29 Novembro 2017
Um Nobel de Economia explica: imposto a pretexto de estimular a ciência, sistema de “propriedade intelectual” favoreceu apenas as grandes corporações. Em favor da pesquisa, há alternativas.
O artigo é de Joseph Stiglitz, Dean Baker e Arjun Jayadev, publicado por Project Syndicate e reproduzido por Outras Palavras, 28-11-2017. A tradução é de Maurício Ayer.
Quando o governo sul-africano tentou modificar as leis nacionais em 1997 para beneficiar-se de preços acessíveis dos medicamentos genéricos para o tratamento de HIV/AIDS, toda a força legal da indústria farmacêutica global centrou carga no país, atrasando a implementação e impondo um custo humano. A África do Sul, por fim, venceu a disputa, mas o governo aprendeu sua lição: não tentou novamente tomar nas mãos a saúde e o bem-estar de seus cidadãos em desafio ao regime convencional global de propriedade intelectual (PI).
Até agora. O governo sul-africano prepara-se para concluir uma política de PI que promete expandir substancialmente o acesso a medicamentos. A África do Sul irá certamente enfrentar toda forma de pressão bilateral e multilateral dos países ricos. Mas o governo está certo, e outras economias em desenvolvimento e emergentes deveriam seguir os seus passos.
Ao longo das últimas duas décadas, houve uma grave reação do mundo em desenvolvimento contra o atual regime de PI. Em grande medida, isso se deve a que os países ricos quiseram impor um modelo único para todos os países no mundo, influenciando o processo de definição de regras na Organização Mundial do Comércio (OMC) e forçando sua vontade por meio de acordos de comércio.
Os padrões de PI defendidos pelos países desenvolvidos são tipicamente projetados não para maximizar a inovação e o progresso científico, mas para maximizar os lucros de grandes empresas farmacêuticas e outros atores capazes de influenciar negociações comerciais. Não surpreende, portanto, que grandes países em desenvolvimento, com bases industriais substanciais – como África do Sul, Índia e Brasil [1] – estejam liderando o contra-ataque.
Esses países colocaram na mira principalmente a manifestação mais visível da injustiça da PI: a acessibilidade a medicamentos essenciais. Na Índia, uma lei de 2005 criou um mecanismo único para restaurar o equilíbrio e a equidade à regulamentação de patentes, assegurando, assim, o acesso. Superando diversos desafios nos procedimentos internos e internacionais, a lei conseguiu cumprir as regras da OMC. No Brasil [1], uma ação rápida do governo para tratar as pessoas com HIV/AIDS teve como resultado uma série de negociações bem-sucedidas, reduzindo consideravelmente os preços das drogas.
Esses países estão plenamente justificados em sua oposição a um regime de PI que não é nem equitativo nem eficiente. Em um artigo recente, revimos as discussões sobre o papel da propriedade intelectual no processo de desenvolvimento. Mostramos que preponderantes evidências teóricas e empíricas indicam que as instituições e leis que protegem o conhecimento nas economias avançadas hoje são cada vez mais inadequadas para determinar a atividade econômica global, e são muito pouco propícias a atender as necessidades dos países em desenvolvimento e dos mercados emergentes. Com efeito, elas são prejudiciais para o atendimento de necessidades humanas básicas, como o cuidado de saúde adequado.
O problema central é que o conhecimento é um bem público (global), tanto no sentido técnico de que o custo marginal de alguém usá-lo é zero, quanto no sentido mais geral de que um aumento do conhecimento pode melhorar o bem-estar em termos globais. Isso posto, a preocupação é de que o mercado não forneça conhecimento suficiente e a pesquisa não seja incentivada de modo adequado.
Ao longo do final do século 20, o senso convencional era o de que essa falha do mercado seria retificada pela introdução de outra: monopólios privados, criados por meio de rigorosas patentes estritamente aplicadas. Mas a proteção da PI privada é apenas um caminho para resolver o problema de incentivar e financiar a pesquisa, e foi mais problemático do que o previsto, mesmo para os países desenvolvidos.
Um “matagal de patentes” cada vez mais denso em um mundo de produtos que requerem milhares de patentes não raro sufoca a inovação, com mais gastos com advogados do que com pesquisadores, em alguns casos. E a pesquisa frequentemente não está direcionada a produzir novos produtos, mas a estender, ampliar e alavancar o poder de monopólio assegurado pela patente.
A decisão de 2013 da Suprema Corte dos Estados Unidos de que genes que ocorram naturalmente não podem ser patenteados estimula a pesquisa e a inovação, conforme alegam os seus defensores, ou as impede, restringindo o acesso ao conhecimento. Os resultados são inequívocos: a inovação foi acelerada, levando a melhores exames diagnósticos (por exemplo, para a presença de genes BRCA relacionados ao câncer de mama) a um custo muito mais baixo.
Há pelo menos três alternativas para financiar e incentivar a pesquisa. Uma é contar com mecanismos centralizados de apoio direto à pesquisa, como os Institutos Nacionais de Saúde e a Fundação Nacional para a Ciência nos Estados Unidos. Outra é descentralizar o financiamento direto, por exemplo por meio de créditos tributários. Ou um órgão governamental, fundação privada ou instituição de pesquisa pode conceder prêmios para inovações exitosas (ou outras atividades criativas).
O sistema de patentes pode ser pensado como a concessão de um prêmio. Mas esse prêmio bloqueia o fluxo do conhecimento, reduz os benefícios que derivam dele e distorce a economia. Em oposição, a alternativa a este sistema maximiza o fluxo de conhecimento, pela manutenção de um bem comum criativo (creative commons), como é o exemplo dos softwares livres.
Países em desenvolvimento deveriam usar todas essas abordagens para promover o aprendizado e a inovação. Ao fim e ao cabo, os economistas reconheceram por décadas que o mais importante fator determinante do crescimento – e portanto dos ganhos em desenvolvimento e bem-estar humanos – são as mudanças tecnológicas e o conhecimento nelas incorporado. O que separa os países em desenvolvimento dos países desenvolvidos é tanto um hiato em conhecimento como um hiato em recursos. Para maximizar o bem-estar social global, os formuladores de políticas deveriam estimular fortemente a difusão do conhecimento dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento.
Mas enquanto a argumentação teórica por um sistema mais aberto é robusta, o mundo tem se movido na direção oposta. Nos últimos 30 anos, o regime de PI predominante erigiu mais barreiras para o uso do conhecimento, frequentemente fazendo com que se alargue a distância entre os retornos sociais e privados da inovação. Os poderosos lobbies das economias avançadas que moldaram esse regime claramente colocam os retornos privados em primeiro lugar, o que se reflete em sua oposição em reconhecer os direitos de propriedade intelectual associados a conhecimentos tradicionais ou à biodiversidade.
A atual adoção amplamente difundida da rigorosa proteção de PI também é historicamente sem precedentes. Mesmo entre os países que primeiro se industrializaram, a proteção da PI veio bastante tarde e muitas vezes foi deliberadamente evitada para permitir uma industrialização e um crescimento mais rápidos.
O atual regime de PI não é sustentável. A economia global do século 21 diferirá da economia do século 20 em pelo menos dois aspectos críticos. Primeiro, o peso econômico de economias como as de África do Sul, Índia e Brasil será substancialmente mais alto. Segundo, a “economia sem peso” – a economia das ideias, do conhecimento e da informação – será responsável por uma crescente parcela da produção, de modo similar nas economias desenvolvidas e em desenvolvimento.
As regras relacionadas à “governança” global precisam mudar para refletir essas novas realidades. Um regime de PI ditado pelos países ricos mais de um quarto de século atrás, em resposta à pressão política de alguns de seus setores, faz pouco sentido no mundo de hoje. Maximizar os lucros para alguns, ao invés do desenvolvimento global e do bem-estar para muitos, tampouco faz muito sentido – exceto em termos da dinâmica do poder na época.
Essas dinâmicas estão mudando e as economias emergentes devem tomar a liderança na criação de um sistema de PI equilibrado que reconheça a importância do conhecimento para o desenvolvimento, o crescimento e o bem-estar. O que importa não é apenas a produção de conhecimento, mas também que o conhecimento seja usado de maneiras que coloquem a saúde e o bem-estar das pessoas à frente dos lucros das corporações. A eventual decisão da África do Sul para possibilitar o acesso a medicamentos pode tornar-se um importante marco no caminho que leva a esse objetivo.
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Nota:
[1] Em meio a uma vasta onda de retrocessos, o Brasil também mudou sua atitude em relação à propriedade intelectual, após o início do governo Temer. Em 17/3, o chefe do Executivo anunciou, em reunião no Instituto Nacional e Propriedade Industrial (INPI), a decisão de “agilizar” a concessão de patentes. Acrescentou que isso seria feito inclusive por métodos sumários (conhecidos como PPH, Patent Persecution Highway) e em sintonia com as reivindicações de Estados Unidos e Japão. Ler mais no site do INPI) (Nota de Outras Palavras)
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Stiglitz: por que é preciso negar as patentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU