos anos atrás, trazendo a riqueza das populações indígenas e a contribuição emprestada da Europa", disse em uma conferência em 16 de outubro de 2010. Essa riqueza, portanto, entra no processo de estabelecer um identidade popular mais ampla. A pergunta, portanto, é: como as populações indígenas com sua riqueza podem entrar na construção de uma identidade compartilhada? A palavra-chave aqui é "integração", um dos temas-chave do pontificado de Francisco. O desafio da integração das populações indígenas em um quadro nacional ou continental é determinante.

O pensamento do Papa Francisco sobre as populações indígenas evoluiu bastante em seus anos de pontificado. Mas foram os anos de seu serviço pastoral como arcebispo de Buenos Aires que amadureceram seu pensamento sobre o assunto. Com a Laudato si' e a frutos. Se é importante refletir sobre o pensamento de Francisco, precisamente na véspera do sínodo, é útil destacar os quatro elementos que são fruto da reflexão do Pontífice nos seus anos argentinos: a superação do individualismo, a importância do ritmo do tempo para as culturas indígenas, a visão integrada e interconectada de "Deus-homem-mundo”, a integração das culturas indígenas em vista de uma identidade compartilhada.

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