06 Mai 2019
“Comemos o fruto da onipotência, mas depois não nos envergonhamos. E, se estamos nus, não nos damos conta disso: nenhum medo vem nos lembrar da nossa condição. Nós nos sentimos protegidos pelas armaduras das nossas construções identitárias. Não nos sentimos criaturas frágeis, porque sabemos bastar a nós mesmos. Está tudo bem, enquanto conseguimos ter tudo sob controle, começando pelas fronteiras, as nossas novas peles.”
A reflexão é da pastora batista italiana Lidia Maggi, publicada na revista Servitium, n. 242, de março-abril de 2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Voltemos à narrativa antiga, aquela que encontramos como portal de entrada da Bíblia: um mito que tenta contar os inícios, não tanto para refletir sobre as origens, mas sim para nos entregar o princípio, entendido como o fundamento da existência.
São relatos demasiadamente conhecidos aqueles que repassaremos; tão conhecidos a ponto de serem usurados. Como em um livro folheado demais, os fragmentos se soltam debaixo dos dedos da memória. Na verdade, não está claro se a fragmentação do manuscrito depende da usura ou do abandono, da negligência com que essas obras-primas antigas foram tratadas.
Alguns defendem que a usura começou com a modernidade, quando a mentalidade científica avaliou como ilógicos e fabulosos os cenários propostos pelo Gênesis. Os relatos poéticos, então, foram peneirados pela lente científica e não passaram pelo crivo: o mundo não foi criado em seis dias, muito menos começou em um jardim, com um casal primordial que passa, no espaço de um capítulo, da idade da inocência à da consciência, e tudo por culpa do (ou graças ao) furto de um fruto proibido.
O que ainda têm a nos dizer esses contos arcaicos, míticos, que encenam um mundo fantasioso, em que as serpentes falam e as mulheres são tiradas do lado do homem? E, se eles não têm tal estrutura para a nossa mentalidade moderna, racional e científica, capaz de buscar uma ordem do mundo sem questionar Deus, o que dizer do peso de tantas leituras moralistas que, justamente apoiando-se nessas antigas narrativas, acusaram o gênero feminino de ter trazido ao mundo o pecado, a desordem e de ter causado a expulsão do jardim? Interpretações que legitimaram a supremacia do homem sobre a mulher – porque é a mulher que foi tirada do homem, e não o contrário! E é sempre a mulher que se deixa “seduzir” pela serpente.
A primeira vergonha a ser reconhecida não é a da encenação no mito; antes, aquela que nós deveríamos sentir por todas aquelas utilizações do texto bíblico que, no passado como hoje, serviram para legitimar um abuso, um domínio: a supremacia do humano sobre a criação, do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro (vocês se lembram de Noé e da maldição dada ao filho Cam por ter olhado para a nudez do pai bêbado?), e assim por diante. Deveríamos sentir vergonha por ter deformado essas narrativas antigas, oscilando de leituras moralistas a banalizações antimodernistas.
Hoje, sentimos que estamos vivendo em uma época órfã de grandes narrativas. A maior parte delas podem até ter desaparecido pelo uso que delas foi feito pelas ideologias da modernidade; mas as Igrejas também, com as suas leituras banalizantes das páginas bíblicas, têm uma responsabilidade própria a esse respeito.
É como se fôssemos o filho mais novo da parábola, que, tendo desperdiçado a própria herança, encontra-se com fome, na imundície, e toma consciência de onde caiu. Ter administrado mal essas obras-primas da espiritualidade e da fé, tê-las tornado empoeiradas, chatas e banais não apenas nos tornou mais pobres, mas também nos removeu as grandes perguntas que essas antigas histórias coletivas faziam para as gerações. Quem sou? Por que existo? O que significa tornar-se plenamente humano?
Assim como o filho mais novo, cheios de vergonha, levantamo-nos e pomo-nos a caminho para casa. Fazemos isso em um momento histórico particular, no qual nos sentimos nus de narrativas compartilhadas, capazes de orientar a existência, de abrir caminhos, permitindo que uma sociedade inteira se espelhe e se deixe interrogar. Órfãos de memória, vagamos nus e com frio, e, na selva do nosso presente, nenhuma voz parece chegar até nós para nos perguntar: “Onde estás?”.
Porém, assim como Deus, no deserto de sentido, ousamos voltar ao corpo do texto antigo abusado ou esquecido, para reencontrar aquelas histórias removidas de uma geração distraída e desmemoriada. Voltamos para aquele jardim primordial para ouvir, mais do que um relato teológico sobre Deus, uma reflexão sobre a humanidade, que nos ajude a reencontrar o sentido do humano. Adão, onde estás? E onde está o teu irmão?
As perguntas que ressoam no mito estão longe de ser estranhas à nossa realidade. A história dos inícios não nos leva de volta no tempo: ao contrário, nos ajuda a ler o presente, as dificuldades na relação com o outro e com a vida em geral.
Não é uma narrativa histórica ou científica, muito menos um código religioso, mas sim um conto sapiencial, entregue através de uma linguagem simbólica que, em uma miniatura, tenta captar o sentido de estar no mundo e descerra horizontes impensados.
No livro do Gênesis, desde o início, a humanidade é contada como chamada à relação: “Não é bom que o homem esteja só”. Ninguém basta a si mesmo. Para sermos felizes, precisamos fazer as contas com a alteridade: a de Deus, acima de tudo, que é diferente de nós, mesmo que, no humano, habitem traços divinos, a ponto de poder entrever a semelhança nessa maravilhosa criatura. E também a alteridade humana. Ser criatura relacional significa reconhecer que se precisa de ajuda – “Farei para ti uma ajuda que venha ao teu encontro”.
Embora hospedemos dentro de nós o sopro de Deus, o céu em nós, somos criaturas frágeis, moldadas de terra; não bastamos a nós mesmos, precisamos de relações. Em suma, estamos bem longe daquela criatura onipotente que, às vezes, pretendemos ser. O desejo de nos apropriarmos do poder de manter tudo sob controle revela-se ilusório. Não podemos dispor do bem e do mal.
Acolher essa verdade antropológica nos permite habitar a nossa fragilidade, a nossa nudez, sem sentir vergonha disso. O homem e a mulher, no jardim, “nus e sem vergonha”, são a imagem daquele projeto de humanidade capaz de se sentir reconciliada com a própria criaturalidade. Não são criaturas inconscientes e infantis, que ainda devem crescer, como muitas vezes retratamos aquela situação idílica inicial.
“No princípio” é representado o projeto de uma humanidade que vive em harmonia com as próprias fragilidades, feliz por ser o que é, nua e sem vergonha.
O que é dado no início, no entanto, parece ser um ponto de chegada mais do que um ponto de partida estabelecido, pois não é nada simples estar bem consigo mesmo e com os outros, acolher-se como se é, com os próprios limites e as próprias fragilidades, reconciliados com as próprias finitudes criaturais, sem desejar ser diferente. Por que, frequentemente, a nossa fragilidade é percebida como obstáculo à vida plena mais do que como requisito necessário para nos tornarmos plenamente humanos, em relação?
O primeiro sentimento de vergonha parece encontrar rastros nesse esforço de estar com a própria parcialidade. É também disso que nos fala o relato das origens, amplificando e exacerbando a inadequação humana, até levá-la ao extremo desconforto. É como se o mito perguntasse ao leitor: como a criatura humana se vê? Ela realmente se sente parte do mundo que habita? Está em relação com os dons da terra que ela guarda e governa? Assumiu essa vocação de cuidado ou a sofre?
E o desconforto gera o conflito. Eis que, no jardim, uma voz sibilante insinua, rastejante como uma serpente, a suspeita sobre a bondade da própria criaturalidade. O que no mito é narrado com o antes e o depois – do idílio à queda, do jardim ao deserto – não é o relato cronológico da parábola humana, mas sim de duas cenas que, em tensão até o conflito, revelam algo de profundo do coração humano. Ir para trás é a antiga arte para enfrentar as grandes perguntas de sentido à nossa frente, sem banalizá-las. Uma imagem temporal para expressar aquilo que hoje compreendemos com uma imagem espacial: ir ao fundo das coisas, sem permanecer na superfície. Por um lado, a condição humana é representada, na primeira cena, pela nudez, entendida como vulnerabilidade, vivida sem constrangimento, sem que se torne motivo de vergonha.
Mas imediatamente, ao lado dessa cena, através da arte do conto, que põe em jogo múltiplos pontos de vista, eis que se dá voz à dissidência, faz-se emergir aquele desconforto que habita o coração humano: por que o bem e o mal não estão nas minhas mãos? Por que eu não sou como Deus, capaz de controlar todas as coisas?
Essas perguntas são enfrentadas imaginando que o antagonista tenta o casal primordial deformando o seu olhar, fazendo-os acreditar que tudo é proibição para a criatura humana: “O Senhor realmente disse que vocês não podem comer de nenhuma árvore?”.
O limite, na realidade, não é representado pela impossibilidade de gozar dos frutos da terra, mas pela proibição dos frutos de uma única árvore: a do conhecimento do bem e do mal. Aqui, o casal humano se deixa convencer de que é possível, através da negação do próprio limite, chegar a ser como Deus: capaz de controlar todas as coisas, o bem e o mal, capaz de passar pela vida sem nunca perder o seu controle.
Mas a criatura humana, por mais que se esforce, por mais meios que possa ter, pode passar pela vida com tal delírio? Ela não corre o risco de não viver, de não amar e de recusar as relações? Porque o outro é sempre imprevisível, como, aliás, muitos acontecimentos da existência. Pode-se controlar algumas coisas, mas não tudo! Podemos controlar aquilo que gastamos, aquilo que consumimos, até aquilo que comemos, mas não podemos planejar a nossa vida sem que alguma coisa nos escape: um luto, uma doença, uma calamidade natural e social.
A vida deve ser arriscada, não se pode viver na defesa. A humanidade é essa criatura frágil, nua, exposta sem proteções às intempéries da vida. Nasce, então, a suspeita de que Deus não quer o bem da humanidade, tendo criado o terreno tão terrestre.
A experiência da árvore do conhecimento do bem e do mal desmorona a ilusão de poder ser como Deus: depois de provar o fruto, os olhos se abrem, e a humanidade, depois do delírio, descobre que é tudo, menos onipotente. Vê-se nua e “sente vergonha”. Não é explicado o porquê. Pela desobediência? Porque não confiou em Deus? Porque se descobre ridícula na sua fragilidade, diante do seu desejo de onipotência?
Aspectos todos concatenados entre si. A desconfiança na bondade da própria vocação leva à falta de autoestima e à incapacidade de sentir espanto. Quem não é como gostaria de ser se envergonha e escapa do olhar. A nua fragilidade é insuportável, acima de tudo em relação ao próximo. Para esconder essa nudez, as criaturas humanas tecem folhas para fazer uma veste. Bastarão poucas folhas para proteger do frio a fragilidade sofrida?
Em seguida, ao ouvir a voz de Deus que chama no jardim, os dois se escondem entre os arbustos. A voz de Deus incute medo neles. O que os assusta? Deus? A própria vulnerabilidade diante de Deus? O oposto de estar nu e não se envergonhar não é estar nu e se envergonhar, mas sim sentir medo da nudez. Sentir-se frágil, não encouraçados para enfrentar a vida. “Tive medo porque estava nu e me escondi.” O medo nasce da amarga consciência de que não somos invulneráveis. O outro pode nos proteger, mas também nos agredir e nos ferir.
O pior aconteceu: a realidade superou o mito. Comemos o fruto da onipotência, mas depois não nos envergonhamos. E, se estamos nus, não nos damos conta disso: nenhum medo vem nos lembrar da nossa condição. Nós nos sentimos protegidos pelas armaduras das nossas construções identitárias. Não nos sentimos criaturas frágeis, porque sabemos bastar a nós mesmos. Está tudo bem, enquanto conseguimos ter tudo sob controle, começando pelas fronteiras, as nossas novas peles.
É claro, isso já aconteceu em épocas passadas; mas agora acontece conosco: reescrevemos o mito antigo mudando o fim: o imbróglio da serpente foi muito além das suas expectativas. Obscureceu a nossa visão até apagar a nossa fragilidade do olhar.
O pior aconteceu. Ora, no jardim, depois de compartilhar o fruto, o homem e a mulher ainda se movem inconscientes, como na cena do idílio. Estão nus, mas não sabem disso. O rei está nu, mas acredita estar vestindo as roupas do imperador, do rei do mundo. Está longe de Deus, mas se vangloria de tê-lo como seu aliado: uma presença que não incute qualquer temor, que não faz perguntas de sentido, impossíveis de ouvir pelos ouvidos seguros de uma humanidade sem vergonha.
O mal também se esconde assim: faz com que você creia que é outro em relação a você mesmo e faz com que você não sinta vergonha. Contra essa declinação contemporânea do mal, que Deus poderá nos salvar?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Nus e sem vergonha. Artigo de Lidia Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU