05 Novembro 2018
Pela primeira vez em 70 anos de existência do estado de Israel, o Brasil pode estar sendo colocado na rota da revolta de um bilhão de muçulmanos. Anunciar rompimento de relações com a Palestina e mudança de embaixada brasileira em Israel para Jerusalém — ato no qual nenhum país relevante do mundo acompanhou os EUA — é coisa gravíssima, séria, que não se faz assim. Não se anuncia isso, mesmo que se planeje voltar atrás depois, porque o próprio anúncio já produz efeitos nefastos. A pior forma de se posicionar nesse problema é tentar agradar Israel a qualquer custo, inclusive porque essa subserviência não é do interesse das forças políticas mais sensatas no interior da própria sociedade israelense.
A boçalidade de Bolsonaro pode fazer imenso estrago nesse assunto. Não é um tema no qual você volte atrás muito facilmente. Palavra de quem escreve sobre ele há umas décadas.
No final de setembro, o poderoso ministro das relações exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, se encontrou com Maduro durante a Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Na semana passada, o vice ministro de finanças da Rússia, Serguei Storchack, estava em Caracas.
No meio de setembro, Maduro esteve em Pequim reunido com Xi Jinping.
Nos dois casos, tratava-se de negociar um socorro financeiro ao governo Maduro.
Diante do crescimento da ofensiva norte-americana contra a Venezuela, China e Rússia estão sinalizando que não pretendem abandonar o governo Maduro.
E o Bolsonaro quer enfiar o Brasil no meio dessa confusão...
Há apenas uma semana era a véspera do segundo turno e a atmosfera das redes sociais estava irrespirável. Quem lembra? Declarações de voto com efusão de sentimentos, derramamentos românticos, votos desesperados, líricos, excepcionalíssimos, linguagem grandiloquente de momento delicado, altivez histórica, pungência moral.
De um lado, aproximava-se o Dia D da expulsão do PT do território ocupado nos últimos 16 anos. Do outro, era a mais importante luta contra o fascismo, a Batalha de Stalingrado, anunciada na épica de um Breno Altman.
Ainda que encenada com inigualável seriedade, a polarização foi uma comédia ideológica. E como toda contenda de narrativas vazias, sua principal eficácia é produzir ineficácia. Satura-se o ambiente de um frenesi improdutivo que exaure as energias e desvia das questões concretas.
É o que o Steve Bannon chama de bombardeio semiótico, um dos instrumentos da nova direita mundial, mas que no Brasil já conhecíamos graças à máquina bestial de fake news de João Santana. A diferença em 2018 foi que o PT provou do próprio veneno usado, por exemplo, contra Marina.
O problema é que, findo o histérico período eleitoral, a produção de ineficácia está sendo prolongada na normalidade. Tanto o governo Bolsonaro pretende fazer as reformas e o ajuste fiscal no meio do ruído das guerras culturais que ele vai extremar; quanto o PT quer recompor sua hegemonia na oposição sem nenhuma mudança real, somente jogando com o velho princípio da unidade das esquerdas contra o avanço das direitas.
Uma terceira margem é urgentemente necessária. Mesmo porque, na configuração atual, Bannon é quem tem razão: na disputa de narrativas, a nova direita já ganhou.
Perguntado pelo jornal O Globo sobre qual era seu plano para a corrupção, o governador bolsonarista eleito no Rio de Janeiro, Wilson Witzel, respondeu que iria implantar um “Disque-Corrupção”, estimulando funcionários públicos a delatarem-se uns aos outros. O próprio Bolsonaro já estimulou, em vídeo, alunos de escolas públicas a delatarem professores que os estivessem “doutrinando”.
Os exemplos se multiplicam: o bolsonarismo se ancora em uma fantasia delatora, tem como horizonte uma espécie de sociedade de dedos-duros, imagina um funcionamento da lei baseado na delação permanente dos maus pelos bons. O poder se encarregaria de confirmar que os maus — os delatados — são mesmo maus e os bons — os delatores, esses solícitos instrumentos da lei — dizem mesmo a verdade que há que ser dita.
Em vários gêneros literários (a novela bizantina, a epopeia, o romance policial, o relato de cavalaria), é bastante comum que o delator seja visto como o ser mais ignóbil e degradado. Em um amplo leque de textos literários escritos nos últimos milhares de anos, o delator aparece como pior que o ladrão ou mesmo que o assassino. Dedo-duro, soplón, snitch, cafteur: em todas as línguas ele é repugnante.
A necessária crítica ao bolsonarismo poderia se inspirar nessas tradições literárias que representam a delação como a escala mais baixa da dignidade humana. Recusar-nos a nos convertermos em uma sociedade de delatores: eis aí um bom começo.
A prova do ENEM deste ano é o Baile da Ilha Fiscal de um progressismo acadêmico que nunca esteve à altura do seu tempo. O evangelho professoral (que votou no "professor" com livros debaixo do braço num país de analfabetos funcionais, que não compra livros e que quando o faz é para se refugiar no coração de um mundo sem coração) agora terá que se defrontar com a brutal indiferença do povo. Não temos legitimidade e encarnamos uma elite cultural cujo compromisso com a sociedade é produzir choques e incômodos. Nós, os inteligentes. Nós, os eruditos. Nós, os que agora seremos governados pelos "burros". O preço a pagar por isso vai ser muito caro.
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