16 Abril 2018
Christophe Ventura, professor do Institut de Relations Internationales et Stratégiques (Iris), ensina “Geopolítica da América Latina num Mundo Multipolar” e também leciona no Institut Catholique de Paris.
O jovem pesquisador não é apenas um intelectual. É um homem engajado na luta partidária e nas lutas sociais. Ao deixar o Partido Socialista, em 2008, Jean-Luc Mélenchon criou o Parti de Gauche como alternativa para a esquerda francesa, decepcionada com a deriva neoliberal do PS.
Ventura participou da fundação desse partido, do qual foi o secretário-nacional para relações internacionais, até 2015. Nesse cargo ele lançou as relações bilaterais entre o Partido dos Trabalhadores e o Parti de Gauche.
O pesquisador e professor concedeu entrevista à Leneide Duarte-Plon, publicada por CartaCapital, 16-04-2018.
Que análise o senhor faz do que se passou no Brasil em 2016 e do impeachment de Dilma Rousseff?
O que se passou com o golpe de Estado institucional é algo que deve interessar ao mundo inteiro, não apenas ao Brasil. O golpe possibilita prefigurar novas formas do autoritarismo político aplicável pelo capitalismo em países-chave da geopolítica internacional, quando essas nações são dirigidas por governos que não correspondem suficientemente às exigências das multinacionais, dos setores financeiros e do mercado.
Desse ponto de vista há um laço entre o golpe de Estado e a restauração neoliberal que tenta impor-se em toda parte sob formas diversas, até pelas urnas, como na Argentina, com Macri.
Em sua opinião, os Estados Unidos estão por trás do golpe no Brasil?
Creio que não é um problema brasileiro. Há fatores internos e externos que se combinam e podem produzir dinâmicas e criar pressões para chegar a uma situação específica. Está muito claro que os Estados Unidos têm uma agenda para o Brasil. Ela visa, primeiramente, a rendição total da esquerda brasileira e ter um país que se realinha à política e aos interesses tradicionais de Washington.
É também um plano que visa captar recursos naturais numa visão que os Estados Unidos têm, que era muito marcante sob Barack Obama e que se define também com Donald Trump. Trata-se de colocar a América como polo e líder energético desses recursos naturais em nível mundial.
Os Estados Unidos estão preparando sua autonomia e independência energética e, dessa forma, querem pôr as mãos num certo número de recursos naturais e conservar alianças de vassalos com os países do continente. E, nesse contexto, o Brasil tem um lugar importante na geopolítica americana. Na hora do impeachment houve uma não reação de Washington e isso é uma forma de expressão.
Pode-se dizer que o processo de Lula é um procedimento stalinista, no sentido de que o poder procura afastar o seu inimigo por meio de um recurso montado e sem provas?
Se consideramos que os processos stalinistas foram uma inovação trágica e cínica, porque encenavam com o respeito às formas, à legalidade, à Constituição e às normas processuais, para mostrar numa espécie de teatro abjeto o respeito da diversidade dos poderes, das instituições. Mas o único objetivo já estava definido, pois, no caso do stalinismo, era a eliminação do homem que se queria destruir e perseguir. Sua eliminação e da sua família.
Pode-se considerar que o que se faz a Lula é uma espécie de stalinismo de mercado, porque o que está em jogo é eliminar um homem, um percurso, uma história, um mito, um imaginário em torno dele, além de também eliminar toda a possibilidade de um poder político que o ex-presidente encarna.
Por que os oligarcas voltaram ao poder?
Eles identificaram uma fraqueza no governo de Dilma Rousseff. Sua fraqueza vem do fato de que ela perdeu a ligação com seus setores de apoio tradicionais. Antes da reeleição havia uma vaga de contestação social por parte de pessoas que tinham se beneficiado com as políticas de Lula, de Dilma e do PT, mas, diante da crise econômica, havia contestações.
Dilma foi eleita num programa de garantia de continuidade social. Quando se viu reeleita, como François Hollande em 2012, procurou acordos com os setores financeiros e bancários, os setores dominantes, a burguesia brasileira. Tudo isso ao preço de uma política de austeridade, de ajuste. Pode-se dizer, a posteriori, que houve um teste da reação do partido, de Lula...
O senhor considera que a reação do partido não foi à altura do ataque?
A posteriori, sim. Penso que, depois do caso do chamado mensalão, a oligarquia considerou que podia atacar porque a reação não foi tão forte o quanto ela poderia esperar.
O silêncio do Partido Socialista e do Quai d’Orsay sobre o golpe de estado no Brasil revela algo? O presidente Emmanuel Macron declarou publicamente que a Venezuela era uma ditadura, mesmo sabendo que Nicolás Maduro é um presidente eleito.
O silêncio do Partido Socialista está ligado ao fato de que o PS perdeu o contato com a América Latina de maneira geral. Nesses últimos anos, o PS organiza suas relações por meio da Internacional Socialista. Nela, vários partidos fazem parte das oposições aos governos de esquerda na América Latina. Eles não compreendem muito o que se passa.
Não compreenderam nada sobre a Venezuela, o Equador e outros. Com o Brasil é mais ou menos a mesma coisa. E o mal-estar do PS com o Brasil não data de Dilma. Ele já existia na época de Lula. O apoio do PS ao lulismo e a Lula sempre foi limitado. Penso que, na França, sempre se preferiram governos que fazem uma política favorável aos interesses das multinacionais.
O senhor poderia resumir os princípios do “populismo de esquerda” e da “democracia radical” no pensamento de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau?
O princípio é a análise de um momento político numa sociedade. O populismo é sempre uma análise da conjuntura política em um dado momento. Ele identifica e observa os momentos de ruptura entre a maioria da população e as instituições, as organizações que devem representar essa população no nível do Estado, das organizações sindicais, políticas etc.
Diante desse momento de distanciamento político há dois caminhos possíveis: o primeiro procura radicalizar a democracia e o outro leva a formas de poder autoritário. A análise de Mouffe e Laclau é que a crise democrática é também uma oportunidade para radicalizar a democracia, e isso significa reconstruir o campo político, reconstruir a representação política.
O populismo de esquerda é uma estratégia de como construir novos atores políticos capazes de levar às reivindicações e às demandas populares de democracia. O populismo de esquerda trabalha com as demandas de democracia e as demandas diversas da população.
A esquerda vive uma crise na Europa e na América do Sul?
Na Europa, ela está em crise por diversas razões. Primeiramente, porque se autodestruiu em duas etapas: a primeira depois do desmoronamento da URSS e do comunismo de Estado, que foi um choque sistêmico para a esquerda, que ficou muito enfraquecida.
O segundo ato foi a conversão da social-democracia ao neoliberalismo. A esquerda de governo abandonou os engajamentos da social-democracia (um pacto entre o capital e o trabalho) em função de um alinhamento à ideia de que um só mundo é possível e uma só sociedade é possível, o capitalismo liberal. Foi esse segundo ato que matou a esquerda.
E na América do Sul?
O que aconteceu na Europa entre 2000 e 2010 houve na América Latina no fim dos anos 1990. Um novo ciclo foi iniciado com Chávez, Lula etc. Hoje, a crise da esquerda latino-americana tem outras razões. A primeira está ligada à questão econômica. A esquerda viu-se confrontada com uma crise econômica que não previu. Uma crise global ligada a 2008 e ao desmoronamento do sistema financeiro mundial. Para os latino-americanos, é a crise das matérias-primas. E isso não foi previsto pela esquerda do continente.
Esta chega ao poder em circunstâncias raras na história da esquerda. Em geral, ela chega ao poder quando há uma crise e é solicitada para consertar o desastre. Na América Latina, a esquerda chega ao poder quando a economia está tendo um crescimento e ela não estava sendo esperada. O mercado latino-americano é dependente dos mercados mundiais: quando o centro da economia mundial vai bem, as coisas também andam bem por lá.
E quando o centro da economia mundial não vai bem, ela também vai mal. Não há plano B. E a gestão da crise econômica tornou-se uma crise social e, depois, uma crise política em diversos países. A esquerda latino-americana ficou paralisada por esses três fatores e não conseguiu modificar a tendência. Mas há também o desgaste do poder.
Na América Latina, os ciclos longos da esquerda democrática que estava no poder por 12 ou quase 15 anos são algo inédito no nível planetário. O poder desgasta, o poder corrompe, o poder cria distâncias, enfraquece a relação da mobilização militante com a gestão desse poder.
Num texto assinado por Jean-Luc Mélenchon, “Lula e Nós”, ele relembra que Dilma Rousseff tinha evitado encontrá-lo, com medo de melindrar François Hollande. O senhor pode contar essa história?
Jean-Luc Mélenchon esperava uma atenção ou um sinal de solidariedade mínima da parte de Dilma Rousseff, quando ela veio à França. Aparentemente, esse sinal nunca veio. A decepção de Jean-Luc Mélenchon é a mesma que ele tinha tido com Lula, pois ele pensava que os dirigentes do PT, Lula e Dilma Rousseff, nunca expressaram um sinal de apoio à sua luta política de romper com a social-democracia convertida ao neoliberalismo para construir outra força política.
Ele nunca teve um sinal da parte deles, quando vieram à França. Isso o deixou magoado sobretudo porque Mélenchon sempre foi um ardente defensor e embaixador, na França e no Partido Socialista, de Lula e Dilma Rousseff. Mesmo antes, nos fins dos anos 1990, quando Lula encontrou Jospin, o Partido Socialista sempre olhou Lula e Dilma do alto, com certa arrogância.
Mas, entre o PT e o Parti de Gauche, que Mélenchon fundou em 2008, houve laços e conversas bilaterais. A partir de 2012, eu mesmo organizei isso com Rui Falcão, então presidente do PT. Tínhamos organizado o Fórum Social Mundial em Belém, em 2009, e oficializamos as relações entre o Parti de Gauche e o PT, que até então tinha na França relações oficiais apenas com o Partido Socialista e o Partido Comunista.
Os BRICS vão sobreviver ao desmoronamento da democracia no Brasil? Acredita que o País vai deixar essa aliança político-econômica que representa 40% do PIB mundial?
Penso que os BRICS têm um problema independentemente do Brasil e este vai ter cada vez menos influência no bloco, que não é mais essa contrapotência hegemônica, esse contraprojeto hegemônico que se esperava. O Brasil e seus novos poderes querem se realinhar na tradição dominante das alianças nacionais.
O que o poder brasileiro quer hoje é gerenciar seu próprio servilismo, sua posição de vassalo nas relações internacionais. Com os Estados Unidos, mas também com os chineses, que são os primeiros parceiros comerciais do Brasil hoje. Não vão cortar completamente os laços com a China e os BRICS, mas vão gerir uma posição de vassalos.
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"O poder brasileiro quer hoje é gerenciar seu próprio servilismo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU