07 Fevereiro 2019
Ahmad Tayyeb, imã da Universidade Islâmica de al-Azhar, não é um homem de caminhos simples, suaves, persuasivos. Com a comunidade judaica mundial, houve uma tempestade em tempos não muito distantes, assim como com o Vaticano.
A reportagem é de Riccardo Cristiano, publicada em Reset, 05-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ele já estava à frente da al-Ahzar, na época do atentado em Alexandria, quando houve um massacre de cristãos coptas na noite de Natal, e justamente ele sentiu o dever de congelar o diálogo com a Santa Sé por causa do pedido de Bento XVI de proteção dos cristãos contra o terrorismo islâmico. Depois, apurou-se que os idealizadores e mandantes daquele massacre estavam nos palácios do poder cairota.
O que aconteceu? O que tornou possível que, hoje, o mesmo Tayyeb tenha falado da guerra de 1967 sem dizer uma palavra sobre Israel? Ele recordou a dor, os sofrimentos que sofreu na sua Luxor antes e depois daquela guerra, acrescentando apenas que quem a determinou foi a política, não a religião.
E o que o levou a definir o bispo de Roma como “meu irmão”, aquele com quem ele havia considerado que não podia mais dialogar? Não só isso. Desde que as relações com a Santa Sé foram retomadas, o Grande Imã sempre enfatizou o valor do diálogo entre as religiões, vendo naquilo que vive fora desses mundos um problema, uma máquina embebida de individualismo.
É claro, na declaração promovida em 2017 sobre a cidadania, eles não os excluiu, absolutamente, e só isso já era algo enorme para aquele mundo, mas as suas ênfases espirituais não eram “quentes”.
O que o levou a assinar uma declaração conjunta na qual se afirma que o diálogo e o respeito mútuo não devem se referir apenas a quem crê, mas também aos não crentes? É um fato enorme, que abre as portas para cenários impensáveis para a laicidade do Estado e o Islã, para o próprio direito à conversão e para a ideia de que o Estado deve ser regido por uma lei positiva, humana, capaz de unir todos os membros da comunidade nacional.
O que pode tê-lo levado a chegar ao amor pelos não crentes, isto é, lá aonde lhe parecia difícil chegar? A aceitação das outras religiões, na verdade, está no Alcorão, na sua natureza de livro que funda a “religião que crê em todas as religiões”, como alguns definem o Islã. Mas e essa abertura ao não crente e àquilo que se segue?
Todas essas perguntas têm apenas uma resposta: Ahmad Tayyeb se sentiu entendido, acolhido, aceito. Não se sentiu olhado com aquela superioridade que os ocidentais costumam demonstrar em relação ao vizinho árabe, tão reduzido e envolvido em uma crise cultural que os árabes não aceitam, absorvidos como estão pela grandeza do seu passado.
Não, Ahmad Tayyeb se sentiu entendido, aceito, reconhecido. Reconhecido por aquilo que o seu mundo de pertencimento foi e pelas dificuldades que ele atravessa.
Poderia ser outra pessoa senão Jorge Mario Bergoglio o homem que conseguiu isso? Poderia ser outra pessoa senão um homem, um bispo, um papa, do Sul do mundo? Esse é o evento extraordinário que se desdobrou diante dos nossos olhos em Abu Dhabi.
Um refinado intelectual muçulmano, envolvido nos saberes milenares e nos complexos cada vez mais profundos de um mundo que, para sair de uma crise devastadora, precisa de um médico que trate o seu complexo de superioridade (parente próximo do complexo de inferioridade), encontrou em um argentino o médico de que precisava. E disse isso!
“Esta nossa declaração conjunta nasceu em uma mesa na Casa Santa Marta.” Tentemos imaginar essa mesa: na pequena sala de Jorge Mario Bergoglio? Naquele quarto que ele escolheu para viver, em vez dos Palácios Apostólicos, os dois se sentaram um na frente do outro? Na Casa Santa Marta, não há a ostentação dos Palácios Apostólicos, há um homem que mora e trabalha em cerca de 50 metros quadrados, incluindo o banheiro.
A história mudou... O homem que sentia sobre as costas o peso de um desastre, do qual o seu Islã não tem toda a culpa, aquele Islã que tornou grandes Damasco, Bagdá, Cairo, que criou a imortal espiritualidade, sentiu-se aceito por um bom psicólogo que o acolhia em ambientes simples, com a estátua de São José adormecido no móvel de entrada.
O ambiente privado de Ahmad Tayyeb é grande, não enorme, mas os seus escritórios não têm nada de excepcional, de epocal. Lá dentro, tantas vezes, ele deve ter visto a partir das duas janelas os jovens egípcios de hoje que continuam sofrendo, ou, melhor, que sofrem mais do que antes, mais do que nos tempos de Mubarak.
Aqueles filhos do seu Egito sofredores devem tê-lo lembrado dos seus sofrimentos juvenis, em tempos de guerra, mas menores do que o deles. Castrados na cadeia, desaparecidos no deserto branco, condenados a trabalhos forçados, devastados. Como não os reconhecer em tantos outros jovens muçulmanos em fuga desesperada da Síria, do Iraque, do Afeganistão, da Líbia?
Esses jovens inquietam e assustam todo o Ocidente, incapazes de reconhecer nos seus rostos o rosto do Cristo sofredor. Somente um homem soube fazer isso, contra tudo e contra todos, até mesmo correndo o risco da impopularidade entre os seus: aquele homem que o acolhia há algum tempo em um quarto da Casa Santa Marta.
Foi assim, na minha opinião, que Ahmad Tayyeb chegou a se sentir acolhido, reconhecido. E ele reconheceu em Jorge Mario Bergoglio um irmão seu. E então? Então, ele conseguiu não só a aceitar a ideia de cidadania para todos os habitantes dos países árabes, mas também a invocar os cristãos: “Deixem de se sentir minorias, vocês são nossos concidadãos!”.
Séculos de teologia da dhimmitude, que fazia de cristãos e judeus cidadãos de segunda categoria, foram apagados com uma frase, quase uma súplica de igualdade. Algo epocal pode acontecer assim, porque quem se sente aceito... pode ir até as profundezas de si mesmo, à sua verdadeira identidade, sem mais complexos.
Agora são eles, os cristãos do Oriente Médio, que devem se dizer disponíveis para se libertar dos seus complexos, da ideia de que querem ser protegidos, de que somente os déspotas podem salvá-los. A estrada está aberta...
Foi o homem de fé Jorge Mario Bergoglio que possibilitou as condições humanas para esse desbloqueio? Certamente. Mas eu acredito que o fato de ele ser uma pessoa de fé do Sul do mundo foi muito importante. Pela primeira vez eu ouvi Ahmad Tayyeb falando não apenas de “Oriente e Ocidente”, mas também de “Norte e Sul”. Não sei, para mim, não é por acaso...
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Como uma mesa da Casa Santa Marta pode mudar o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU