31 Julho 2017
Neste artigo, o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, reflete sobre o papel do pensamento de Lutero sobre as composições sacras e também sobre as suas indicações sobre como se deve enfrentar a morte, em debate com Erasmo de Rotterdam.
O artigo foi publicado por Il Sole 24 Ore, 30-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como sabem os leitores que nos acompanham com continuidade, optamos por pontuar este ano “luterano” – baseado no quinto centenário da lendária afixação das suas célebres 95 teses na porta da capela do castelo de Wittenberg (já explicamos que, na realidade, a história foi menos “publicitária”) – com alguns oásis bibliográficos conectados ao evento.
Desta vez, em primeiro plano, colocamos um livro que, na realidade, gostaríamos, idealmente, de confiar a um importante musicólogo que nos acompanha há anos nestas páginas e que sempre é lido com gosto, Quirino Principe.
Só ele – se é que posso dialogar com ele através destas linhas – poderia avaliar o imponente estudo que uma ainda jovem musicóloga e musicista (é uma excelente pianista), Chiara Bertoglio, elaborou diretamente em inglês depois de quatro anos de pesquisas dedicadas ao tema nas várias bibliotecas e universidades, especialmente britânicas.
A palavra fundamental já ressoa no título e no subtítulo, reforming e reformations, e diz respeito precisamente à reviravolta impressa pela Reforma protestante também na música sacra. Na realidade, como já é consenso, o vento daquela Reforma gerou um contraponto que assumiu as características de uma verdadeira Reforma católica paralela. Ora, de todo esse panorama “harmônico”, que se estendeu por todo o século XVI, Bertoglio tenta descrever o mapa.
Mas ela não se contenta com uma planta simplificada, mas tenta desenhar um mapa colorido, como se fazia nos antigos portulanos e nos mapas topográficos. Assim, o seu retrato parte das bordas onde se circunscrevem sociedade, cultura e atmosferas de um século e onde se deixa serpentear a inesgotável interrogação sobre o específico da música sacra, com as relativas inferências teológicas (dentre outras coisas, Chiara também traz consigo uma matriz de estudos de teologia).
Depois, entram em cena as vastas regiões musicais dos reformadores, de Lutero a Calvino, da Alemanha, Estrasburgo e Boêmia até a Igreja da Inglaterra. Mas, como se dizia, aproximam-se os espaços musicais católicos, do Concílio de Trento em diante.
Dentro dessa partitura geral, os registros se multiplicam, com as variações confessionais ou com a irrupção das vozes femininas (afinal, Lutero compôs um poema intitulado Frau Musika, até porque o vocábulo é feminino em todas as línguas europeias e, portanto, admite a personificação de uma “Lady Music”).
Esse é, substancialmente, o índice abreviado, que, como leigo, acompanhei e reconstruí, um microcosmo documental acompanhado ainda por um impressionante aparato de glossários, de bibliografia primária e secundária, de nomes e sujeitos temáticos. Como afirmávamos, pela escavação, a obra deve ser confiada à competência de um verdadeiro especialista: por isso fazia referência a Principe, que, em várias ocasiões, focou os seus holofotes, mas também as suas flechas, ao cruzamento entre música e culto, entre arte e fé.
Com o outro texto deste nosso “oásis luterano”, voltamos, por sua vez, para o território que nós costumamos habitar, o da teologia. Aqui, vêm ao nosso encontro os dois líderes da época, colocados com a sua genialidade altíssima em frentes opostas, Lutero e Erasmo.
A escolha do historiador Stefano Cavallotto é muito original e até surpreendente: ele fez com que os dois se cruzassem em torno de um tema existencial e teológico, ao mesmo tempo, o da “boa morte”, uma “eutanásia” bem diferente daquela sobre a qual se está discutindo tão acaloradamente nos nossos dias.
Por um lado, Lutero avança com o seu “Sermão sobre a preparação da morte”, um escrito elaborado em alguns meses, em 1519, de sucesso estrondoso (24 edições, traduzido imediatamente para o latim, dinamarquês e holandês), inserido no filão devocional da “arte do bem morrer” de gênese medieval.
De fato, ele recupera, com o poder do seu ditado, o repertório emocional da tradição com um aparato de imagens voltadas a sacudir a alma, mas também a estendê-la ao Cristo ressuscitado, vencedor do pecado e da morte.
Como observa Cavallotto, nessas linhas, intui-se em filigrana o rosto de Lutero confessor e pastor que, “com serenidade e senso prático, vai ao encontro do povo cristão, angustiado e aterrorizado pela morte e pela incógnita da salvação eterna, tranquilizando-o, confortando-o, mas também educando-o à reta devoção”.
Por outro lado, eis a “Preparação à morte”, que Erasmo de Rotterdam compôs em latim em 1533, a pedido do pai de Anna Bolena (Boleyn), a nova esposa de Henrique VIII, no limiar do cisma da Inglaterra. Erasmo está mal de saúde e sente em si mesmo os arrepios daquele fim que o atingiria em pouco tempo, em 1536; o estilo é seco, a trama é incerta, a articulação teológica é tradicional, o tom é discursivo. Um pouco como o seu antagonista Lutero, ele se esforça para mover o pêndulo da parênese do terror à confiança em Cristo morto, ressuscitado e salvador, raiz da esperança do cristão.
Nesse confronto final, onde se assoma Satanás, por uma tentação extrema, e onde já aflora também a escuridão infernal, aproxima-se a presença divina e a da Igreja com os sacramentos, mas também a existência justa do moribundo, ou seja, aquela “fé e caridade, sem as quais os sacramentos não servem para nada”.
Assim, a justiça pessoal vivida durante a história terrena (e aqui se sente a ética clássica e a filosofia cristã caras a Erasmo) e a justiça misericordiosa e salvífica divina permitem cruzar o limiar da morte com serenidade, encontrando a outra face da vida em relação àquela até agora voltada para nós, para usar uma frase de Rilke.
O mero ato sacramental não substanciado por uma existência justa e por uma fé autêntica não é suficiente, porque acabaria na magia. Por isso, “pessoalmente – escreve Erasmo – estou convencido de que muitos vão para a paz eterna, embora não tenham sido absolvidos pelo sacerdote, não tenham recebido o viático eucarístico e a extrema unção e não tenham sido sepultados com as exéquias da Igreja, enquanto eu acho que outros foram arrastados aos infernos, mesmo com a celebração de todas as funções religiosas”.
Concluímos essa nossa livre e limitada incursão no horizonte da Reforma protestante com uma piada muito sugestiva ligada precisamente a esse vocábulo tão usado e abusado também na política, “reformar”. Fazemos isso recorrendo a um texto clássico católico, caro a um “secular” como Roland Barthes, que lhe dedicou um ensaio, isto é, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas.
Deixamo-lo no latim original, límpido e sugestivo: Deformata reformare / Reformata conformare / Conformata confirmare / Confirmata transformare.
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Reforma ao som de música. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU