14 Abril 2018
"Eu, que segurei o microfone da TV Brasil ao vivo em meio aos manifestantes sem nenhuma pressão ou ameaça na sexta-feira e no sábado, temi quando vi alguns mais exaltados escalarem e tentarem derrubar o portão de onde sairia o carro levando o ex-presidente pra PF", escreve Priscilla de Paula, jornalista, em texto publicado por O Estado de S. Paulo, 13-04-2018.
Priscilla de Paula, editora, repórter e apresentadora. Atualmente na TV Brasil. Autora da página e do canal Mãe Sem Receita no Facebook e no YouTube. É mãe do Rafael e da Gabi.
Há mais de uma semana estou tentado processar esse turbilhão, desde que a prisão do ex-presidente Lula foi decretada. O dia da decisão do juiz Sérgio Moro teria sido pra mim um dia comum, em meio a uma crise com a profissão, como eu nunca antes tinha experimentado.
Era o começo da noite daquele dia 05 de abril. Faltava pouco mais de uma hora pra eu ir embora da TV – sempre correndo pra por as crianças na cama, quando fui escalada pelo meu chefe para fazer as entradas ao vivo da frente do Instituto Lula, para os jornais da noite. Hesitei, já que tinha ido vestida pra cumprir meu papel de editora. Mas a minha alma de repórter me levou à missão. Confesso que sempre quis viver datas importantes na rua, pra poder falar sobre elas quando virassem história.
Pois bem, o marco histórico veio num combo pra mim. O fato nem precisava ser esse, mas Lula foi preso na véspera dos meus 40 anos. Era dia do jornalista e, sem me dar conta da data, fiquei o sábado inteiro de plantão no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, onde o ex-presidente passou duas noites antes de se entregar.
Curioso porque, dias antes, cheguei a dizer na análise que tinha vontade de rasgar meu diploma, de tanta frustração (essa é outra longa história). Mas, naquela ocasião – um sábado que seria de folga mas virou plantão, em que tive de desmarcar tudo o que estava planejado pra me preparar para o meu aniversário, eu estava completamente envolvida com os fatos.
Uma das coisas que me motivou durante a cobertura foi a certeza de poder contar sobre isso com propriedade para os meus filhos, que um dia vão ler essa história nos livros e/ou nos arquivos digitais. Os dois sabiam que a mãe estava fazendo um trabalho importante, enquanto o pai cuidava deles.
Eu tive a chance de viver e de ver tudo acontecer. Estava motivada a entender a mobilização no ABC em torno do ex-presidente mais popular do país. Queria observar o comportamento da militância, saber quem eram os manifestantes e apoiadores, ver as reações do PT, observar e ouvir, de perto, o próprio Lula naquele momento tão desafiador.
Quanta tristeza. Quanta decepção e sonhos desperdiçados. Quanta esperança arruinada. Quanta incerteza e dúvidas.
Fiquei admirada com a quantidade de pessoas com nível superior e até de intelectuais reconhecidos, além de jovens e de famílias. Cheguei a entrevistar um casal com bebê de colo que fez questão de estar lá com a filha “nesse momento tão importante”. Boa parte estava ali pra defender o direito de Lula não ser preso antes que se esgotassem todos os recursos. Pelo que compreendi, esse é o verdadeiro sentido do “Lula Livre”. Pra minha surpresa, esses manifestantes eram até mais numerosos do que os militantes do MST e do MTST, que costumam ser convocados pra resistência.
Vi o ex-senador Eduardo Suplicy ficar com os olhos marejados e a voz embargada, durante uma entrevista. “Você não acha que é um momento pra ficar emocionado?”, me devolveu, com gentileza, a pergunta totalmente fora da cobertura tradicional.
Mas também vi muitos militantes motivados por paixões. Aquele tipo comum nas torcidas organizadas de qualquer time. E foi essa paixão desmedida que quase colocou Lula e o PT numa enrascada, na noite da entrega. Como sair do prédio cercado?
Eu, que segurei o microfone da TV Brasil ao vivo em meio aos manifestantes sem nenhuma pressão ou ameaça na sexta-feira e no sábado, temi quando vi alguns mais exaltados escalarem e tentarem derrubar o portão de onde sairia o carro levando o ex-presidente pra PF.
A saída era uma incógnita que eu achava que fosse levar muito mais tempo. Se dependesse só da minha vontade, eu teria resistido bravamente até o fim. Mas, depois de tantos atrasos na previsão do desfecho no ABC, e de muito cansaço físico, meu corpo se rendeu. Passei o bastão para um colega que estava lá pra me render.
Se havia coesão entre a maior parte dos manifestantes, a saída de Lula e a prisão, que eu não testemunhei, só reforçaram a divisão do país. Fora de lá, o que mais restou foi o preconceito, o ódio e a intolerância. Sentimento que está nas ruas, nas escolas dos nossos filhos, nas redes sociais, nas mensagens disseminadas por Whatsapp e até entre muitas famílias.
Aquele momento histórico, eu já vivi como jornalista. Agora, como mãe e cidadã, estou buscando condições para ajudar a reconstruir o presente e a cuidar do futuro, da melhor maneira possível. Com justiça e sem paixões.
Tem vídeo também [clique aqui], porque eu acredito que cada um de nós pode fazer a sua parte para gente conseguir construir uma cultura de paz.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como criar filhos ponderados em tempos de ódio e paixão por Lula - Instituto Humanitas Unisinos - IHU