14 Agosto 2019
Na segunda parte da reportagem especial, o choque entre a cultura, os conhecimentos tradicionais diante do sistema de saúde que se pretende universalizado e a história da menina que teve a vida salva pelo bahsese (terapia ancestral). Na imagem, está Luciene Lima Barreto.
Luciene Lima Barreto. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
A reportagem é de Fábio Zuker, publicada por Amazônia Real, 08-08-2019.
O surgimento do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi`i, em Manaus, começa com uma história traumática para a família do antropólogo João Paulo Lima Barreto, idealizador do projeto. Apesar do convívio diário que tivemos em Pari-Cachoeira e na comunidade São Domingos Sávio com Luciene Lima Barreto, ela se recusou a contar sobre o acidente que quase tirou a sua vida. Consentiu, porém, que seu pai, José Maria Barreto (também chamado de Ahkuto, em Tukano), a contasse à reportagem da Amazônia Real.
Em uma tarde de dezembro de 2009, enquanto colhia camarões no igarapé de São Domingos, na região do Alto Rio Negro, Luciene foi mordida no pé direito por uma cobra jararaca. A garota, então com 11 anos, foi levada a Pari-Cachoeira, onde recebeu o soro-antiofídico disponibilizado pelo Pelotão de Fronteira do Exército e iniciou um tratamento com os remédios tradicionais utilizados pelos Tukano. Com receio de piora de seu quadro, a paciente foi transferida a São Gabriel da Cachoeira. Passaram um dia na lancha. Na cidade, segundo José Maria, “por conta da presença de mulheres menstruadas, ela começou a piorar”. Como outros povos indígenas, os Tukano entendem que a menstruação e o fluxo de sangue trazem perigos ao irromper a ordem do mundo. Necessitam de tratamento especial para ser controlados, muitas vezes com o resguardo da mulher.
Luciene chegou em São Gabriel da Cachoeira no mesmo dia em que chegou um menino do povo Baniwa, também picado por uma cobra. Ele não resistiu e morreu no dia seguinte. Segundo José Maria, os médicos então entraram em desespero, e ela foi enviada para Manaus, onde esperavam que a menina fosse ser melhor atendida. Ela entrou direto na emergência do Hospital Dr. João Lúcio Pereira Machado, e José Maria ficou horas na espera, sem contato com a filha. Ao acordar, Luciene disse ao pai: “Cortaram todo o meu pé”. Ela relatou os procedimentos médicos e suplicou. “Já não quero mais viver. Me deixe morrer, papai. Eu não quero viver sem pé”.
O kumu José Maria Barreto (Ahkuto, em Tukano). (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
José Maria relatou que os médicos do hospital acreditavam que caso não amputassem o pé cheio de veneno de jararaca, Luciene morreria em três dias. Entretanto, para os Kumuã que a visitaram, o diagnóstico era outro. Seu Ovídio, pai de João Paulo Lima Barreto e de José Maria, nesta época já morando em Manaus, assegurou que mediante o bahsese (a terapia ancestral) e remédios tradicionais Luciene logo estaria recuperada.
Os médicos do Hospital João Lúcio impediram os kumuã de chegarem perto da garota. Afirmaram que eram eles, os doutores, que haviam estudado oito anos para estar ali. “Queríamos tirá-la do hospital, mas os médicos não deixaram. Disseram que eu era índio, que era do interior, e que a menina iria morrer na rua”, afirma José Maria. Os indígenas questionavam por que podiam entrar no hospital um pastor ou um padre, mas não um pajé. Ofendidos, contrariados e sentindo-se desrespeitados, membros da família Barreto acionaram o Ministério Público Federal para que o hospital não amputasse a perna de Luciene e que permitissem retirá-la do hospital. Depois de quatro dias, conseguiram liberá-la. Nesse intervalo, Ovídio e João Paulo haviam conseguido levar água benzida para dentro do hospital. “Foi isso que deu força a ela”, garante José Maria.
A história toda repercutiu na imprensa de Manaus e nacional. Enquanto Luciene recebia o tratamento na casa de apoio aos indígenas do Alto Rio Negro, existente em Manaus, o médico Remerson Monteiro, do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), ligado à Universidade Federal do Amazonas (Ufam), procurou os parentes de Luciene. “Ele foi mais compreensivo, e permitiu a entrada do pajé e dos nossos remédios”, lembra José Maria. Além de Seu Ovídio, outros dois kumuã Tukano participaram do processo de cura, junto aos médicos do hospital. Segundo a repórter Elaíze Farias, que na época cobriu o caso para o jornal A Crítica e hoje é cofundadora da Amazônia Real, os próprios médicos ficaram impressionados com a evolução do quadro clínico de Luciene. Quando ingressaram no hospital universitário, a estimativa era que ela permanecesse seis meses internada. Luciene foi liberada após 45 dias. Até hoje, ela tem dificuldades para caminhar, e possui uma enorme cicatriz na perna direita.
Desde então, João Paulo Lima Barreto, irmão de José Maria e tio de Luciene, hoje com 21 anos, têm se dedicado a pensar e propor outras formas de contato entre o complexo sistema de conhecimento indígenas e a medicina ocidental.
João Paulo (no meio, à esquerda, de preto) e Domingos Barreto (de boné branco e camisa verde), no rio Tiquié. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
“A vida dos indígenas na cidade é péssima”, reflete Domingos Borges Barreto, parente de João Paulo. “Trabalhei na Funai por dez anos e pude compreender essa realidade. Eles estão na margem de morrer de fome. Falta tudo: comida, dignidade. Um lamaçal de coisas ruins: violência, racismo, discriminação”. Um dos maiores problemas que atinge a população indígena de São Gabriel da Cachoeira são os altos níveis de suicídio, que já estiveram entre os mais elevados do país.
Domingos conta que participou ativamente do movimento indígena, muitas vezes entrando em conflito com sua função como servidor público. “Antes de tudo, eu sou índio. E o que estava errado, eu falava mesmo”, afirma. Para ele, três motivos principais levam os indígenas a saírem de suas comunidades e irem para a cidade, fenômeno que acredita ter se acentuado nos últimos 30 anos: a educação dos filhos, tratamentos complexos de saúde e rachas na comunidade.
Em uma reunião de pais e mestres, Domingos questionou sobre o lugar dos conhecimentos tradicionais no ensino escolar, e vários pais indígenas reclamaram: “Vixe, mais uma vez vem ele falar de conhecimento tradicional, de bahsese”. Na prática, diz ele, “tudo aquilo que é local, é invisibilizado. Tudo o que a gente tenta ensinar em casa a escola elimina”. Ele acredita que o manejo de alimentos nas aldeias mudou. Os mais velhos não transmitem todo o conhecimento para os mais jovens, que acham que tudo que vem de fora é melhor e vai resolver as dificuldades. “Não existe índio pobre, desigual. Existe cultura, território e autonomia. Ter medicina, conhecimento tradicional, comida, os mais velhos tinham”. Domingos se preocupa com a forma pela qual os conhecimentos indígenas devem ser ensinados, não na teoria mas no dia a dia, com os mais velhos, passando o dia junto aos mais jovens. “Em sala de aula fica meio esquisito”, conclui.
Logo que chegamos em São Gabriel da Cachoeira pudemos presenciar um ritual dos indígenas Tuyuka. Ele ocorreu no contexto de abertura da assembleia que duraria três dias, organizada pela Associação Indígena da Etnia Tuyuka Moradores de São Gabriel da Cachoeira. Cipriano Marques Lima, presidente da associação, e reconhecido como um grande kumu, nos contou, em meio às danças, cantos e usos de substâncias rituais como o caxiri (fermentado de macaxeira) e paricá (rapé), que a associação foi criada para a recuperação das festas rituais e das pajelanças.
Ritual Tuyuka, na sede da Associação Indígena da Etnia Tuyuka Moradores de São Gabriel da Cachoeira. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Voltamos depois de alguns dias para a sede da associação Tuyuka, onde vive um extenso núcleo familiar, que se mudou para a cidade ao longo das últimas três décadas, vindos da fronteira com a Colômbia. A formação de kumuã e a transmissão de conhecimentos na cidade é objeto de reflexão constante. “Não se passa o conhecimento sentando junto. Não é que ele vai contar. Ele até conta, mas como história. É através do bahsese que se abre mente para esses conhecimentos”, argumenta Angelina Marques Lima, indígena Tuyuka. Fundamental também é o uso que o kumu faz do carpi (cipó a partir do qual se faz um outro tipo de rapé), “utilizado para fazer efeito, para a pessoa pegar mais o conhecimento”, segundo Angelina.
No táxi que pegamos logo após a festa, tentei conversar com o motorista a respeito da sua percepção sobre os indígenas na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Ele, branco, não hesitou em responder: ”Aí a manguaça é forte, né? São todos uns bêbados”.
O preconceito e a violência que persistem hoje não deixam de possuir uma relação com a visão de mundo dos missionários no início do século passado acerca do modo de vida indígena, quanto ao julgamento acerca de sua vida ritual a partir de padrões europeus.
O kumu Ovídio Barreto – Kumarõ (Foto: Fábio Zuker)
Em meados de março deste ano, acompanhei a oficina conduzida por João Paulo na Casai de Manaus, junto a indígenas vindos de todas as partes do Estado. O kumu Ovídio atende em uma sala especial apenas dele, onde realiza diagnósticos e preenche prontuários dos pacientes. Suas receitas indicam a realização de bahsese, defumação ou uso de plantas medicinais específicas, ao lado de tratamentos propostos pelos médicos com formação ocidental. Durante a oficina, a proposta de realizar compartilhamento de conhecimentos de cura e de plantas medicinais de diferentes povos foi bem recebida. A ideia básica do grupo é que o sistema de saúde passe, pouco a pouco, a se abrir para técnicas de curas indígenas. Isso já aconteceu na medicina brasileira, que se abriu para a acupuntura, como ressaltou um dos enfermeiros brancos participantes da oficina.
A luta pela descolonização da saúde indígena ganhou mais uma frente. No início de março, em São Domingos Sávio, no Alto Rio Tiquié, João Paulo me contou entusiasmado da reunião realizada com os seus parentes, falada em língua tukano, à qual eu tentava acompanhar com grande interesse, pescando uma ou outra palavra em português.
Nesta ocasião, eles decidiram criar um laboratório indígena de pesquisa biovegetal. Os próximos passos incluem um encontro entre kumuã e conhecedores de plantas medicinais, e o início da produção de medicamentos com conhecimentos da floresta. A proposta consiste em vendê-los em São Gabriel da Cachoeira, Manaus e possivelmente em capitais do Sudeste.
A colonização, entendida como um duradouro e violento processo político, parece ter seu centro nos corpos. Mesmo em se tratando da catequese religiosa, supostamente voltada à alma, é o corpo que emerge como foco de exercício de poder e disciplina, talvez como via de acesso a ela. Corpos entendidos como objetos, a serem disponibilizados a formas de trabalho que lhes são impostas. O oposto das visões indígenas, cujo enfoque está mais no constante processo de formação, cuidado e construção, a partir de técnicas como o bahsese. Para o projeto colonial interessa corpos descuidados, corpos cujos processos adequados de formação foram esvaziados, a fim de torná-los precários, disponíveis a um regime político e econômico que só existe ao impor sobre o outro a imagem de si, um regime que só existe no exercício da dominação – dominação do outro, da natureza, do corpo. Se depender de João Paulo Lima Barreto, de seus familiares e dos kumuã do Alto Rio Negro, a perpetuação dos conhecimentos de cuidado com o corpo e cura indígena está longe de acabar. Verdadeira rebeldia dos corpos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A picada da jararaca e o desprezo ao conhecimento dos Kumuã do Alto Rio Negro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU