17 Mai 2018
Ao longo dos últimos dois séculos, a crença religiosa tornou-se um problema para um número crescente de pessoas. Desde os primeiros “livres-pensadores” que chocaram o sentimentalismo burguês e a postura moral da era pós-iluminista, até as inundações dos atuais “nones” que não confessam nenhuma afiliação religiosa, a fé tornou-se cada vez menos instintiva.
O comentário é de Paul Lakeland, diretor do Centro de Estudos Católicos da Fairfield University, em artigo publicado em National Catholic Reporter, 16-05-2018. Lakeland comenta o livro The Unmoored God: Believing in a Time of Dislocation de Paul G. Crowley, SJ. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mais interessante ainda, Deus se tornou um problema para muitos que continuam sustentando a fé, até mesmo a fé da variedade tradicional oferecida através de instituições religiosas. O frequentador comum da Igreja de hoje provavelmente tem mais dúvidas do que sua contrapartida de um século atrás, lidando com o complicado equilíbrio entre prática, oração e dúvidas ocasionais.
E o modo do nosso pertencimento religioso moderno e pós-moderno deu origem a uma série de qualificadores para “Deus”. Na lista, há o Deus assassinado de Nietzsche, o Deus oculto de Rilke, o Deus não confiável e infiel de Wiesel, e o Deus da não necessidade de Bonhoeffer. Assim, estudiosos e pensadores, de muitas e variadas maneiras, marginalizaram a solidez assegurada do Senhor do universo absoluto, transcendente, onipotente e amoroso.
O último livro do padre jesuíta Paul Crowley nos oferece outra imagem, um Deus desprendido, alguém cuja própria existência fala aos deslocamentos sociais e existenciais do fiel moderno. Em um afastamento radical do “ou-ou” da fé/descrença, e com um retrabalho igualmente impressionante dos atributos de Deus, Crowley argumenta que um Deus deslocado não apenas fala eloquentemente ao fiel moderno deslocado, mas também, de modo significativo, é realmente mais fiel ao Deus da Escritura. Em deslocamento, poder-se-ia dizer, tanto o fiel quanto Deus encontram seu “eu” mais verdadeiro.
“O Deus desprendido: acreditar em tempos de deslocamento”, em tradução livre (Foto: Divulgação)
Sua introdução começa com um rápido levantamento do declínio da crença em Deus, mas continua destacando aqueles pensadores modernos que desafiam tanto o Deus dos ateístas quanto o da filosofia clássica. De uma forma ou de outra, perdemos nosso domínio sobre Deus e ainda ansiamos pelo retorno de Deus. Nesse anseio, há a chance de encontrar Deus de novo, como os discípulos no caminho para Emaús, que passaram do desespero para uma nova consciência que deixou seus corações queimando por dentro. E, ao fazer isso, eles se reconectaram com o Deus das Escrituras judaicas, cujo “eu” verdadeiro não tinha morada fixa. A Arca da Aliança – assumamos – foi feita para estar em movimento.
Crowley expõe seu argumento em cinco capítulos breves, mas densos. O primeiro revisa diversas teorias sobre por que crer em Deus hoje é mais difícil do que antes, defendendo, no fim, como causa principal a separação entre fé e razão no mundo moderno. Deus se torna dispensável quando a ciência declara que tudo, exceto a ciência, é mera opinião.
Mas, ao mesmo tempo, o Deus deslocado ou desprendido, aquele que não tem mais um lugar fixo nos céus, pode falar – pensa Crowley – para a pessoa deslocada de hoje que quer algo espiritual, mas não consegue encontrá-lo nas noções tradicionais do divino.
Um segundo capítulo explora como o desafio que a existência do sofrimento sempre apresentou à fé tradicional deve ser repensado de tal modo que o mistério do sofrimento e o mistério de Deus convirjam.
O terceiro capítulo torna isso muito mais claro, explorando a kénosis ou autoesvaziamento de Deus em Jesus Cristo. Em Cristo, Deus encontra o sofrimento e a morte da condição humana, e Deus inspira a pessoa de fé a ir ao encontro do “outro” deslocado (capítulo quarto).
Assim, o discipulado do Deus deslocado ocorre quando a pessoa de fé ferida se torna a pessoa que cura o mundo em nome desse Deus (capítulo quinto).
Em um epílogo breve, mas teologicamente denso, Crowley explora a afirmação rahneriana de que o futuro da fé é tanto mistagógico quanto missionário. Aqui, ele retorna ao desconforto expressado por ele em sua introdução, com as duas tendências da prática moderna de reduzir a fé ao assentimento a proposições, por um lado, ou, por outro, de substituir algo vagamente espiritual pelos caminhos muito desgastados da prática religiosa tradicional.
A mistagogia frequentemente significa iniciação a práticas espirituais, e, de fato, na tradição católica, a palavra tem sido usada para se referir a um estágio tardio na introdução dos catecúmenos aos ritos sacramentais, mas aqui – seguindo Karl Rahner novamente – o significado está mais próximo da palavra “místico”.
Assim, os motivos para crer novamente serão encontrados no ingresso orante na crença cristã, que demanda um ato de autotranscendência, que, por sua vez, leva a uma nova energia para o discipulado. No batismo (aqui está a raiz do significado da mistagogia novamente), o fiel chega a ver Jesus e se move para o tipo de discipulado que leva o amor de Deus para além das fronteiras dos fiéis.
O que Crowley mistura aqui com tanto sucesso é a imagem dos discípulos em Emaús, com seus corações queimando por dentro no encontro com Cristo, e o impulso à missão representado na visão da Samaritana no poço, uma descrente a quem Jesus proclamou o reino de Deus.
Este é um livro encantador e particularmente pessoal. Você sente o autor em cada página, sua dor pela condição do mundo, sua compaixão pelo sofrimento do mundo e, pelo menos, um pouco de sua frustração com aqueles que definem a fé pela doutrina e com aqueles que rejeitam a doutrina em favor de “sentimentos” espirituais.
Talvez o assunto pudesse ser ampliado ao se abordar seu caráter não dialético. O sofrimento e a dor são um lado da vida cristã; o outro é aquilo que o Papa Francisco chama de “alegria do Evangelho”, e isso fica menos evidente no texto do que eu gostaria.
Pode ser que o outro lado da dispensação cristã pudesse encontrar um lugar na visão de Crowley se considerássemos que “deslocados” [dislocated] e “desprendidos” [unmoored] não são exatamente sinônimos, embora ele pareça tratá-los como se fossem. Os deslocados são assim porque algo negativo aconteceu com eles; você não se desloca livremente mais do que escolheria deslocar seu ombro. O desprendido, por outro lado, pode muito bem incluir alguns que estão simplesmente “no mar” (trocadilho intencional), mas muitos mais para os quais estar desprendido é uma livre escolha. Eles não estão amarrados e podem zarpar e navegar com confiança em águas abertas.
A kénosis de Deus em Jesus Cristo, como Crowley escreve de modo tão comovente, é o modo pelo qual Deus encontra a negatividade do deslocamento humano. Mas, para Deus, a kénosis é uma decisão livre. Na kénosis, Deus escolhe as águas abertas. O autoesvaziamento, para Deus, é tanto um ato livre quanto um estranho tipo de autotranscendência. O discipulado pode espelhar essa dualidade, como os discípulos de Emaús que decidem voltar a Jerusalém para pregar o reino de Deus.
Crowley conclui com a importante observação de que é aqui “na comunhão dos corações no amor” que Deus reaparece e que acreditar é possível novamente. Desejo apenas uma frase final que compense a única reserva que eu tenho sobre essa excelente e importante meditação sobre a fé, uma frase que fala sobre Emaús e fala a nós sobre a mensagem de Emaús: “E eles fizeram tudo isso com alegria”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Jesuíta propõe um Deus deslocado para um fiel deslocado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU