04 Setembro 2019
Maria Márcia Elpídia de Melo tirou o filho do assentamento Terra Nossa devido às ameaças que sofre por denunciar atividades ilegais de fazendeiros, venda de lotes e assassinatos
A reportagem é de Ciro Barros, publicada por Agência Pública, 03-09-2019.
Maria Márcia Elpídia de Melo não vê o filho há quatro meses. A presidente da Associação dos Produtores e Produtoras Rurais Nova Vitória, uma das cinco associações de assentados do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, assentamento de reforma agrária situado entre as áreas rurais de Novo Progresso e Altamira (PA), disse à Agência Pública que se considera em cárcere privado.
Mais conhecida pelo segundo nome, Márcia vem sofrendo ameaças constantes por causa de denúncias que fez contra a exploração ilegal de recursos naturais (sobretudo madeira e ouro), venda de lotes e os assassinatos no interior do assentamento. Por causa do conflito, diagnosticado em trabalho técnico do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Márcia afirma ter medo de sair sozinha do lote que ocupa no assentamento que também foi o mais incendiado do Pará, em agosto.
O que mais dói, segundo ela, é ficar longe de seu filho, Elmiro, a quem retirou de seu convívio por questões de segurança. Ele vivia em um dos lotes do assentamento e no início deste ano foi espancado e ameaçado de morte na Vila Isol, uma comunidade próxima ao PDS.
Maria Márcia, agricultora ameaçada e presidente da Associação do Produtores e Produtoras Rurais Nova Vitória | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Segundo ela, durante o episódio os agressores fizeram referência à atuação militante de Márcia no interior do Terra Nossa. “Eu sei que eu vou morrer. Eu me conformo com a minha morte. Eu só não quero que matem meu filho”, diz emocionada. “Eu sei onde ele tá, mas eu não vou visitar com muito medo de alguém me seguir e matar ele. Não deixo ele chegar muito próximo de mim pra evitar”, afirma.
O ano de 2018 foi um dos mais sangrentos da história do assentamento Terra Nossa. Desde 2011, foram pelo menos cinco assassinatos relacionados a conflitos agrários no interior do PDS, segundo levantamento feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) – quatro deles de assentados do PDS e um de um funcionário de uma das fazendas do PDS. Três deles ocorreram em 2018, quando foram mortos a tiros no interior de suas casas os irmãos Romar e Ricardo Roglin, assentados do local, e um funcionário de uma fazenda identificado apenas como Pedro pelos assentados ouvidos pela reportagem. Mas o número de mortes pode ser ainda maior: os agricultores falam em nove mortes desde que chegaram ao local, em 2007. Segundo eles, todos os companheiros de assentamento mortos estavam sofrendo assédios de grileiros e madeireiros em seus lotes e foram mortos após oferecer resistência. “Aqui, os que vão pra cima morrem, desaparecem. E eles inventam qualquer história pra justificar. Aí vai a polícia lá e coloca que bebeu cachaça, brigou, morreu e acabou”, diz Márcia.
Ela diz não confiar nas instituições locais, sobretudo as polícias Civil e Militar e até mesmo o Ibama de Novo Progresso – município que ficou conhecido pelo episódio do “dia do fogo” e mais próximo ao assentamento. “Eles são uma quadrilha organizada que está em todo lugar. Tem até políticos influentes no meio”, afirma a assentada sobre seus ameaçadores.
Outra assentada que pediu para não se identificar denunciou um episódio quando foi registrar um boletim de ocorrência na delegacia da Polícia Civil de Novo Progresso. Quando chegou, ela diz, deu de cara com um fazendeiro que detém terras no interior do PDS sentado na cadeira do delegado. “Eu estava indo na delegacia para denunciar o cara e encontro na cadeira do delegado. O que você faz numa situação dessas?”, questiona. A reportagem tentou contato por telefone com a Polícia Civil para confirmar o episódio, mas as ligações não foram atendidas.
Documento que declara de utilidade pública a Associação que preside | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Em 2014, a associação presidida por Márcia foi a única das cinco associações de assentados a não assinar um acordo firmado entre representantes do Incra investigados pelo MPF, assentados e fazendeiros – há 142 fazendas no interior do PDS Terra Nossa – para reduzir a área do assentamento. Ela afirma ter sido visitada diversas vezes por fazendeiros, que a ameaçaram pedindo que interrompesse as atividades da associação, pois ela estava atrapalhando os planos de redução do assentamento. “Eles falaram que, se eu não parasse com aquilo, eu ia morrer”, revela Márcia.
Antônio Marcos Lacerda, o vice-presidente da associação de Márcia, também relatou à reportagem estar sob ameaça. Segundo ele, as ameaças estão relacionadas à atuação que mantém na Associação Nova Vitória. “Eu estava num comércio [dentro do assentamento] e o cara pediu pra falar em particular comigo. Eu disse que não ia. Aí ele falou: ‘Pois eu tô ganhando é pra te matar’. Aí eu falei: ‘Pois então você vai me matar aqui mesmo, porque eu não vou sair’”, relembra. O pistoleiro buscou então uma espingarda, mas foi interpelado pelo genro de Antônio, que conseguiu tomar a arma e evitar o pior. “Foi por causa de negócio de terra também”, revela.
O agricultor Antônio Marcos Lacerda também foi ameaçado | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Toras de madeira deixadas na vicinal que dá acesso ao lote de Márcia. Ela diz que a intenção é criminalizá-la | Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Além das três mortes citadas anteriormente, em 2018 houve o desaparecimento do assentado Antônio Rodrigues dos Santos, conhecido como “Bigode”. Ele sumiu no dia 15 de maio do ano passado, quando saiu para trabalhar em uma fazenda. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha o conflito no assentamento, já trata o caso como assassinato. Ele vinha denunciando desmatamento ilegal dentro de seu lote pelos grileiros locais e, segundo relatos dos assentados, estava em vias de ir denunciar um esquema de venda de lotes e grilagem no assentamento na Polícia Federal de Santarém (PA) quando desapareceu.
Segundo a CPT, tanto o desaparecimento de Antônio quanto as demais mortes estão longe de serem esclarecidas e os responsáveis por elas, punidos. A entidade oficiou o Ministério Público Estadual e a Polícia Civil de Novo Progresso e constatou que, em sua maioria, as investigações dos casos não foram muito além da comunicação dos crimes nos boletins de ocorrência; praticamente não ocorreram diligências in loco ou oitivas de testemunhas relacionadas às mortes na região.
Antônio, conhecido como “Bigode”, está desaparecido
desde o dia 15 de maio de 2018 | Foto: Arquivo Pessoal
Os assentados ouvidos pela reportagem acreditam que a morte de Aluísio Sampaio, ex-presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar (Sintraf) de Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira localizado às margens da BR-163, também tem relação com o conflito no Terra Nossa. Pouco antes de morrer, Aluísio (conhecido como “Alenquer”, publicou um vídeo em que dizia que, caso algo ocorresse com ele, um dos responsáveis seria um ex-sindicalista e assentado do Terra Nossa, Raimundo Barros Cardoso, conhecido como “Dico”. Além disso, Júlio Cezar Dal Magro, filho de Bianor Dal Magro, fazendeiro que detém áreas no interior do Terra Nossa, chegou a ser preso temporariamente, acusado de ser um dos mandantes da morte de Alenquer. Ele foi denunciado pelo Ministério Público pelo episódio, mas responde à acusação em liberdade.
Quando deu entrevista à Pública em agosto, Márcia se disse abandonada. A reportagem teve acesso a inúmeras reuniões, denúncias, boletins de ocorrência e termos de declaração formalizados por ela nos mais diversos órgãos. Mas a situação de abandono persiste. Ela está atualmente em atendimento no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDH), após um pedido formal dela e da CPT, feito em fevereiro deste ano. A organização vem oficiando também órgãos como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Ministério Público Federal e o próprio Incra a respeito das ameaças que a assentada vem sofrendo. Márcia se diz agradecida pelo apoio da CPT, a única organização que a acompanha continuamente, mas ressente-se da falta de empenho do Estado em solucionar a situação de conflito no assentamento. “Estamos à mercê da sorte, num tremendo abandono”, resume.
A Pública tentou contato por e-mail e telefone com todos os nomes e empresas citados na reportagem, mas não obteve resposta até a publicação.
A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal.
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“Eu sei que vou morrer. Só não quero que matem meu filho”, diz liderança no Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU