O câncer que espreita a Monsanto

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23 Mai 2019

O advogado Brent Weisner recorda o dia em que foi à casa de Dewayne Johnson para lhe dizer que o representaria em um julgamento contra a Monsanto. Johnson, de 47 anos, havia trabalhado como jardineiro em um distrito escolar na zona norte de San Francisco, na Califórnia. Na época da visita, estava morrendo de câncer, com uma expectativa de vida de poucos meses. Atribuía a doença a um pesticida chamado RoundUp que tinha utilizado durante dois anos nesse trabalho. Weisner conta que lá estava a esposa de Johnson, Araceli, vestida de enfermeira, um de seus dois trabalhos. “Ela não estava totalmente convencida. Então nos sentamos e lhe disse que pediria milhões de dólares de indenização. Começou a chorar. Foi muito intenso. Não tinha nem ideia de como este caso seria importante”, contava Weisner nesta semana em uma entrevista no seu escritório, em Los Angeles.

A reportagem é de Pablo Ximénez de Sandoval, publicada por El País, 22-05-2019.

Em 10 de agosto de 2018, um júri popular da Califórnia condenou o gigante agroquímico Monsanto a indenizar a família Johnson em 289 milhões de dólares (1,17 bilhão de reais), uma cifra espetacular que transformou a palavra glifosato em um nome familiar. O glifosato é um composto químico desenvolvido pela Monsanto nos anos setenta e o princípio ativo de dois produtos, RoundUp e Ranger Pro. Trata-se do pesticida mais popular do mundo, de venda habitual em lojas de jardinagem. O juiz acabou reduzindo a indenização para 78,5 milhões de dólares.

O júri concluiu que o glifosato provavelmente provoca câncer, e que a Monsanto agiu de má-fé porque sabia disso e ocultou o fato. Sobre o primeiro aspecto há dúvidas. Não existe um estudo determinante e reconhecido que estabeleça a relação direta entre o glifosato e o linfoma não-Hodgkins, o tipo de câncer cruel e incurável que acometeu Johnson. Tanto a Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos como o órgão regulador europeu (EFSA) consideram-no um produto seguro, e assim ele é rotulado.

Em março de 2015, entretanto, a Agência Internacional de Pesquisa do Câncer (IARC, na sigla em inglês) causou uma reviravolta na literatura científica sobre o glifosato ao publicar um estudo em que o qualificava como “provavelmente cancerígeno para humanos”. O organismo, ligado à Organização Mundial da Saúde, reconhecia que há “poucas provas” da relação com o linfoma não-Hodgkins em humanos, mas considerava suficientes os estudos feitos com animais para estabelecer essa probabilidade.

“A decisão da IARC mudou tudo”, reconhece Weisner. Essa decisão é hoje o principal fator de dúvida na consideração internacional do glifosato. Foi por causa dela que escritórios como este de Los Angeles (Baum Hedlum Aristei Goldman, BHAG) viram chances para esses processos, que as pessoas se animaram a denunciar, e que três júris diferentes — até agora — tiveram suficientes dúvidas sobre a relação entre o glifosato e o câncer a ponto de condenar a Monsanto por não advertir sobre o fato nas embalagens, entendo que a multinacional agiu de forma maliciosa.

Ao veredicto no caso Johnson seguiu-se, em março, o de Edwin Hardeman, outro morador da zona norte de San Francisco com linfoma não-Hodgkins. Desta vez, foi o júri de um tribunal federal que lhe concedeu uma indenização de 80 milhões de dólares. E finalmente, em 13 de maio, um terceiro júri da Califórnia condenou a Monsanto a pagar dois bilhões de dólares a um casal septuagenário, Alva e Alberta Pilliod, que utilizaram o RoundUp durante 35 anos e agora sofrem de linfoma não-Hodgkins.

Quando saiu a sentença de Johnson, em setembro do ano passado, havia 8.000 ações similares em curso contra a Monsanto nos Estados Unidos. Atualmente já são mais de 13.400 processos movidos por pacientes de linfoma não-Hodgkins ou seus familiares. Só o escritório BHAG aceitou 1.600 casos, dos quais apresentou 500 nos tribunais, sendo 300 deles na Califórnia. No dia em que saiu o veredicto dos Pilliod, 60 pessoas telefonaram dizendo que também gostariam de levar seus casos a julgamento, segundo Weisner.

“Quando vi a sentença de Johnson na televisão comecei a chorar”, conta Deborah Brooks. Ela recorda quando, no Natal de 2015, seu marido, Dean Brooks, lhe disse pela primeira vez que não conseguia respirar. Fazia tempo que tinha problemas de estômago e hemorragias espontâneas e incontroláveis pelo nariz. Era um homem de 71 anos, forte, “com um corpo de quarenta”. Quando foram ao pronto-socorro, após os primeiros exames, a enfermeira a olhou e lhe disse: “Bom, sempre há milagres”. Dean morreu em julho de 2016 de um linfoma não-Hodgkins. Usava o RoundUp para matar ervas daninhas na casa de campo onde viveram durante três anos perto de Cambria, Califórnia.

Deborah Brooks moveu uma dessas ações através do escritório BHAG. “Quero salvar a vida das pessoas”, dizia, na quinta-feira, no quarto de hotel onde vive. “Estão matando gente. É horrível. Vi o que aconteceu com Dean e não quero que continue ocorrendo.” Brooks, que trabalhou como lobista, leu tudo o que encontrou na Internet sobre o RoundUp e o câncer e só depois contatou os advogados. “Pensei: ‘Eu posso brigar por isto’. Meu marido não morreu por nada, há uma razão. Se estivesse aqui ele me diria: ‘Para cima deles’. Vou fazer tudo o que puder para pará-los.”

Embora ainda não tenha ido a julgamento, a denúncia que serve de modelo para as demais foi a de Teri McCall, uma moradora de Cambria, na Califórnia. Seu marido, Jack McCall, morreu em dezembro de 2015, apenas seis meses depois de ser diagnosticado com linfoma não-Hodgkins. “Usava o RoundUp desde que saiu”, nos anos setenta, conta McCall em uma entrevista telefônica. “Usou-o durante 30 anos para as ervas daninhas, e era o único composto químico não orgânico que ele usava. Não usava outro pesticida porque não queria se expor a produtos químicos. Ele me dizia que esse era seguro. Lembro uma vez em que estava arrancando ervas e me disse que as tinha pulverizado. Eu retrocedi um pouco e ele me disse que não tinha problema, que era seguro.”

Assim como os autores de muitas outras ações, McCall se informou na Internet sobre o glifosato antes de procurar os advogados. O que mais a deixa indignada é “a corrupção”. Está convencida de que a EPA e a Monsanto conspiraram juntos para ocultar os riscos do glifosato. “São uma companhia muito poderosa e conseguiram se dar bem em muitas coisas ruins, e isso foi algo feito pelo nosso próprio Governo, que supostamente deveria nos proteger.”

Weisner também diz que os reguladores estão de alguma forma a serviço da Monsanto. Isto reforça a ideia de que durante anos não foram feitos os estudos necessários sobre o glifosato, porque não interessava, aceitando-se em vez disso a versão da companhia. “A EPA já não trabalha para o público, trabalha para as companhias. Temos e-mails e textos em que conspiram para apresentar isto como seguro. A ideia de que a EPA é um regulador independente é uma bobagem.”

A reputação da Monsanto tampouco ajuda. Trata-se de uma das companhias mais detestadas do mundo. Em 2018, dois meses antes do veredicto do caso Johnson, foi adquirida pela alemã Bayer por 66 bilhões de dólares, e uma das primeiras decisões foi eliminar a marca Monsanto, pela carga negativa que carregava. Com a compra, a Bayer herdava também os passivos judiciais. As ações da Bayer perderam 44% de seu valor desde a compra da Monsanto.

A Monsanto recorreu das três sentenças já emitidas e continua negando qualquer relação entre o glifosato e o câncer. Defende os estudos publicados, afirma que a rotulagem está correta e não deixou transparecer qualquer intenção de buscar acordos para encerrar as disputas judiciais. “Se amanhã admitirem que se equivocaram seria como admitir que estão mentindo há 45 anos”, diz Weisner. “Seria um cataclismo. Eles têm sangue nas mãos. Quantas vidas foram perdidas?”

Enquanto isso, cada novo caso que vai a julgamento (o próximo é em Missouri, onde fica a sede da Monsanto, em agosto) está mais documentado que o anterior. Os advogados têm acesso a um histórico cada vez mais volumoso de mensagens, e-mails e memorandos internos da Monsanto para provar a suposta má fé da companhia. Weisner, por exemplo, tinha no julgamento dos Pilliod alguns documentos com os quais não contavam na época do caso Johnson, que foi antecipado devido ao delicado estado de saúde do autor. O arquivo do escritório BHAG sobre o glifosato já tem 22 milhões de páginas.

Em sua apresentação ao júri, Weisner mostrou um diapositivo em que aparecia um documento interno da Monsanto resumindo as normas aos seus funcionários para manipular o RoundUp: usar óculos, luvas, trajes e calçados resistentes a produtos químicos, e uma máscara se fosse preciso passar muito tempo respirando perto do produto. Em seguida, Weisner mostrou um anúncio de televisão do RoundUp em que um senhor de bermuda e camiseta aparece pulverizando o pesticida no seu jardim sem proteção alguma.

A porta judicial aberta por Teri McCall permitiu a entrada de um vendaval para a Monsanto e a Bayer. Já são três sentenças seguidas com indenizações cinematográficas, e milhares de julgamentos ainda pendentes. Weisner diz que não pode compreender como a companhia não reconhece o dano e negocia um acordo geral com os afetados, porque isto só tende a crescer. “O período de latência do linfoma não-Hodgkins é de 20 anos”, explica Weisner. O RoundUp é vendido desde os anos setenta, e é disparadamente o herbicida mais popular do mundo. “Faltam 20 anos de gente que pode estar afetada e que ainda não desenvolveu o câncer. Ainda não sabemos a extensão disto.”

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