23 Abril 2019
"Quanto amor é necessário para sofrer a injustiça suportada pelas vítimas da história, como se fosse nossa? Uma medida imensa, sem dúvida. Para nos acostumar à indiferença, no entanto, parece que um quase nada seja suficiente."
A opinião é do teólogo italiano Pierangelo Sequeri, reitor da Facoltà Teologica dell'Italia Settentrionale, em artigo publicado no jornal Avvenire, 21-04-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Destrua este templo e em três dias eu vou levantá-lo" (João 2, 19). Jesus falou do templo do seu corpo, explica o evangelista. Enquanto celebramos a ressurreição de Jesus, ainda temos em nossos olhos as comoventes imagens da catedral de Notre-Dame em chamas.
O evento, ao que parece, causou uma emoção não efêmera em toda a comunidade, crentes e não-crentes. Como se fosse um reflexo da nossa condição de órfãos, cuja verdade torna-se repentina e dolorosamente evidente para o inconsciente coletivo. Podemos reconstruir uma catedral, e certamente o faremos.
Mas a questão é outra. Seremos capazes de habitá-la como o lugar onde os laços de amor, cuja justiça resiste até à morte, não sejam palavras vazias? Seremos capazes de irradiar espíritos vitais para a comunidade, para restituir aos órfãos de Deus à comoção de uma fraternidade redescoberta, teimosa, culturalmente pacificada consigo mesma?
Esta Páscoa deve marcar o início de uma cura coletiva de nosso coração, que se tornou desconfiado em relação a Deus, e dissolver os fantasmas de uma mente coletiva desmoralizada, que não acredita mais no milagre do nascimento. Uma única vida humana nasce para sempre. E a proximidade operosa de uma comunidade que a sustenta, mesmo em seus extremos abandonos, em vista de seu renascimento, é a parte mais bela do nosso viver juntos. "A mim o fizeste" (Mateus 25:40).
Quanto amor é necessário para sofrer a injustiça suportada pelas vítimas da história, como se fosse nossa? Uma medida imensa, sem dúvida. Para nos acostumar à indiferença, no entanto, parece que um quase nada seja suficiente.
Essa indiferença aparece hoje como uma forma evoluída (é força de expressão) do ateísmo. Quero dizer, o ateísmo do coração, naturalmente, não aquele dos jogos intelectuais com os quais tentamos mascará-lo, transformando-o no enigma dos absolutos.
O ateísmo do coração começa como uma vergonha pela compaixão, que nos faz parecer fracos e irracionais. Centra-se no cuidado de si mesmo, aceitando a degradação de povos inteiros como uma fatalidade da evolução que seleciona os vencedores. Por fim, harmoniza-se com a indústria do prazer, recompensando a insensibilidade pela privação do outro como razoável cálculo dos recursos. O ateísmo do coração não reconhece nenhum Deus da justiça a quem responder, nem qualquer Deus do amor a quem corresponder.
O ateísmo do coração engorda o niilismo e divide os seres humanos. Produz efeitos de degradação civil que podem assumir formas impressionantes de ignorância e de agressividade (um rápido olhar para os comentários e os blogs que circulam na rede nos oferece um dilúvio de evidências).
No entanto, ele parece capaz de insinuantes cumplicidades com o nosso direito à busca da felicidade e de sofisticadas justificações do amor-próprio. A própria religião não é poupada, mesmo por trás da aparência de um teísmo duro e puro da profissão de fé, do cultivo do ateísmo do coração. Uma contradição, claro. Uma forma de incredulidade particularmente odiosa, que Jesus trespassou, de uma vez por todas e para sempre, até ser crucificado por ela. A morte do Filho, no entanto, não é por retaliação, mas por conversão. Essa conversão parece, no tempo presente, ser um verdadeiro tema cultural, uma questão social, um imperativo global.
A celebração cristã da ressurreição de Jesus é um apelo à resistência humana contra o ateísmo do coração: um ponto de aliança para crentes e não-crentes, antes que ele consiga acostumar os filhos da geração vindoura. Os mortos oferecem um álibi, aparentemente, à nossa indiferença, convidando-nos a nos reconciliar com ela: o que foi, já foi. Nós, no entanto, não temos intenção alguma de considerar a morte como um acerto de contas com as injustiças da história. Os sinais das feridas, ainda visíveis no corpo do Ressuscitado, mantêm viva a nossa invocação para a justa redenção de todas as feridas, visíveis e invisíveis, que abandonamos ao próprio destino.
A Páscoa do Senhor restaura o frescor e a força a essa firmeza de fé, oferecendo-lhe a justificação que torna digno de escuta o seu testemunho. Nós participaremos de sua ressurreição. A fé no poder do amor do Filho Jesus, "primogênito dos que ressuscitam dos mortos" (Carta aos Colossenses 1, 18), derrota o ateísmo do coração e honra a obstinação da proximidade entre os seres humanos. A fé que todos devemos redescobrir, para dar sentido à reconstrução das catedrais, é aquela que não abandona ninguém - nem mesmo os mortos - às injustiças da história.
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Este coração a ser curado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU