08 Junho 2019
O atual estado do sacerdócio e do episcopado parece estar em frangalhos.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 07-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Se você quiser ser padre, minta!” Isso era para ser uma piada em “Mass Appeal”, uma comédia dramática escrita pelo dramaturgo católico estadunidense Bill C. Davis.
Encenada pela primeira vez em 1980, ela foi transformada em filme quatro anos depois .
Na versão para a tela, Jack Lemmon estrela o padre Tim Farley, um pároco popular de uma paróquia afluente em Connecticut. Ele é um tipo de padre amigável, que se sente bem, cujas homilias são cuidadosamente pensadas para evitar desafios ou incômodos aos seus generosos paroquianos.
O Pe. Farley dirige um Mercedes-Benz de último modelo, adora seu vinho e uísque, e passa o dia de folga nas pistas de corrida. Ele é “considerado como um dos melhores padres” da diocese.
Um dia, ele é convidado a ser mentor de Mark Dolson (Željko Ivanek), um jovem diácono altamente idealista que corre o risco de ser impedido de ser ordenado padre por não ter seguido a linha no seminário.
A principal ofensa de Mark é que ele defendeu fortemente dois seminaristas que foram expulsos devido a um suposto relacionamento homossexual.
O reitor do seminário (Charles Durning) suspeita que Mark também seja gay. Então, o Pe. Farley, que conta tolas mentirinhas o tempo todo “pelo bem de sua paróquia”, aconselha Mark a evitar contar a verdade sobre sua sexualidade para que ele possa se tornar padre, algo que o jovem deseja com todo o seu ser.
“Se você pode se dar ao luxo de não ser padre” – Farley o adverte – “diga a verdade. Mas se você quiser ser padre, minta!”
Ao longo dos últimos meses e até mesmo nesses últimos dias, essas frases voltaram à minha cabeça várias e várias vezes. De fato, somos tentados a alterá-las e a dizer: “Se você quiser ser bispo e especialmente cardeal, então minta”.
O encobrimento dos crimes sexuais perpetrados por padres e bispos e o encobrimento criminoso por parte dos membros de todas as camadas do clero mostraram que não poucos homens nas Ordens Sagradas contaram mentiras.
Alguns, como Theodore McCarrick, parecem ter construído uma carreira inteira sobre o fato de não dizerem a verdade, pelo menos não toda a verdade.
Especialmente naqueles países onde a “crise dos abusos” ainda está se desdobrando (isto é, na maioria dos lugares), os católicos estão desorientados e zangados. Eles se perguntam quanta sujeira ainda vai sair e quantos clérigos de alto nível ainda serão expostos como abusadores e mentirosos.
O último soco no estômago foi uma série de revelações sobre Michael Bransfield, o ex-bispo completamente desonrado da única diocese católica do pobre Estado da Virgínia Ocidental.
O Washington Post publicou uma grande reportagem no dia 5 de junho mostrando que Dom Bransfield, que está sendo investigado por assediar sexualmente padres e seminaristas, doou cerca de 350.000 dólares de fundos diocesanos como presentes para cardeais de alto escalão e para os homens que ele supostamente assediava.
McCarrick, que foi fundamental para a nomeação de Bransfield como bispo em 2004, foi um dos principais beneficiários da generosidade do bispo desonrado. O ex-cardeal chefiou a Arquidiocese de Washington, onde Bransfield atuou de 1980 a 2004, no Santuário Nacional da Imaculada Conceição.
Outros beneficiários dos generosos presentes em dinheiro de Bransfield incluíam os cardeais Donald Wuerl (recentemente aposentado) e Timothy Dolan (Nova York), assim como Dom William Lori, arcebispo de Baltimore.
O bispo também ofereceu dinheiro a três norte-americanos com cargos poderosos em Roma – o cardeal Raymond Burke e os agora falecidos cardeais Bernard Law e Edmund Szoka.
Dois diplomatas vaticanos também receberam substanciais doações monetárias do bispo quando atuavam como núncios papais nos Estados Unidos – o falecido arcebispo Pietro Sambi e o agora notório arcebispo Carlo Maria Viganò.
Mas uma das revelações mais alarmantes do relatório da Associated Press, que se baseia em documentos legais verificados, é que Dom Bransfield deu dois presentes no valor total de 29.000 dólares ao cardeal Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida.
Farrell obteve seu posto no Vaticano em agosto de 2016 depois de passar nove anos como bispo de Dallas.
Mas, antes disso, ele era um padre em Washington e, no fim, foi um dos bispos auxiliares de McCarrick (2001-2007). Bransfield deu a Farrell os quase 30.000 dólares para reformar o apartamento do cardeal no Vaticano.
Alguns desses cardeais e bispos protestaram contra a sua ingenuidade ou inocência ao aceitarem um suborno.
A maioria não disse nada. E nenhum deles, neste momento, exceto o arcebispo Lori, que está supervisionando a investigação sobre as atividades de assédio sexual de Bransfield, condenou o bispo desonrado ou prometeu devolver os fundos.
Nenhum desses bispos ou cardeais jamais parou para se perguntar de onde Bransfield obtinha todo esse dinheiro? Nenhum deles considerou se ele tinha segundas intenções ao lhes enviar dinheiro? Ou que poderia ser antiético receberem esse dinheiro?
Podemos ser tentados por caridade a insistir (ou pelo menos a esperar fortemente) que as ações de Bransfield foram apenas as de um bispo solitário – uma espécie de ação única de modo algum sugere que tais tentativas de comprar favores sejam uma prática comum no sacerdócio e na hierarquia.
Mas a tentação mais forte – sustentada pelos fatos da história e pela profunda desconfiança da hierarquia que os escândalos de abuso sexual e de encobrimento geraram – é identificar esse padrão de corrupção e falsidade com um mau sistema clerical mais difundido e endêmico.
E não nos iludamos pensando que se trata apenas de “um assunto norte-americano”. Você pode apostar que isso continua ocorrendo em todo o mundo.
Afinal, as tentativas de comprar influência e cargos eclesiásticos existem desde a fundação da comunidade cristã primitiva (cf. At 8, 18-25).
As histórias de cardeais que se acredita que “compraram” seus barretes vermelhos são lendárias em Roma.
E aqueles prelados vestidos de escarlate que usaram seu próprio dinheiro ou o dinheiro de outros para encobrir seus malfeitos são mais conhecidos do que a maioria das pessoas nas “províncias” pode suspeitar.
Um dos casos mais recentes a gerar manchetes foi o relativo à reforma da residência do cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano no papado de Bento XVI e brevemente no papado de Francisco.
Depois de se aposentar em 2013, o cardeal salesiano desembolsou quase 400.000 dólares para reformar duas coberturas dentro do Vaticano, que ele fundiu para serem seu lar de repouso.
Isso virou polêmica apenas porque se descobriu que a empresa de construção emitiu notas duplicadas pelo projeto, e dois responsáveis do Hospital Infantil Bambino Gesù pagaram a outra metade. Os dois acabaram sendo acusados de apropriação indébita de fundos.
Bertone negou ter pedido o dinheiro, mas, em um gesto de boa vontade, doou cerca de 170.000 dólares para o hospital infantil para ajudar a cobrir a perda.
O mais surpreendente é que ninguém pareceu se perguntar de onde o cardeal tinha todo esse dinheiro. Ele vem de uma família modesta e passou a maior parte da sua vida em uma ordem religiosa (salesianos), o que significa que ele fez um voto de pobreza.
Ele não estava mais vinculado a esse voto quando se tornou bispo em 1991. Mas, mesmo assim, os salários vaticanos não são tão altos – até mesmo para os cardeais. Ele obviamente tinha amigos generosos e benfeitores.
Um amigo padre previu há cerca de 15 anos ou mais que o próximo grande escândalo ou crise na Igreja seria de natureza financeira. Mas ele não estava falando sobre coisas como subornos ou compras de favores que vimos no caso Bransfield.
E ele também não se referia a peculatos ou a furtos da cesta de coleta. Ao contrário, ele se referia à inépcia financeira do pároco médio e de um sistema clerical que coloca o “padre” como encarregado de tudo – até mesmo dos cofres paroquiais.
Negligência na supervisão: o padre disse que poderia ser facilmente documentado o modo como os bispos continuam transferindo tais pastores financeiramente ineptos de uma paróquia para outra.
O padrão típico é que o clérigo seja nomeado para uma paróquia com dinheiro no banco, apenas para deixá-la com uma grande dívida quando ele for transferido para outro lugar, seis ou 12 anos depois. E aí se repete o padrão.
“A única coisa que enfurece os católicos mais do que saber que os bispos protegeram os padres predadores que possam ter molestado os seus próprios filhos é saber que os bispos estão transferindo padres que estão desperdiçando o dinheiro do povo”, disse o meu amigo padre.
Essa também é uma forma de desonestidade.
Mas provavelmente não se deve principalmente à malícia, embora o abuso de sexo e dinheiro possa ser uma forte tentação até mesmo para os homens de batina. Não, o problema com grande parte do comportamento escandaloso que estamos testemunhando entre os clérigos está enraizado no “clericalismo”, como insiste o Papa Francisco.
Graças a Deus, a Igreja Católica tem tantos sacerdotes bons e honestos. Porque, com certeza, é preciso heroísmo para ser bom em um sistema clerical muito mau e quebrado, onde “o padre sabe o que é melhor”, e se espera que o povo faça o que ele diz.
Isso, é claro, também é uma mentira. E cada vez menos católicos ainda acreditam nisso.
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Confiança quebrada em um sistema clerical quebrado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU