08 Setembro 2017
Publicamos na íntegra um artigo da última edição da revista La Civiltà Cattolica, n. 4013, 02-09-2017, escrito pelo jesuíta argentino Diego Javier Fares. O texto corresponde ao posfácio do livro publicado pela Congregação para os Bispos por ocasião do 80º aniversário do Papa Francisco (Il cattivo pastore e la sua imagine [O mau pastor e a sua imagem], in Congregação para os Bispos, Papa Francesco ai vescovi [Papa Francisco aos bispos], Cidade do Vaticano, Tipografia Vaticana, 2016, p. 287-299).
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
por Diego Fares
O então padre Jorge Mario Bergoglio escrevera um ensaio intitulado “O mau superior e a sua imagem” [1]. Ele se referia, obviamente, ao superior dentro da Companhia de Jesus que tem uma missão pastoral específica. Chama a atenção que, naquele texto, ele não utilizou a imagem do mercenário que Jesus mesmo contrapõe ao bom pastor, mas assumiu a daquele que “vende a herança recebida gratuitamente” [2].
A venda da herança é sempre uma “liquidação” [svendita]. Por isso, aqueles que vendem a herança são definidos como “guias cegos”. Na raiz de tal profanação, que é sempre um péssimo negócio, há a sua cegueira, a sua falta de discernimento, o fato de não reconhecer o Filho de Deus que veio na carne. Bergoglio a contextualiza no marco da Carta aos Hebreus, que afirma: “Vocês então podem imaginar o castigo bem mais severo, que merecerá aquele que pisou o Filho de Deus, que profanou o sangue da aliança, pelo qual foi santificado, e que insultou o Espírito da graça!” (Hb 10, 29) [3].
A venda da herança não afeta apenas a relação entre o pastor e o Senhor, mas repercute em dano de todo o povo de Deus. Por isso, Bergoglio diz que, para Jesus, o guia cego é “quem não protege o seu povo lealmente” [4].
Pastores com o cheiro das ovelhas [5] e vendedores da herança recebida gratuitamente são duas imagens fortes para caracterizar, respectivamente, a figura do bom pastor e a do mau pastor. A imagem olfativa, o cheiro das ovelhas e a imagem econômica de quem liquida uma herança não é sua, mas de todo o povo, incidem como fogo na memória, melhor do que tantos conceitos morais ou definições abstratas.
Para além das considerações mais românticas, a figura de Judas, o mau apóstolo, ficou ligada ao fato de ele ter liquidado o seu amigo e Senhor por 30 moedas de prata. No pano de fundo, há a imagem dos vinhateiros homicidas, e ressoa a frase funesta de que eles, “ao verem o filho, pensaram: ‘Esse é o herdeiro. Venham, vamos matá-lo, e tomar posse da sua herança’” (Mt 21, 38).
Reconstruindo a história daqueles anos, podemos afirmar que o artigo intitulado “O mau superior e a sua imagem” se completa com outros dois: “O superior local” e os “Exercícios para superiores” [6], nos quais Bergoglio fala da “imagem do superior ideal” [7]. Trata-se, portanto, de uma pequena trilogia em que ele reflete como superior sobre os superiores. Exatamente como hoje, como bispo de Roma, ele reflete sobre os bispos.
Para Bergoglio-Francisco, o superior e pastor é um homem ad aedificationem [8]. Edificar também envolve, além da construção da Igreja com pedras vivas, a capacidade de condenar: “Santo Inácio nos ensina que edificar envolve a capacidade de condenar” [9].
Tal capacidade foi e é um traço distintivo de Bergoglio-Francisco. Os seus “nãos” são claros: “A coisa não anda” [La cosa non va]. A sua primeira homilia programática sobre o trinômio caminhar-edificar-confessar estava centrada na condenação daquilo que “não anda”. Nela, Bergoglio dizia: “Caminhar: a nossa vida é um caminho e, quando paramos, a coisa não anda”. “Se não confessamos Jesus Cristo, a coisa não anda”. Sem a cruz, “não somos discípulos do Senhor: somos mundanos” [10].
O mesmo acontece com os seus “não pode”: “Não se pode conhecer verdadeiramente como pastores o próprio rebanho, caminhar na frente, no meio e atrás dele, cuidar dele com o ensinamento, a administração dos sacramentos e o testemunho de vida, se não se permanece na diocese” [11]. “Não se pode narrar Jesus de forma lamuriosa” [12]. “A missão que a Igreja hoje confia a vocês – e sempre lhes confiou – requer esse olhar que abraça a totalidade. E isso não pode ser realizado isoladamente, mas apenas em comunhão” [13].
Em uma cultura como a nossa, aberta à pluralidade das interpretações, para nos entendermos, não basta afirmar o bem: é necessário explicitar o que, como mal, contrapõe-se completamente a esse bem. Mais ainda, é decisivo que a condenação seja concreta. Não basta condenar o mal no seu estágio final, com uma formulação que acaba sendo abstrata. E também é importante ficar atento ao momento e aos limites de toda condenação. Encontramos uma indicação disso na parábola do joio e do trigo, em que o dono do campo enfrenta o problema com cautela e freia os servos que gostariam logo de extirpar o joio.
Francisco possui esse dom de saber pôr um limite temporal à condenação: “Isto, agora, não”, ou: “Por enquanto, não”. Não se trata de condenações dogmáticas e absolutas: são condenações claras e fortes, mas humildes: “Assim, não, por enquanto não...”, ou: “Agora sim”. “Na vida e no amor, o ‘não’ está a serviço do ‘sim’ [...]. Os princípios negativos ajudam a vida a não se transformar em morte, mas a vida avança e amadurece não à força de ‘nãos’ multiplicados, mas sim mediante a gradualidade de muitos ‘sins’” [14].
Não se consegue afirmar e a realizar o bem enquanto não se condena o mal contrário, mas essa condenação, humanamente, nunca pode extirpar totalmente o mal, o que somente Deus fará no tempo devido. Humanamente, a discrição consiste em neutralizar o mal, de modo que a graça possa seguir o seu curso. A ideia de “neutralizar” o mal sem pretender “extirpá-lo” radicalmente faz parte da pedagogia discreta de Francisco e da sua capacidade de condenação, que se demonstra eficaz no momento em que se elimina o que impede que o Espírito guie a Igreja.
Depois de apresentar uma “rica tipologia bíblica sobre como os traços de maternidade e paternidade de um superior religioso influenciam em relação ao acolher, ao proteger atentamente e ao transmitir com fecundidade a herança recebida” [15], Bergoglio identifica três características do superior que “vende a herança”.
A primeira é a de ser “preguiçoso”, e o seu sinal distintivo é “a má fadiga”. A segunda é que “ele perde a memória”, e o seu sinal característico é “o tédio existencial”. A terceira característica é própria do superior que está “carente de pietas”, e o seu sinal distintivo é “um espírito lamentador”.
Como as aparências enganam – já que aqueles que “vendem a herança” às vezes se passam por justos, como no caso de Ananias e Safira, enquanto aqueles que não a negociam são humilhados e acusados de serem malfeitores, como no caso da casta Susana –, Bergoglio dá como critério seguro a cruz. Se a cruz do Senhor está no meio, pode-se “farejar” a presença de um bom superior; ao contrário, quando aparece o “negociar” e o querer fazer uma boa figura, é provável que se esteja lidando com um mau superior.
A pergunta-chave que cada superior deve se fazer diz respeito aos seus próprios sofrimentos e tristezas, para entender de que sinal são. “Eles o despojam cada vez mais de si mesmo e o aproximam de Cristo crucificado? Então são de Deus, sou a forja da paixão. Alimentam nele algum ressentimento? Propõem-lhe ambições futuras em compensação de insucessos anteriores? Então são do mau espírito, forjam farisaísmo na sua alma, levam-no à esterilidade e o transformam em um asno: Homo cum in honore sit, quasi asinus” [16]. O critério das humilhações – suportadas ou desejadas por amor de Jesus – é o critério fundamental de Inácio, e foi e é o critério fundamental de Francisco.
Bergoglio oferece um último aprofundamento em chave de paradoxo, brincando sobre a diferença existente entre “não ver” e “ser cego”. “Se um superior acolhe a herança recebida e quer transmiti-la fielmente, ele só pode aceitar ‘não ver’ a plenitude dessa herança. Porque a lei da fidelidade a qualquer herança consiste em ‘entregá-la’ e em renunciar ao fato de gozar da sua plenitude” [17]. É a morte do autor do testamento que permite tornar efetiva a transmissão da herança. Esse “não ver” é o contrário do “negociar”, que torna cego quem não quer transmitir a herança, mas sim gozá-la.
As imagens bíblicas que inspiram Bergoglio e que se contrapõem totalmente às escolhidas para ilustrar o que é um mau superior são as de Abraão e dos anciãos Simeão e Ana: pessoas que “têm a coragem de saudar a promessa de longe” e exultaram na esperança (cf. Jo 8, 56).
Completamente opostas a essas imagens são aquelas que Bergoglio escolhe para ilustrar o que é um mau superior: a imagem de Sansão, aborrecido pela vida e enredado pela sensualidade, que perde a força e cai nas mãos dos inimigos que o cegam, de modo que deve recorrer a um desastre para reparar de algum modo o mal causado; a imagem de Esaú, vagabundo e lamentador, que vende a primogenitura por um prato de lentilhas; e a de Ananias e Safira, que enganam e se fazem passar por devotos, enquanto são calculistas e mesquinhas.
Bergoglio contempla os personagens bíblicos e atualiza as suas atitudes, traduzindo-as em imagens atuais, em coisas que vemos cotidianamente. A contemplação é orientada ao discernimento prático, com um desejo premente de incidir realmente na vida.
A “caricatura” que é feita do mau superior opera em favor da verdade: permite neutralizar o poder do mau espírito, que se baseia principalmente no seu escondimento, no fato de não se fazer nota enquanto não se apossou.
No Evangelho, vemos como a ironia de Jesus em relação ao fariseu Nicodemos opera um efeito positivo no seu coração; e, por sua vez, como em outros fariseus, que não querem se converter, ela tem o efeito oposto: o seu coração se endurece ainda mais.
Mas não é isso que acontece habitualmente no nosso mundo, onde os amigos sempre são louvados, e os inimigos, sempre condenados. Não é fácil reconhecer que aquele que nos diz uma verdade dura sobre um pecado nosso faz isso com o desejo de nos ajudar. No entanto, no Evangelho, as bem-aventuranças são sempre acompanhadas pelos “ai de vós” com os quais o Senhor condena os poderosos malvados, com a mesma força e vontade de salvar com que ele elogia e abençoa aqueles que praticam o bem.
Em primeiro lugar, devemos esclarecer que nem todas as imagens do mau superior são aplicáveis tais e quais ao mau bispo. Amplificar algumas imagens de maus bispos, colocando-as em forma caricatural, como às vezes a mídia faz, pode ser não apenas destrutivo, mas também distrativo.
Nem sempre quem tem um rosto sério ou é acusado de algo é alguém que vende a herança recebida. Como ressalta Bergoglio, “o justo parece mau (as circunstâncias o colocam lá) por defender a sua pertença à herança que não quer vender. O injusto, como Ananias e Safira, vende qualquer coisa que lhe sirva para se apresentar como bom” [18].
Recordemos, em que Bergoglio-Francisco, está sempre presente a experiência dos Exercícios Espirituais (ES) e, ao falar das tentações, ele segue o que Inácio descreve na “meditação sobre as duas bandeiras”, isto é, os “três degraus”: a tentação de cobiça das riquezas, da vanglória do mundo e da soberba (cf. ES 142).
No discernimento de Bergoglio-Francisco, a falta de pobreza costuma se concretizar no fato de evitar o trabalho; a vaidade, na mundanidade espiritual; a soberba, na ausência de pietas.
Na avaliação dos “perfis”, devemos ter em mente que, para Francisco, “o perfil de um bispo não é a soma algébrica das suas virtudes. [...] Todos esses dotes imprescindíveis, no entanto, devem ser uma conjugação do testemunho central do Ressuscitado, subordinadas a esse compromisso prioritário. É o Espírito do Ressuscitado que faz as suas testemunhas, que integra e eleva as qualidades e os valores, edificando o bispo” [19].
Portanto, a “herança recebida gratuitamente” é a de ser “testemunhas de Cristo ressuscitado”. Essa é a herança que não pode ser vendida; nem se pode deixá-la desvalorizar, ou alugá-la, ou hipotecá-la.
Mas, no início do seu pontificado, Francisco traçou um perfil do mau bispo [20], ao qual ele sempre se refere [21], e no qual se podem reconhecer as características de quem vende a herança para evitar o trabalho (psicologia de “príncipes”), por mundanidade espiritual (busca do episcopado) ou por falta de piedade (não ser “esposos da Igreja”).
Agora, concentrar-nos-emos nessa tentação central – a de vender a herança recebida gratuitamente – e tentaremos destacar alguns pontos nos escritos de Francisco aos bispos, nos quais estão presentes, como uma espécie de estrutura fundamental, as três realidades essenciais que fazem de um bispo uma pessoa que “vende a herança”.
No caso do mau bispo, Francisco fustiga a preguiça pastoral, quando este faz com que se desvalorizem o tesouro e a riqueza maiores do que a herança recebida, que, para ele, consistem no povo fiel e nos seus sacerdotes.
A esse respeito, Francisco exortou os bispos mexicanos a não deixar que se perca a herança da religiosidade popular, protegendo-a, ao contrário, com um trabalho constante. Mas, se em um bispo há um aspecto característico dessa tentação, é a distância: “É necessário que nossos pastores superem a tentação da distância e eu deixo a cada um de vocês que façam a lista das distâncias que podem existir” [22].
Todas as vezes que tem a oportunidade, Francisco recorre a uma espécie de representação do bispo distante, que não responde aos telefonemas dos seus padres: “Ouvi dizer – não sei se é verdade, mas eu ouvi isso tantas vezes na minha vida – de padres, quando eu dava Exercícios aos padres: ‘Mas! Eu telefonei para o bispo, e o secretário me disse que ele não tem tempo para me receber’. E assim por meses, e meses, e meses. Não sei se é verdade. Mas, se um padre telefona para o bispo, no mesmo dia, ou pelo menos no dia seguinte, ele deveria telefonar: ‘Eu ouvi. O que você quer? Agora não posso receber você, mas tentemos buscar a data juntos’. Que ele sinta que o pai responde, por favor. Caso contrário, o padre pode pensar: ‘Mas a ele não importa; ele não é pai, é chefe de um escritório!’. Pensem bem nisso. Este seria um belo propósito: diante de um telefonema de um padre, se eu não posso responder neste dia, pelo menos responderei no dia seguinte. E, depois, ver quando é possível encontrá-lo. Estar em contínua proximidade, em contato contínuo com eles” [23].
As pessoas também precisam sentir o seu pastor por perto: “A presença! Quem a pede é o próprio povo, que quer ver o seu bispo caminhando com ele, estar perto dele. Ele precisa disso para viver e para respirar!” [24]; ou: “O rebanho precisa encontrar espaço no coração do pastor” [25].
Há muitas maneiras para entrepor distância, e apenas uma para reduzi-la: a cordialidade que se exerce em relação ao próprio rebanho dia após dia, especialmente com as pessoas mais problemáticas e necessitadas.
A distância não é apenas afetiva. Há uma distância pior, que consiste em tornar a Palavra de Deus e os sacramentos inacessíveis. Por isso, Francisco exorta os bispos a serem “querigmáticos” [26]. O querigma é sempre anúncio de que “o Reino está próximo”.
A distância é uma categoria espacial, e, como o tempo é superior ao espaço, a virtude que supera essas más distâncias é a paciência. Ela é o sinal concreto do bispo que sabe encontrar a distância certa a todo o momento, porque aposta no tempo, porque é capaz de iniciar, sustentar e acompanhar processos de crescimento na vida espiritual.
Para salientar a importância da paciência, Francisco lembra: “Dizem que o cardeal Siri costumava repetir: ‘São cinco as virtudes de um bispo: primeira, a paciência; segunda, a paciência; terceira, a paciência; quarta, a paciência; e última, a paciência com aqueles que nos convidam a ter paciência’” [27].
A paciência de que Francisco fala é eminentemente dinâmica. Trata-se de “entrar em paciência” diante de Deus: “O bispo deve ser capaz de ‘entrar em paciência’ diante de Deus, olhando e deixando-se olhar, buscando e deixando-se buscar, encontrando e deixando-se encontrar pacientemente diante do Senhor” [28].
A mesma paciência serve para rezar e para levar em frente o apostolado: “E isso também vale para a paciência apostólica: a mesma hypomoné que o bispo deve exercer na pregação da Palavra (cf. 2Co 6, 4) ele deve ter na sua oração” [29].
Com essa paciência, enfrenta-se a tentação do “frenesi da eficiência”, própria do mundo atual, que é uma forma de preguiça, porque, em virtude dela, privilegia-se o agir material, de acordo com o ritmo frenético do dinheiro, mas se perde o ritmo humano, do qual as pessoas precisam para crescer e para viver” [30].
A segunda característica do bispo que “vende a herança” é a de ter perdido a memória da herança recebida, e isso lhe priva da coragem de discernir. Ele duvida, usa subterfúgios, posterga ou não vê o que leva ao bem e o que leva ao mal na vida do seu povo. E isso tem a ver com a vaidade, com o olhar para si mesmo, em vez de olhar para o bem e para o mal dos outros que requerem uma intervenção.
Nos escritos de Francisco, podemos ver um sinal da falta de tal memória na imagem do bispo “personagem”. O papa o traça em um texto curto, mas muito enérgico, dirigido aos novos bispos: “Muitos hoje se mascaram e se escondem. se mascaram e se escondem. Gostam de construir personagens e inventar perfis [...] Não suportam a emoção de saber que são conhecidos por Alguém que é maior e não despreza o nosso pouco, é mais Santo e não censura a nossa fraqueza, é verdadeiramente bom e não se escandaliza com as nossas chagas. Não seja assim para vocês: deixem que essa emoção permeie vocês, não a removam nem a silenciem” [31].
Depois, afirma: “O mundo está cansado de encantadores mentirosos. E eu me permito dizer: de padres ‘na moda’ ou de bispos ‘na moda’. As pessoas ‘farejam’ – o povo de Deus tem o faro de Deus –, as pessoas ‘farejam’ e se afastam quando reconhecem os narcisistas, os manipuladores, os defensores das causas próprias, os arautos de cruzadas vãs” [32].
Construir “personagens” e inventar “perfis” é uma vaidade superficial e, mais profundamente, é ausência de memória. A memória é “colírio que purifica os olhos dos pastores” [33] e lhes dá aquele “senso ‘deuteronômico’ da vida” como história de salvação, libertando-os da “doença do ‘Alzheimer espiritual’” [34].
A imagem utilizada por Bergoglio é a do “asno” [35]. Quando quem ambiciona honras mundanas é um bispo, ele se torna ridículo, como dizia São João XXIII: “Corre-se o risco de ridicularizar uma missão santa”. Francisco acrescenta: “É uma palavra forte esta, ridículo, mas é verdade: ceder ao espírito mundano expõe principalmente nós, pastores, ao ridículo” [36].
Essa ausência de discernimento no bispo é notada na sua incapacidade de “vigiar o rebanho” [37], que, por sua vez, é a característica própria do bom pastor. A imagem de São José que vigia, até mesmo nos sonhos, Maria e Jesus, é a imagem-antídoto contra toda tentação de vender a herança recebida gratuitamente. Nesse caso, a venda ocorre sob a forma de uma espécie de aluguel: aluga-se o terreno sagrado do Reino todas as vezes que não se discerne e se permite que os seus espaços sejam usados como museus ou como laboratórios para experiências da moda. O problema está no fato de que, como a memória das promessas do Reino não está viva e cheia de frescor, também não são percebidos claramente os bens verdadeiros ou os inimigos verdadeiros, e isso em detrimento da capacidade de discernir.
Na sua primeira homilia como papa, Francisco recordou a tentação contra o discernimento sentida por Pedro: “O próprio Pedro que confessou Jesus Cristo lhe diz: ‘Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Eu te sigo, mas não falemos de Cruz. Isso não tem nada a ver. Eu te sigo com outras possibilidades, sem a Cruz’. Quando caminhamos sem a Cruz, quando edificamos sem a Cruz e quando confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor” [38].
Pedro faz a experiência pessoal do poder das chaves, isto é, do poder do discernimento que abre o caminho para o bem e o fecha para o mal. E, como permite que o Senhor discirna os pensamentos do seu coração, ele pode, depois, por sua vez, discernir os pensamentos dos outros. Existem outros poderes, por assim dizer, mais “estáveis” que o Senhor colocou nas mãos dos seus pastores. Os sacramentos operam ex opere operato, são em si mesmos eficazes. As formulações “abstratas” da verdade podem durar por épocas inteiras, embora, quando mudam os paradigmas culturais, seja necessário reelaborá-las e especificar a sua expressão, para que sejam compreensíveis e vivíveis.
O discernimento dos espíritos, por outro lado, diz respeito ao momento pontual. E requer a coragem de entrar nos tempos do Senhor, com as suas lutas e as suas flutuações, até que aquilo que ele quer nos dizer e nos fazer escolher não se mostre claramente e receba confirmação de sua parte, uma vez que fizemos a escolha.
A terceira característica do mau superior é a de ser uma pessoa que não tem pietas [39]. No caso do mau bispo, essa falta pode se esconder atrás da atitude de exagerar a piedade em alguns pontos e, ao mesmo tempo, negligenciá-la em outros. Como quem é muito piedoso em relação à Eucaristia e, depois, é impaciente e pouco delicado na relação com os empregados ou com os pobres. Ou quem defende como um gladiador um aspecto da doutrina ou da moral e perde de vista outros.
Quanto às doenças da Cúria, Francisco enfatizou o sintoma dessa tentação, falando das “murmurações” e daqueles que formam “círculos fechados” [40]. Nos bispos, tal modo de agir é sintoma de algo mais grave: a falta de espírito sinodal. É uma tentação contra o Espírito Santo, que é Aquele que faz avançar todos juntos, unidos entre si e com a cabeça. Ela pode ser entrevista principalmente naqueles que, por exemplo, não buscam falar abertamente nos Sínodos, embora o papa os convide a falar sem hesitação; mas eles não hesitam em falar em pequenos grupos ou nos corredores.
A tentação contra o espírito sinodal não é necessariamente uma recusa explícita. O “escândalo maior” é constituído por uma “pobreza de comunhão”. Francisco afirma: “Estamos convictos disto: a falta ou mesmo a pobreza de comunhão constitui o escândalo maior, a heresia que deturpa o rosto do Senhor e dilacera a sua Igreja. Nada justifica a divisão: é melhor ceder, é melhor renunciar –dispostos, às vezes, até a carregar sobre si a prova de uma injustiça – do que dilacerar a túnica e escandalizar o povo santo de Deus” [41]. A uma graça fundamental como a sinodalidade acontece aquilo que acontece com o amor: sofre mais com as pequenas afrontas ou com as pequenas distâncias do que com uma grande batalha franca e aberta.
Francisco também evidencia uma série de tentações que podem parecer banais, mas que, no conjunto, tem mais sabor de corrupção do que de pecados individuais, porque “desfiguram o espírito sinodal”: “a gestão personalista do tempo”; “as fofocas”; “as meias verdades que se tornam mentiras”; “a ladainha de lamentações que trai desilusões íntimas”; “a dureza daqueles que julgam sem se envolver e o laxismo daqueles que condescendem sem se encarregar do outro” [42].
O papa nos lembra que “o Sínodo é um espaço protegido onde a Igreja experimenta a ação do Espírito Santo” [43]. Por isso, a tentação do mau bispo contra o caminhar juntos é um modo de não dar espaço ao Espírito, à presença de Deus em nós, como, ao contrário, as pessoas simples sabem fazer [44].
A tentação do mau bispo contra a sinodalidade também consiste em não dar espaço ao povo fiel de Deus. Assim, Francisco, referindo-se ao Concílio, diz: “‘Este Colégio, por ser composto por muitos, expressa a variedade e a universalidade do Povo de Deus’. Na Igreja, a variedade, que é uma grande riqueza, funde-se sempre na harmonia da unidade, como um grande mosaico em que todas as peças contribuem para formar o único grande desenho de Deus. E isso deve impulsionar a superar sempre todos os conflitos que ferem o corpo da Igreja. Unidos na diferença: não há outro caminho católico para nos unir. Este é o espírito católico, o espírito cristão: unir-se nas diferenças. Este é o caminho de Jesus! O pálio, se é sinal da comunhão com o bispo de Roma, com a Igreja universal, com o Sínodo dos Bispos, é também um compromisso para cada um de vocês a serem instrumentos de comunhão” [45].
* * *
Há muitos modos para reconhecer se um bispo possui os traços essenciais que o devem caracterizar: um homem ad aedificationem, fecundo na sua paternidade espiritual em relação ao povo fiel de Deus que lhe foi confiado; capaz de deixar, como Davi, “a herança de 40 anos de governo para o seu povo e o povo consolidado, forte” [46]; um homem coerente, com uma piedade não fictícia, como o ancião Eleazar, que sabe morrer deixando uma “herança nobre” [47] aos jovens do seu povo; um homem que tem a memória da história da salvação, que tem a coragem de discernir pelo bem do seu povo nas encruzilhadas ambíguas da história e não cede à tentação da “mundanidade espiritual” [48].
O Papa Francisco nos mostra a cada dia que a “proximidade com todos” não é questão de maior ou menor simpatia pessoal; ao contrário, é um “trabalho”. É um “não esquivar o trabalho”, próprio do pastor que exerce a misericórdia e o discernimento na proximidade cordial, na pastoral concreta, no sair rumo a todas as periferias geográficas e existenciais. Francisco nos faz entender que o discernimento não é uma atividade elitista e perigosa, no sentido de que poderia ser usado para pôr em dúvida verdades já consagradas, mas é um trabalho: o de se envolver na vida concreta das pessoas, pondo-se pessoalmente em discussão, sem se esconder atrás de formulações abstratas, todas as vezes que estão em jogo, dramaticamente, o bem e o mal das pessoas.
Com o seu paciente amor pela diversidade, o Papa Francisco nos atesta que a a sinodalidade também é um trabalho: o de fazer um caminho com todos, unidos nas diferenças, para que o Espírito possa agir na vida multiforme e poliédrica da Igreja.
Com a sua oração, Francisco exorta todos os bispos a “não serem cegos”, mas pessoas que desejam entregar integralmente a herança gratuitamente recebida e que sabem “saudar as promessas de longe”. Um bispo, “para forjar essa mediação do ‘não ver’ e parar de ‘ser cego’, deve dirigir-se ao templo com frequência, colocar-se na presença encorajadora de Deus, dedicar-se à oração confiante. Lá, no templo, ele moldará a sua pietas, porque olhará ‘para a rocha da qual foi talhado, para a pedreira da qual foi extraído’ (Is 51, 1); contemplará ‘Abraão, seu pai, e Sara, que o deu à luz’ (Is 51, 2), e, assumindo essa identidade, que é a herança recebida para si, lhe dará paternalmente àqueles que a levarão adiante e se alegrará ao sonhar essa plenitude que agora aceita ‘não ver’ e, contemplando-a de longe, exultará e ficará cheio de alegria (cf. Jn 8, 56)” [49].
1. Cf. J. M. Bergoglio-Francisco. Il cattivo superiore e la sua immagine. In: Id. La croce e la pace. Meditazioni spirituali, Bologna, Emi, 2014, p. 110-126. O artigo original foi publicado no “Boletín de Espiritualidad”, da província argentina da Companhia de Jesus, n. 84, dezembro de 1983.
2. Ibid., p. 110.
3. Cf. ibid., p. 111.
4. Ibid.
5. Cf. D. Fares. Il profumo del pastore. Il vescovo nella visione di Papa Francesco. Milão: Àncora, 2014.
6. No primeiro caso, trata-se é um comentário às “Diretrizes para os Superiores Locais...”, do Pe. Arrupe, que Bergoglio fez em uma reunião de superiores, provavelmente no fim de 1975, e depois publicou com o título El superior local. A edição italiana adota o título editorial Abbracciare conflitti, in: J. M. Bergoglio-Francisco. Nel cuore di ogni padre. Alle radici della mia spiritualità. Milão: Rizzoli, 2014, p. 83-90. O segundo texto aparece como “terceiro parte” do mesmo volume, nas pp. 225-277.
7. Ibid., p. 230.
8. Cf. ibid., p. 83s.
9. Ibid., p. 229.
10. Francisco. Homilia na missa com os cardeais, 14 de março de 2013.
11. Id. Discurso aos participantes do Congresso para os Novos Bispos, 19 de setembro de 2013.
12. Id. Discurso à 66ª Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana, 19 de maio de 2014.
13. Id. Discurso aos bispos mexicanos, 13 de fevereiro de 2016.
14. D. Fares. Educare i figli secondo «Amoris laetitia». La pedagogia di Papa Francesco. La Civiltà Cattolica, 2016, II, p. 360.
15. J. M. Bergoglio-Francisco. Il cattivo superiore e la sua immagine, op. cit., 116 s.
16. Ibid., p. 124.
17. Ibid., p. 125.
18. Ibid., p. 123.
19. Francisco. Discurso à reunião da Congregação para os Bispos, 27 de fevereiro de 2014.
20. Cf. id. Discurso aos participantes das jornadas dedicadas aos representantes pontifícios, 21 de junho de 2013.
21. Cf. id. Discurso à reunião da Congregação para os Bispos, op. cit.; Discurso aos participantes das jornadas dedicadas aos representantes pontifícios, op. cit.
22. Id. Discurso aos bispos mexicanos, op. cit. Grifo nosso.
23. Id. Discurso aos participantes do Congresso para os Novos Bispos, op. cit. O papa fez a mesma observação aos bispos coreanos no dia 14 de agosto de 2014.
24. Ibid.
25. Id., Discurso na reunião da Congregação para os Bispos, cit.
26. Ibid.
27. Ibid.
28. Ibid.
29. Ibid.
30. Cf. id. Discurso no encontro com o episcopado brasileiro, 27 de julho de 2013.
31. Id. Discurso aos participantes do Curso de Formação de Novos Bispos, 16 de setembro de 2016, grifo nosso.
32. Ibid.
33. Id. Homilia na profissão de fé com os bispos da Conferência Episcopal Italiana, 23 de maio de 2013.
34. Id. Discurso à Cúria Romana por ocasião dos votos natalícios, 22 de dezembro de 2014.
35. Verum est ergo quod dicitur in Psalmo: «Homo cum in honore esset, non intellexit, comparatus est iumentibus insipientibus, et similis factus est illis» (cf. J. M. Bergoglio-Francisco. Nel cuore di ogni padre..., op. cit., p. 49; Virgilio. Eneide, l. VI, c. XXXIII).
36. Francisco. Discurso aos participantes nas jornadas dedicadas aos representantes pontifícios, op. cit., grifo nosso.
37. Ibid.
38. Id. Homilia na missa com os cardeais, 14 de março de 2013.
39. Para Bergoglio, a piedade é a graça de ser bons filhos; é a consciência da necessidade de recorrer – como os pequenos do povo fiel – ao Pai celeste, que é providente. A piedade sempre está unida ao zelo apostólico e é a “expressão qualificada da revolução da ternura” (cf. J. M. Bergoglio-Francisco. Chi sono i gesuiti. Bolonha: Emi, 2013, 83 e 42 s).
40. Francisco. Discurso à Cúria Romana..., op. cit.
41. Id. Discurso à 66ª Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana, 19 de maio de 2014.
42. Ibid.
43. Id. Introdução ao Sínodo para a Família, 5 de outubro de 2015.
44. Cf. id. Discurso no encontro com o episcopado brasileiro, op. cit.
45. Id. Homilia na solenidade dos santos Pedro e Paulo, 29 de junho de 2013, grifo nosso.
46. Id. Homilia em Santa Marta, 6 de fevereiro de 2014 (cf. 2Re 2, 1-4, 10-12).
47. Id. Homilia em Santa Marta, 19 de novembro de 2013 (cf. Mc 6, 18-31).
48. Id. Homilia em Santa Marta, 17 de janeiro de 2014 (cf. 1Sm 8).
49. J. M. Bergoglio-Francisco. Il cattivo superiore e la sua immagine, op. cit., p. 126.
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Quem é o mau pastor? Características e imagens bíblicas propostas pelo Papa Francisco. Artigo de Diego Fares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU