19 Dezembro 2017
"O natal desse ano pode recuperar o seu significado real, o Menino já se levantou e está reproduzindo sua mensagem na voz e na ação de pessoas suas seguidoras, algumas que nem O conhecem direito. Cumpre inverter a inversão ideológica falsificadora desse acontecimento, negando as negações que ela impõe ao modo de uma dialética de pensamento, sentimento e ação ancoradas no significado concreto do nascimento do Menino Jesus", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Como toda a armadilha, as da ideologia também disfarçam o grampo de captura das suas presas. Para o significado do natal não atrapalhar outros interesses, ela achou um meio de pressionar desejos sobre coisas, presentes, bolas coloridas, brilhos de papel, árvores artificiais cheias de enfeites, toda uma aparência alheia e distante do Menino Jesus, a Pessoa que deu nome ao próprio natal.
Substituí-lo pelo papai Noel, decorar casas e show rooms, enviar apps e cartões de boas festas, comprar nozes, avelãs e vinhos caros para uma ceia de meia-noite, virou obrigação.
A pobreza, a falta de teto e a negação de hospedagem aos Pais da Criança, levando a Sua Mãe quase parindo para um abrigo improvisado, como acontece ainda hoje com muita mãe favelada, isso tem sido habilmente posto de lado da imaginação coletiva. Assim, o verdadeiro sentido desse Nascimento não seja atualizado e consiga perturbar toda uma cultura ideológica criada por um sistema de propaganda e divulgação com poder suficiente para neutralizar a lembrança de quanto se encontra em causa nesse acontecimento histórico.
O pensamento, o sentimento e a ação da Criança, quando chegou a sua fase adulta, curando doentes, condenando poderes privados e públicos corruptos, convivendo com gente de má fama, conforme os valores predominantes na hipocrisia das classes econômica e politicamente dominantes, colocando-se gratuitamente a serviço de gente pobre e miserável, desmitificando falsas posturas religiosas, semeou na história posterior um outro modelo de poder, de vida, de costumes, muito diferentes e infinitamente superiores aos, então, em voga.
Quem despreza, oprime, reprime, escraviza, odeia e mata gente como aquela que vivia em companhia dEsse Menino, achou uma saída: assassinou-o, sem possibilidade de defesa, numa cruz. Como ainda agora acontece, quando se recorda a sucessão macabra de mártires que seguiram o Seu Exemplo, militantes da causa de libertação dos povos, como Dom Oscar Romero, das/os pobres da terra e dos direitos humanos, como Dorothy Stang, Margarida Alves, Paulo Fonteles, Eugenio Lyra, Rubens Paiva, Ico Lisboa, ateus, atéias, gente presa, torturada, jogada de avião ao alto mar, corpos desaparecidos, as Comissões de anistia e de verdade tentando levar a seus familiares alguma pista de onde possam ser encontrados.
Qual a relação desses testemunhos históricos com o natal? Entre milhares de outras, elas são pessoas que, como o Menino Jesus, independentemente de suas crenças, desejos, sonhos, também não nasceram em vão. São vidas de doação e desapego a serviço de irmãs e irmãos necessitadas/os, generosas e com coragem perseverante até a disposição de morrerem em defesa delas e deles.
Exatamente o contrário da ideologia hoje dominante no natal, muito mais preocupada com o incremento de uma civilização cultural e ideologicamente obcecada pelo ter, o acumular, o egoísmo, a aparência vaidosa do dinheiro, em prejuízo do ser, da consciência da necessidade alheia, inspiradora do Menino. Mais do que ninguém, Ele conhece a diferença entre o dar e o doar-se.
Marx dizia, contra a pseudo ciência e alienação da sua época que era necessário transformar a crítica do “céu” em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito e a crítica da teologia em crítica da política. Se vivesse agora, diante do que estão planejando e fazendo o Papa Francisco e a chamada teologia da libertação, ele não repetiria essa crítica. O preséio está voltando a ser o que é, um abrigo precário e pobre. Está iluminado por outras luzes estrelares, reais e não fictícias, invertendo a inversão da ideologia, parecendo um sinal paradoxal desse fato, o desespero com que essa tenta se defender.
O natal desse ano pode recuperar o seu significado real, o Menino já se levantou e está reproduzindo sua mensagem na voz e na ação de pessoas suas seguidoras, algumas que nem O conhecem direito. Cumpre inverter a inversão ideológica falsificadora desse acontecimento, negando as negações que ela impõe ao modo de uma dialética de pensamento, sentimento e ação ancoradas no significado concreto do nascimento do Menino Jesus. Ateus e crentes talvez possam concordar num ponto chave dessa significação: nascido na mais absoluta carência, sem ter conseguido um lugar onde sequer conseguisse “reclinar a cabeça”, a Criança revolucionou as gentes e o mundo. Muito sintomaticamente, se alguma vez usou uma arma para isso, foi um simples relho para expulsar quem fazia da Sua Casa um balcão de negócios...
Na internet circula um texto de Carlos Drumond de Andrade muito oportuno sobre isso. Tomando o natal como tema, ele ironiza o amor pelo dinheiro e a alienação dos poderes instituídos. Ofereço a você, leitor e leitora, que me honraram em 2017, com leitura e crítica sobre o que escrevo. Pelos dois últimos parágrafos da mensagem desse grande poeta, faço minhas as suas palavras, desejando um muito feliz natal e um 2018 bem melhor para vocês. Até breve. Espero estar de volta por aqui no dia 22 de janeiro:
Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz. O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.
Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível. A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã. O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive. E será Natal para sempre.
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O natal vítima da ideologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU