23 Março 2018
Agora que "Lettergate", o caso surreal sobre uma carta do emérito Papa Bento XVI, teve seu desfecho com a renúncia do Monsenhor Dario Viganò da Secretaria do Vaticano para as Comunicações, parece que é hora de tirar conclusões mais amplas.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 22-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Recapitulando, os pivôs do caso sobre uma carta de Bento XVI em resposta a Viganò, que tinha pedido ao papa emérito para comentar sobre uma nova série de volumes sobre a teologia do Papa Francisco, publicada no quinto aniversário de sua eleição, em 13 de março.
Inicialmente, Viganò citou apenas alguns parágrafos da carta em um comunicado de imprensa, juntamente com uma foto, que depois se descobriu que foi alterada digitalmente. Todo o texto acabou vindo a público, mostrando que Bento tinha realmente se recusado a comentar sobre os volumes, em partes devido a objeções de um dos autores.
Na quarta-feira, o Vaticano anunciou que Viganò renunciou e divulgou tanto a carta de Viganò ao papa Francisco como a resposta do pontífice pedindo a Viganò para permanecer na Secretaria para a Comunicação, agora como "assessor".
Que lições devem ser aprendidas?
Primeiro, a mais óbvia: quando se tem uma carta do Papa em mãos, mesmo que de um papa emérito, só há duas opções sobre o que fazer. Ou se publica na íntegra ou guarda para si.
Não importa o quanto se pense que a comunicação é privada, não há possibilidade de uma carta do papa se espalhar depois que alguém a torna algo importante na mídia, que é exatamente o que Viganò fez, neste caso. Ele claramente queria o título "Bento diz que ideia de ruptura com Francisco é tola", bem como que as credenciais teológicas de Francisco fossem reconhecidas por uma das maiores mentes teológicas a estar no papado.
São desejos compreensíveis, mas o preço deveria estar claro - é preciso liberar o texto completo, incluindo a parte em que Bento se recusa a comentar sobre a série e reclama da inclusão de um ensaio escrito pelo padre Peter Hünermann, um teólogo liberal alemão que havia criticado Bento ao longo dos anos.
Para ser sincero, esses detalhes não alterariam o contexto geral, que é a rejeição de Bento da noção de que Francisco é totalmente prático e não tem nenhuma formação teológica, enquanto Bento tem grande formação e nenhuma compreensão da realidade concreta.
Moral da história: em relação a letras de qualquer papa, é tudo ou nada.
Em segundo lugar, o destino de Viganò parece sugerir que Francisco pode estar repensando sua inflexibilidade típica quando pessoas escolhidas por eles estão sendo atacadas.
Quando o monsenhor Gian Battista Ricca enfrentou críticas como prelado do banco do Vaticano, Francisco o defendeu, assim como fez até agora com o bispo Juan Barros no Chile. Ainda neste caso, a demissão de Viganò foi aceita muito rapidamente, num caso que não é tão grave quanto acusações de má conduta sexual (caso Ricca) ou encobrimento de abuso sexual (caso Barros).
Reconhecidamente, a diferença também pode ser que Viganò nunca foi bispo, talvez refletindo uma certa cautela de Francisco desde o início, bem como que Viganò teve avaliações mistas em seu próprio âmbito de atuação. Ainda assim, a queda rápida pode significar uma nova disposição por parte do Papa Francisco de escutar quando as pessoas dizem que alguém em particular tornou-se insustentável em sua atual posição.
Em terceiro lugar, Viganò é um exemplo clássico da regra que o assessor do rei raramente é popular, principalmente com as pessoas cujas cabeças está cortando.
Ex-chefe da TV do Vaticano, Viganò foi escolhido para liderar a Secretaria para a Comunicação em junho de 2015, no intuito mais ou menos explícito de economia de escala entre os vários veículos de comunicação do Vaticano, o que, na prática, significa corte de orçamento e de pessoal. Ele realizou a tarefa, derrubando estruturas e revendo funções, de uma forma que não deixou os funcionários muito contentes.
Viganò também era conhecido por ser inacessível à equipe e por suas visões contraditórias da reforma. Muitos observadores sabem que a reforma está muito atrasada e talvez pudesse ter sido feita por meio de uma abordagem diferente. É evidente que, conforme a pressão em torno de Viganò aumentou ao longo da semana passada, não havia muitas pessoas falando em sua defesa.
Claro, Viganò não ficará inteiramente fora de cena daqui para diante. Durante uma reunião na quarta-feira, funcionários da Secretaria para a Comunicação foram informados de que sua partida não significa que o processo de reforma acabou. Eles também disseram que por enquanto não se sabe qual será sua função de assessor.
Talvez a maior lição seja que se optar por uma posição radical no ambiente de trabalho - embora seja justificado ou essencial em alguns casos - é provavelmente irrealista esperar uma rede de segurança quando a situação ficar difícil.
Em quarto lugar, a saída de Viganò cria mais uma oportunidade para internacionalizar as comunicações no Vaticano. Seu inglês não era dos melhores, e muitas vezes ele parecia mais preocupado com o que o Avvenire e o La Stampa (dois jornais italianos) pensavam do que o New York Times e o Le Monde.
O Vaticano já colocou o estadunidense Greg Burke, jornalista veterano, na Sala de Imprensa (o que, embora tecnicamente sob a Secretaria para a Comunicação, na realidade ainda responde mais à Secretaria de Estado.) Uma figura mais internacional poderia dar ao Vaticano uma perspectiva mais ampla - especialmente, como dizem que pode acontecer, se o bispo irlandês Paul Tighe, atualmente o segundo funcionário mais importante do Conselho para a Cultura, for o sucessor de Viganò.
Em quinto lugar, a linha de falha básica entre fãs e críticos de Francisco que influenciam como se vê praticamente tudo o que se refere a este papado também está estruturando a forma como as pessoas percebem a caso “lettergate”.
Alguns admiradores de Francisco parecem inclinados ao estilo de demissão de Viganò como um ato nobre, um caso de usar de seu poder para proteger o Papa Bento XVI de parecer mesquinho por se recusar a comentar sobre a série por sua objeção a uma contribuição de um antigo teológico.
Os críticos, por outro lado, não apenas veem o caso como a mais recente confirmação da falta de aptidão geral da equipe de Francisco, mas como um ato de desrespeito ao papa emérito, um caso de tentativa de "censurar" ou “calar” o que ele realmente pensa.
Na verdade, não há nenhuma indicação de tensão entre Francisco e Bento XVI pessoalmente, e há muitas razões para acreditar que os dois genuinamente gostam e admiram um ao outro e se veem numa continuidade. Claramente, no entanto, o mesmo não pode ser dito de muitos dos mais fervorosos devotos de cada um, que muitas vezes veem a situação em termos de opções rivais para a Igreja.
Em um certo nível, "lettergate" provavelmente vai ficar como um dos escândalos mais desnecessários do Vaticano de todos os tempos, um caso que poderia ter sido facilmente evitado com alguma premeditação sobre liberar apenas uma versão expurgada do texto de Bento XVI.
Por outro lado, também trouxe à luz a tensões reais, tanto dentro da Secretaria para a Comunicação sobre o que "reforma" realmente significa como na Igreja mais ampla sobre em que medida as visões de Francisco e Bento XVI estão realmente em harmonia. Nesse sentido, talvez, provocou uma reflexão útil - até mesmo para Viganò, que agora deve ter mais tempo livre.
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Escândalo 'Lettergate' desnecessário, mas útil para emergir tensões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU