14 Mai 2019
Motivo de tensão entre a ala social da Igreja Católica, a ensaiada guinada reacionária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) naufragou. Ao menos pelos próximos quatro anos, o setor do episcopado que torce o nariz para as ideias do papa Francisco continuará a atuar nas franjas da estrutura eclesiástica.
A reportagem é de Thais Reis Oliveira, publicada por CartaCapital, 14-05-2019.
É o que mostram os resultados da 57ª Assembleia-Geral da entidade, que elegeu o novo presidente, dois vice-presidentes, um secretário-geral e representantes de vários organismos e pastorais. A parelha principal não poderia ser mais simpática aos ideais do papa argentino, e deve abraçar seus planos para o futuro da Igreja Católica em um mundo no qual a pobreza, a desigualdade e a violência crescem sob a batuta de falsos profetas do populismo.
A presidência e a primeira vice-presidência ficaram com os moderados dom Walmor Azevedo, arcebispo regional de Belo Horizonte, e dom Jaime Spengler, de Porto Alegre. Um dos postulantes ao comando da CNBB, o antirreformista dom Odilo Scherer, de São Paulo, acabou preterido.
Azevedo é reconhecido entre os pares como um bispo dedicado à Igreja, sensível aos problemas do País e com trânsito entre diferentes tendências políticas. Nas questões cotidianas e burocráticas, é descrito como um chefe sereno, mas exigente. No grupo de assessores mais próximos figura dom Joaquim Giovanni Mol, reitor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, cuja atuação notadamente se alinha ao pensamento do papa. O novo presidente da CNBB também cultiva amizade com o monsenhor Ilson Montanari, chefe diplomático da Santa Sé.
A ala menos simpática às ideias de Francisco não ficou, porém, de mãos vazias. Em um jogo de equilíbrio, os bispos escolheram para a secretaria-geral dom Joel Portella Amado, auxiliar de dom Orani Tempesta, religioso que topou posar para fotos ao lado de Jair Bolsonaro durante as eleições e foi citado como beneficiário de propinas na delação do ex-governador fluminense Sérgio Cabral. Por tradição, o secretário-geral administra o dia a dia da CNBB e não é incomum que assuma os holofotes no lugar do presidente. Aliados de Azevedo projetam, no entanto, um outro comportamento do líder máximo da Conferência, mais aberto do que antecessores ao debate público. Espera-se ainda que Amado não atue como caixa de ressonância de seu aliado. “Ele deu muita assistência à CNBB e aos bispos regionais. Tem escrito sobre o mundo, é professor e um teólogo de boa formação”, avalia um observador da Conferência que pede anonimato.
Os bispos também decidiram mandar um recado àqueles que atacaram a Igreja no debate sobre o meio ambiente. O segundo vice-presidente será dom Mário Antônio da Silva, bispo em Roraima. O grupo pan-amazônico, que reúne cerca de 90 bispos latino-americanos, teme pelo futuro dos povos indígenas e pela biodiversidade enquanto Bolsonaro ocupar o Palácio do Planalto. Os riscos advêm, na avaliação do grupo, da postura permissiva em relação ao avanço do agronegócio, ao uso indiscriminado de pesticidas, ao aumento da violência rural e à autorização para exploração farmacêutica e megaempreendimentos de turismo na floresta.
A escolha de Silva favorece ainda os preparativos para o Sínodo da Amazônia, marcado para ocorrer em Roma, e alvo de críticas e da arapongagem do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional e responsável pela Agência Brasileira de Inteligência. Além das questões sociais e ambientais, o evento discutirá questões eclesiais importantes, entre elas a ordenação de padres casados para atuar em regiões de difícil acesso como a floresta.
A CNBB foi fundada por dom Hélder Câmara em 1952 e vicejou durante um período de intensa renovação na Cúria Romana que resultou no “catolicismo de face humana”, após os horrores do nazifascismo. Grande parte do clero defendia uma “igreja dos pobres”, atuante contra a desigualdade social e a favor dos direitos das minorias. A esta ala contrapunha-se, como se contrapõe até os dias atuais, os defensores de um trabalho religioso fincado nos ritos, sacramentos e dogmas que mantiveram por séculos a Santa Sé como o mais influente agente político do planeta.
Com a segunda derrota consecutiva em eleições, Scherer e seus aliados perdem força na CNBB. O arcebispo paulistano, dado a censurar colegas de pensamento diferente – certa vez ele desancou um bispo de Santa Catarina que participou de uma missa ecumênica pela morte da ex-primeira-dama Marisa Letícia – assumira certo protagonismo no campo mais à direita após Tempesta ter sido engolido pela delação de Cabral. Segundo o ex-governador, o religioso habilitou-se a participar de um esquema de desvios de fundações católicas que administram hospitais no estado do Rio de Janeiro. O caso continua sob investigação.
O balanço final do evento, encerrado na sexta-feira 10, indica uma escolha pela independência com moderação. A Igreja tende a manter a crítica ao governo Bolsonaro, como fez em relação ao projeto de reforma da Previdência e ao pacote “Anticrime” do ministro Sérgio Moro, sem subir o tom em demasia. “Será uma presidência que não buscará confronto. Mas, se houver ataques, certamente defenderá a Igreja”, avalia Robson Sávio Reis Souza, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC de Minas Gerais.
Embora mantenha relações com políticos de diferentes legendas, Azevedo não costuma escapar da discussão dos problemas sociais. Quando a lama cobriu a zona rural da cidade de Brumadinho, a arquidiocese de Belo Horizonte marcou posição firme contra o poder econômico da mineradora Vale. O arcebispo também fez cobranças públicas ao governador Romeu Zema e deu apoio a grupos de especialistas dedicados a analisar as causas da tragédia.
Quanto a Bolsonaro, que não esconde seu desconforto com a oposição que encontra na Igreja Católica, a relação vai depender das reações de Brasília ao novo comando da CNBB.
Se houver o devido respeito e deferência, a Conferência evitará abrir novos flancos de atrito. O comedimento não significa, porém, um recuo no trabalho das pastorais que tanto incomodam o presidente e seus aliados. A CNBB mantém um contínuo trabalho de base em comunidades indígenas, áreas rurais, presídios e em meio a desvalidos de toda a sorte.
A presidência e as duas vices da entidade ficaram com bispos comprometidos com as causas sociais.
Não se sabe ainda se a moderação será aceita. Núcleos de católicos bolsonaristas não fizeram questão de esconder seu desapontamento tão logo o resultado das eleições veio a público. “Tiraram Lula e colocaram o Luiz Inácio da Silva”, provocou o londrinense Bernardo Küster, famoso nas redes sociais por postar vídeos críticos à entidade. As teorias conspiratórias ganharam novo fôlego. O mesmo Küster “denunciou” que o novo presidente da CNBB comandou a construção de uma igreja moderna, erguida sob o projeto de um comunista chamado Oscar Niemeyer.
Os acontecimentos eclesiais no Brasil têm influência no futuro do papado de Francisco. A CNBB é a maior Conferência Episcopal do mundo – são 480 bispos em todo o País, dos quais 307 formam o corpo ativo da CNBB. O Brasil é também o maior rebanho entre todas as nações de maioria católica, com 123 milhões de fiéis.
Francisco tem movido as peças para manter acesa as chamas de seu “Catolicismo do Século XXI” na América Latina. Desde que assumiu o Vaticano, em 2013, o argentino Bergoglio atua para mudar o perfil dos cardeais dessa porção do continente. No Peru, o arcebispo José Luiz Cipriani, ligado ao Opus Dei, foi substituído às pressas quando se aposentou por um nome alinhado à visão eclesiástica do papa. Francisco também reatou os laços da Cúria com Gustavo Gutiérrez, idealizador da Teologia da Libertação perseguido durante os papados de João Paulo II e Bento XVI.
A eleição da CNBB, que ocupou por dez dias o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, foi marcado por novidades. Uma mulher, a economista e professora universitária Tânia Bacelar, estrelou o painel de abertura do evento. De verniz desenvolvimentista, Bacelar expôs aos bispos as conquistas sociais entre 2003 e 2014 e os problemas da economia brasileira que se intensificaram após o impeachment de Dilma Rousseff.
Na carta de encerramento da assembleia, sobraram críticas à reforma da Previdência, aos cortes na Educação e à liberação das armas
Na carta de encerramento do evento, houve críticas contundentes às políticas do governo Bolsonaro. O texto condena a opção “por um liberalismo exacerbado e perverso, que desidrata o Estado quase ao ponto de eliminá-lo”, ignora as políticas sociais e amplia as desigualdades e a concentração de renda. Cita ainda os cortes na Educação anunciados pelo ministro Abraham Weintraub, da corrupção, da escalada do desemprego e das graves ameaças aos direitos dos povos indígenas.
Deu tempo até de criticar o mais recente decreto de Bolsonaro que amplia o porte de armas no País. “O verdadeiro discípulo de Jesus terá sempre no amor, no diálogo e na reconciliação a via eficaz para responder à violência e à falta de segurança, inspirado no mandamento ‘Não matarás’ e não em projetos que flexibilizem a posse e o porte de armas”, anota o documento.
Entre o capitão e o papa, a Igreja brasileira escolheu o segundo. Amém.
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Em eleição crucial, CNBB escolhe trilhar os caminhos do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU