20 Março 2018
"Ribeiro da Costa não negava sua simpatia pela intervenção dos militares. Ao contrário, franqueou publicamente seu apoio e, naquele exato momento, ali estava para emprestar a força de seu cargo à consumação institucional do golpe de 1964. Uma conduta distinta das palavras proferidas no julgamento de 1955, depois que os militares impediram o retorno de Café Filho ao cargo de presidente da República", escreve Felipe Recondo, jornalista formado pela Universidade de Brasília, sócio e diretor do site Jota, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 16-03-2018.
À saída da Câmara dos Deputados, o presidente da casa, Ranieri Mazzilli, acomodou-se num carro de cor creme, particular, ao lado do presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, e de dois seguranças. Era madrugada e tempo de chuva na desértica capital, Brasília. Assistindo àquela cena estava o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ribeiro da Costa, convidado, como agente externo, para acompanhar os desdobramentos da sessão extraordinária do Congresso naquela madrugada. Ribeiro da Costa emprestava a legitimidade do Poder Judiciário ao golpe contra o presidente João Goulart.
Adaucto Lúcio Cardoso, deputado udenista e um dos apoiadores do movimento político que se desenvolvia naquela noite, vendo os presidentes da Câmara e do Senado dentro do carro e o presidente do Supremo de fora, sozinho e a pé, intercedeu. O ministro Ribeiro da Costa foi convidado a se acomodar no banco de trás para acompanhar os presidentes da Câmara e do Senado ao Palácio do Planalto.
A pé, uma comitiva de 70 a 100 pessoas faria o curto trajeto entre o prédio da Câmara e o Palácio do Planalto. Minutos depois, e menos de 400 metros vencidos sob chuva, parlamentares se depararam com a porta cerrada do Planalto. Alguém sugeriu que ela fosse arrombada, mas um parlamentar lembrou que o grupo poderia entrar pela garagem. Os homens se puseram a caminhar para contornar o prédio, mas dois soldados que faziam a segurança do palácio apontaram as armas para o grupo.
O deputado Carvalho Sobrinho (Arena-MG) quis avançar na direção de ambos, mas outro parlamentar gritou ao fundo: “Menino, vá chamar o seu comandante!”.
Os soldados deram a volta e falaram com o capitão que estava no comando aquela noite. Sem relutância, ele deu passagem aos deputados e senadores. O grupo adentrou o prédio e encontrou todos os elevadores bloqueados. O mesmo capitão que lhes abrira a porta indicou a escada estreita de serviço, por onde poderiam subir ao terceiro andar, onde ficava o gabinete da Presidência.
Eram 3h45 da madrugada do dia 2 de abril de 1964 quando Ranieri Mazzilli foi empossado presidente da República, amparado pelo movimento dos militares e na presença dos presidentes do Senado e do Supremo. Os três Poderes, juntos, decretaram o fim do governo João Goulart e o início de uma nova fase na República.
Ribeiro da Costa não negava sua simpatia pela intervenção dos militares. Ao contrário, franqueou publicamente seu apoio e, naquele exato momento, ali estava para emprestar a força de seu cargo à consumação institucional do golpe de 1964. Uma conduta distinta das palavras proferidas no julgamento de 1955, depois que os militares impediram o retorno de Café Filho ao cargo de presidente da República.
Naquele momento, Ribeiro da Costa afirmou estar em jogo o futuro do regime democrático. Como admitir, ele questionou, que o presidente da República fosse impedido pelo Congresso de exercer uma função para a qual fora legitimamente eleito?
Em 1964, seu comportamento foi inverso. O movimento de então não era, como o de 1955, liderado por um militar mais identificado com a esquerda, como o marechal Henrique Lott, que comandou a reação a Café Filho. Certamente isso influenciou a diferença de ação do ministro do Supremo. Depois de apeado o presidente João Goulart, Ribeiro da Costa explicou aos colegas os detalhes de sua participação nos fatos de abril de 1964. Relatou que foi chamado a acompanhar a posse de Mazzilli e ressaltou que não houve como consultá-los quanto a seu comparecimento:
“Rapidamente fiz o meu exame de consciência e de dever profissional e não podendo na hora, naquele instante de madrugada, consultar os meus eminentes colegas, como é regra e estilo nesta casa sobre todos os atos que o presidente deve praticar, principalmente atos dessa magnitude, resolvi eu mesmo assumir a responsabilidade de praticá-lo. […] Fi-lo numa conjuntura extrema e decisiva onde se expunha o país às incertezas inconciliáveis com a ordem legal, a partir daquele momento, não fosse o cargo da presidência da República ocupado, desde logo, por seu detentor constitucional”.
O presidente do STF repetia a versão de que João Goulart havia abandonado o Brasil. E dizia que, em razão disso, era preciso que Mazzilli assumisse de imediato a Presidência da República para “propiciar a estabilidade constitucional, legítima e incontestável” e pavimentar o caminho para a escolha do sucessor de Jango. Apesar desse apoio ao golpe, o Supremo logo viveria os primeiros atritos com os militares. O presidente da corte passaria a enfrentar as tentativas do governo, pressionado pela linha dura, de domar o Judiciário. (...)
A eleição indireta do novo presidente, com o aval tácito do Supremo, consolidou formalmente a nova ordem constitucional. O primeiro ato institucional foi redigido em segredo e promulgado oito dias após o golpe. Vinha assinado pelo autoproclamado “Comando Supremo da Revolução” — formado pelo general Costa e Silva, pelo almirante Rademaker e pelo brigadeiro Correia de Mello.
O texto tinha 11 artigos e colocava de pé a legalidade de exceção: transferia parte dos poderes do Legislativo para o Executivo, limitava o Judiciário, suspendia as garantias individuais e permitia ao presidente da República cassar mandatos, cancelar os direitos políticos dos cidadãos pelo prazo de dez anos e demitir funcionários públicos civis e militares.
E para legitimar esse instrumento com algum grau de embasamento legal, os militares concederam a si próprios poderes constitucionais: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do poder constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do poder constituinte”.
Em relação às competências ou atribuições do Supremo, não houve de imediato nenhuma alteração. A roupagem de legalidade que os militares quiseram vestir no golpe, porém, provocou dificuldades, incompreensões e atritos entre o governo e o STF. Em pouco tempo, o apoio explícito de Ribeiro da Costa ao golpe daria lugar aos primeiros conflitos com o governo e com os militares. Uma das razões, diriam anos mais tarde os próprios ministros do Supremo, era a base legal do golpe: uma mistura de Constituição democrática com atos excepcionais.
Nomeado procurador-geral da República em abril de 1964 e ministro do Supremo em novembro de 1965, Oswaldo Trigueiro reconheceu que o governo Castelo Branco era peculiar ao tentar conciliar o processo revolucionário com a manutenção do Congresso, com a ampla liberdade de imprensa e a plena vigência do habeas corpus.
“Nas nações em estágio de desenvolvimento político equivalente ao Brasil, existe sempre um hiato entre o país legal e o país real. Esse desajustamento é mais acentuado nas transições de caráter revolucionário”, explicou o ministro. Os conflitos entre o governo e o Supremo foram gerados, na essência, por essa separação a que Trigueiro fez referência.
A chamada “legalidade revolucionária” não se confundia com o Estado de Direito. O Supremo julgava seus processos tendo como premissas as leis e o direito vigentes. Os militares não haviam reformado o arcabouço legal que lhes permitisse atingir seus objetivos. Assim, o Supremo julgava de uma forma e o Executivo pensava de outra.
Não havia, portanto, oposição explícita do Supremo ao governo militar recém-empossado. Não havia nem sequer reação pública contra o golpe por parte dos ministros. O STF não praticava o antigoverno, diria anos mais tarde Hermes Lima, nomeado por João Goulart e cassado durante a ditadura. As decisões da corte, da mesma maneira que as políticas do Executivo, faziam parte da missão do Estado de preservar a cidadania, as liberdades e a estrutura jurídica do país. (...)
Havia uma conta política sendo feita pelos ministros. Certa ou errada? O Supremo enfrenta esse julgamento histórico desde então. Essa é uma daquelas perguntas que desafiarão as diversas composições do tribunal por anos a fio. A dúvida se junta à provocação de João Mangabeira, político baiano que fez oposição à ditadura de Getúlio Vargas durante o Estado Novo, no mais duro libelo contra o Supremo: “O órgão que, desde 1892 até 1937, mais faltou à República não foi o Congresso, foi o Supremo Tribunal Federal. Grandes culpas teve, sem dúvida, o primeiro. Teve, porém, dias de resistência, de que saiu vitorioso ou tombou golpeado”.
Vez por outra, algum ministro volta ao tema para rebater Mangabeira. Mas essa, assim como a postura do Supremo durante a ditadura, é uma questão permanentemente aberta. Resposta definitiva certamente não haverá, mas diferentes interpretações sobre os mesmos fatos são absolutamente pertinentes. O tribunal nutria receio fundado de que decisões que contrariassem o governo e os militares fossem desrespeitadas.
Nesses casos, não haveria apenas um conflito entre Executivo e Judiciário. O tribunal teria sua autoridade comprometida. Não teria meios para fazer o governo e os militares respeitarem sua jurisdição.
O Supremo conviveu, em diversos episódios e em diferentes momentos da história, com uma máxima bem resumida num voto do ministro Nelson Hungria diante do golpe que atingiu o presidente Café Filho. Os tanques e as baionetas do Exército “estão acima das leis, da Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal”.
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Segundo novo livro, STF evitou confronto com militares na ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU