24 Abril 2018
A fervorosa Bolonha dá ao cinema uma obra que muda mais uma vez a opinião sobre a Itália e a Igreja do pós-guerra. “A cristandade histórica, como se costuma chamar, nem sempre ou, melhor, raramente foi o cristianismo. Quantos séculos ela manteve a instituição da escravidão, a guerra? O racismo ainda vive em terrenos cristãos, nas escolas católicas. Por que traímos o Evangelho assim?” São as palavras candentes que o cardeal Giacomo Lercaro (Gênova, 1891 – Bolonha, 1976), arcebispo de Bolonha de 1952 a 1968, usou e que lhe valeram um público infindável.
A reportagem é de Euronews, 22-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Agora, o documentário Secondo lo Spirito, do diretor Lawrence K. Stanzani, repleto de imagens e de áudios inéditos, como os de um sereno dia que Lercaro passou junto com Aldo Moro, rasga o véu sobre esse protagonista esquecido da Igreja do século XX que, em plena Guerra Fria, se consagrava toda aos pobres na consciência do absurdo dos conflitos armados e da Guerra do Vietnã, em particular.
Um marco do sacerdote incômodo continua sendo a homilia de 1º de janeiro de 1968, em São Petrônio, quando condenou os bombardeios estadunidenses contra o Vietnã do Norte, afirmando que, diante do mal, “o caminho da Igreja não é neutralidade, mas a profecia”.
Eram tempos em grande aceleração. Ainda no início dos anos 1970, em Roma, não era incomum assistir a projeções das filmagens em que as crianças norte-vietnamitas eram assadas pelo napalm da Força Aérea estadunidense e sentir uma sensação de libertação até o aplauso, quando o vietcongues conseguiam derrubar aqueles aviões.
Não falamos de projeções clandestinas, mas de documentários que foram passados nas mostras muito burguesas que o Instituto Ítalo-Latino-Americano (uma criatura da Democracia Cristã) exibia nos seus luxuosos salões do Eur, diante de uma exótica sociedade internacional.
Porém, quatro semanas depois da sua mítica homilia, Lercaro foi convidado a deixar o governo da diocese. O fato de Lercaro ter sido removido e não ter ido embora voluntariamente “por razões de saúde” foi afirmado em 1986 pelo Pe. Giuseppe Dossetti, que esteve ao lado do cardeal durante o Concílio Vaticano II e foi seu pró-vigário.
Na Páscoa de 1968, Lercaro escreveu ao Papa Paulo VI que, “no caso em que ainda estou no centro, nem o procedimento me parece legítimo, nem o mérito, adequado”, e aludiu ao “peso de uma publicação difamatória à qual homens investidos de ofícios junto à Cúria deram uma mão”.
Um caso de inútil “macartismo” italiano, já que o Papa Montini – como afirmou Andrea Riccardi, professor da Universidade de Roma – “tinha começado, naquela época, relações com o presidente estadunidense Lyndon B. Johnson”, talvez com a intenção de propor a Santa Sé como mediadora no conflito da Indochina.
Enquanto os bispos dos Estados Unidos abençoavam a cruzada anticomunista no Vietnã, como Dom Lercaro podia se dar ao luxo de criar problemas? Na realidade, a obra de vigilância anticomunista, provavelmente, era muito ativa na “vermelha” Emília-Romanha, e se deveria recordar justamente a abrangência global dos serviços secretos italianos teleguiados a partir de Washington.
Referimo-nos ao dossiê SIFAR sobre o cardeal Gregory Peter Agagian, de origem armênia, que estava na disputa até o fim com o cardeal Roncalli, que depois se tornou João XXIII no conclave de 1958.
O dossiê, assinado pelo general Viggiani (próximo colaborador do general De Lorenzo), foi enviado ao Vaticano em junho de 1963 a apenas 20 dias do conclave que elegeria Montini ao sólio de Pedro. Naqueles papéis, indicava-se uma ligação perigosa da já idosa irmã de Agagian, Elisabetta Papikova, amiga de um secretário da Embaixada soviética em Roma, ele também armênio. Certamente não era possível eleger um papa “russo”!
O precioso filme Secondo lo Spirito fala ao público com a verdade dos testemunhos e das imagens. Recordamos agora esse grande servidor da cristandade agradecendo também ao canal Tv2000 que transmitiu a obra no dia 22 de abril, em horário nobre, e o fazemos com as palavras que o próprio Giacomo Lercaro nos deixou: “Toda a cristandade deve testemunhar o Evangelho, assim como Cristo o pregou, na sua integridade, na pureza, na sua genuinidade. Ora, vejam que não há escravidão, racismo ou guerra. Devemos aprofundar o Evangelho na vida, na meditação. Não é mais possível viver como espectadores, sem trair o nosso batismo”.
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Macartismo no Vaticano: o caso do cardeal Lercaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU