02 Outubro 2019
Se abolíssemos a sociedade do trabalho, escreveria mais e aprenderia um idioma. No momento, faz correções para um jornal impresso e é colunista de El Salto. Naiara Puertas, autora de Al menos tienes trabajo [Antipersona], busca observar e dar nome às armadilhas da linguagem neotrabalhista. No último sábado, apresentou o ensaio na Mostra del Llibre Anarquista de Castelló, e nos dias 10 e 25 de outubro estará em Leganés e Madri, respectivamente.
A entrevista é de Gessamí Forner, publicada por El Salto, 30-09-2019. A tradução é do Cepat.
Seu livro gira em torno da ideia de que o trabalho nos despolitiza. É a contradição do século XXI?
O trabalho não nos despolitiza, torna-nos muito conscientes de que adotar uma ação política até o fim significa pactuar. Você sempre precisa ceder. E isso se volta contra você e é desagradável.
Mas, sempre foi assim, não é? Uma greve, uma negociação. Talvez antes havia mais consciência da classe trabalhadora?
Isso é falar em termos eurocêntricos, e acredito que as mudanças no trabalho virão de lugares que não são da Europa e da América do Norte. Há uma base de inspiração muito importante que nos chega dos Trinta Gloriosos, com a qual se almejava parecer mais com a burguesia, que a abolir. Se estamos nesse ponto agora, é porque naquela época foi decidido se integrar à sociedade do trabalho, com suas negociações e outras, em vez de escapar do trabalho.
E agora?
Como não ocorreu essa guinada em seu momento, agora temos problemas que passam por situações nas quais os mineiros da última mina de carvão ativa na Alemanha se sentem agredidos pela marcha ambiental que pede o seu fechamento. São os pratos quebrados que os movimentos sociais e operários precisam pagar por ter se integrado à sociedade do trabalho. Se queremos uma sociedade com menos poluição, precisamos ir contra as fábricas de automóveis, que sabemos que nos enfumaçam e adulteram provas para evitar níveis positivos de poluição. E com isso está sendo dito aos trabalhadores que deixem sua vida adulta de lado para fazer outra coisa que ninguém sabe o que é. E isso a ninguém menos que os trabalhadores mineiros e automobilísticos, não para qualquer um.
E essa coisa que não sabemos o que é, é a abolição do trabalho?
Teríamos vimes muito bons se começássemos a abolir o trabalho. Contudo, tenho a sensação, ao menos entre as pessoas da minha idade, de que quando não conseguimos um emprego, queremos fazer valer nossos conhecimentos, seja como for, dentro da sociedade do trabalho, porque nos ensinaram que ser adulto é isso.
E o dinheiro?
Todos nós precisamos do dinheiro para viver. Outra coisa é que o dinheiro para viver venha da relação capital-trabalho, que são duas coisas diferentes.
Precisamos de sindicatos ou um forte movimento social para obter uma renda básica universal?
Sempre há um duplo debate: renda básica universal ou trabalho assegurado. A renda básica pode ser implementada de tantas maneiras que você pode obter uma renda básica muito neoliberal, com a qual não se mexa em nenhum esquema de produção. Você obtém uma paz social de base porque as pessoas têm uma cobertura mínima, mas Mark Zuckerberg e Jeff Bezos continuam juntando bilhões e colocando fábricas onde querem. E continuam poluindo para continuar gerando suas atividades. Uma renda básica que não interfira na produção, não me agrada.
Enquanto isso, o Estado quer destinar as poucas políticas públicas para o setor privado. Em seu livro, aparece a figura que você descreve como o “cidadão poupador”, que se orgulha de ter saúde privada e uma escola semipública.
Aqui, no País Basco, com a educação concertada, vemos isso muito forte: penso que sou progressista, mas levo o filho para um colégio semipúblico para que ele não fique com os imigrantes.
Talvez a culpa de tudo isso seja da neolinguagem, que nos aburguesa.
O ingresso nas classes médias é uma coação que se assumiu com entusiasmo. E não só foi assumida com entusiasmo, como também parece ruim conceber outros tipos de situações que podem favorecer mais pessoas. É esse “quero estar um degrau acima do possível, por isso tenho meu seguro privado e levo os filhos para o colégio semipúblico’. Se desejam upgradear um pouquinho, buscam seu nicho de obediência e que os de cima derramem um pouco do que lhes podem dar.
Você se pergunta no livro “se o lado bom está em cuidar do próprio pai” e acrescenta que este tipo de pergunta “estabelece o limite do político”. Até onde devemos levar esses limites?
Quando penso em trabalhos feminizados, penso que esses são os trabalhos de verdade. O trabalho de cuidar é o verdadeiro trabalho. O digno é cuidar de seu pai, o resto é trabalho inventado.
Quando fala sobre o pai que vê a luz e começa a cuidar de seus filhos, destaca que vampiriza os cuidados.
Aplaude-se o pai pelo que há muito tempo deveria ter feito. Ao passo que à mãe, se não cuida um dia, o mundo entra em colapso e é criticada.
Você diz que “andamos na ponta dos pés com o tempo, que o trabalho nos tira da família e de outras coisas e que enganamos a nós mesmos”. O ecofeminismo é o futuro?
Tomara. Se deseja que todos nós vivamos, sim. O paradigma de trabalhar oito horas precisa mudar. O que não tenho certeza é se algumas pessoas, que são as que mais mandam, querem que todos permaneçamos vivos ou tanto faz para elas. Penso que é necessário tratar o adversário político como uma pessoa que, quando pode, acaba com você. Não em sentido figurado, mas literal.
Apresenta como exemplo de falsa meritocracia um jovem de uma boa família e uma jovem de uma família normal. Ele triunfa meritocraticamente, ela não. Mais uma vez, a linguagem neotrabalhista. Como podemos tomar consciência dessa mentira?
Quando ouço alguém que diz que se esforçou muito, se fricciono um pouco, vejo que não é assim. As coisas boas que me aconteceram foram porque estava passando por elas ou porque tive sorte.
Por que você escreveu este livro?
Para me provar, para ver se era capaz de terminá-lo. E porque o que eu havia escrito no blog e em minha colaboração com El Salto me fez pensar que certas questões merecem um desenvolvimento mais compassado.
O que aconteceria se você não tivesse trabalho?
Já estive sem trabalho. E permaneci muito tempo trabalhando sozinha no verão e passei um tempo muito ruim. Há algumas necessidades muito urgentes que estão aí. O seguro-desemprego está desaparecendo e se está legislando com falsos autônomos e bolsistas, de tal modo que ou você trabalha ou depende de sua família. Se agora não tivesse trabalho, como pude economizar, e isso nem todos podem, escreveria mais.
Qual o preço que se paga por não ser muito dependente do trabalho?
Eu não tenho uma casa como minha propriedade, nem carro, nem família sob a minha responsabilidade. É difícil se inserir no círculo da normalidade, se é o que você deseja, embora veja muitas pessoas normais com as quais não gostaria de me parecer. Você consegue enxergar muitas coisas quando deixa esse imaginário da vida padrão, mas em outros momentos se sente muito sozinha.
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“O trabalho de cuidar é o verdadeiro trabalho, o resto é trabalho inventado”. Entrevista com Naiara Puertas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU