22 Julho 2017
"Temos reiterado sobre a urgência de purificar o Brasil da praga da corrupção disseminada em todos os campos do Estado e seus poderes. Mas é a urgência que está matando a própria democracia. Haveremos de nos perguntar se a rapidez com a qual algumas coisas se dão em nosso país (algumas delas, como a tramitação de pautas hostis à vontade popular, como a reforma trabalhista) e desenfreada vontade achar e punir culpados por uma enfermidade que é sistêmica pode nos sair muito caro à médio prazo. Pode-se confundir joio e trigo e se perder tudo. Esta parábola do Reinado de Deus, então, nos solicita abrir os olhos e exercer a vigilância amorosa que não visa punir, em primeiro lugar, mas discernir sobretudo, para que abramos mão apenas do que não serve de fato e salvaguardemos o que né necessário para a manutenção da casa", escreve Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especializado em Liturgia pela PUC-SP e música ritual pela FACCAMP, assessor eclesiástico para a Liturgia na mesma Arquidiocese, membro da Equipe de Trabalho para o Espaço Sagrado para a Catedral Cristo Rei e Mestrando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (FAJE), bolsista da CAPES.
Segundo ele, "A mesa Eucarística não é aquela que recolhe sobras e distribui (há inclusive uma regra, do ponto de vista ritual, que ajuda a compreender isso: não se sirva à comunidade o pão consagrado noutra missa e guardado no sacrário). Sobre ela está o que existe de mais caro: a vida pulsante de alguém que viveu com paciência e empenho, conforme as instruções (mandamentos) do Reino".
No Domingo precedente, tendo como eixo o início do capítulo 13 de Mateus em que Jesus apresenta o Reinado de Deus de modo parabólico, afirmava-se que este mistério se compara à semeadura. Na ocasião, descobríamos a amplitude do alcance do Reinado do Senhor, que lança no mundo a semente boa de Sua Palavra (cf. Aclamação ao Evangelho) e os diferentes solos em suas respectivas possibilidades de acolhida. No marco da eucologia menor do XVI Domingo do Tempo Comum – Ano A, a Liturgia nos oferece o desenvolvimento do ensino de Jesus sobre o Reinado de Deus.
A Oração do Dia dá o tom da celebração dominical suplicando o favor de Deus sobre a comunidade de seus servos e servas: “Propitiare, Domine, fámulis tuis”. A tradução portuguesa no Brasil optou por falar da “generosidade para com os vossos filhos e filhas”. Etimologicamente, ‘ser propício’ indica um movimento de ‘lançar-se sobre’ no intuito de ‘prover um favor’. É uma imagem significativa teologicamente para falar de Deus que vem depressa em auxílio de seu Povo, inclinando-se sobre o mundo afavelmente. Esta presença compassiva do Senhor é também solicitada na oração depois da comunhão: “Ó Deus, permanecei junto ao povo”. O texto latino reitera o uso do adjetivo ‘propitius’. A generosidade divina consta de fazer aumentar a graça (cf. Colleta - OC) naqueles que foram iniciados nos sacramentos do Reino (cf. Post Comunionem - PC), imbuindo-lhes de fé, esperança e caridade (OC) e assim possam ser transportados à condição de uma vida nova (PC).
A perícope de Mateus aborda ‘os mistérios do Reino’ revelados pelo Pai aos pequenos (cf. Aclamação ao Evangelho). Desta vez, a narrativa evangélica recorda Jesus contando a parábola do joio e do trigo (versão breve). Cabe-nos interpretar a parábola no contexto da celebração dominical, cujas orações Colleta e Post Comunionem definem.
“O Reino dos Céus é como um homem que plantou uma boa semente em seu campo; enquanto dormiam, veio seu inimigo e semeou joio no meio do trigo, e foi embora.” Estas duas afirmações de Mateus como comparação ao Reinado de Deus trazem consigo alguns detalhes importantes. Enquanto, no original grego, a primeira frase traz o verbo “semear” (speirw) na frase seguinte encontramos o mesmo verbo mas, desta vez, trazendo um o prefixo “sobre” (epispeirw). A Vulgata manteve a ideia ao verter o verbo por superseminavit que nos daria a tradução literal “semeou por cima”. O inimigo fez-se adversário do dono do campo, pois não apenas disseminou uma má semente (tradução francesa) mas, sobretudo, opôs-se à sua semeadura sobrepondo seu próprio gérmen
O joio ou cizânia não é uma erva daninha qualquer. De tão parecida com o trigo é chamada de “falso trigo”, o que deve sugerir certa confusão entre os ceifadores quando chega a época da colheita. Por essa razão, sugere-se que não deve ser arrancado antes que se possa diferenciar um de outro (cf. Mt 13,29-30). Assim, por um bom bocado de tempo, a semente boa e cizânia convivem juntas à medida que se desenvolvem, florescem e frutificam. Somente quando o fruto está maduro e apto à colheita é que se pode diferenciá-los com maior segurança: enquanto a espiga de trigo é de coloração castanha, as da cizânia são pretas. É muito interessante que o texto original não fale abertamente em ‘semente má’: temos a semente boa e, espalhada sobre ela, algo parecido. Não havendo testemunhas na época da semeadura, apenas quando a planta já está desenvolvida e com frutos será notada. Serão os servos (οἱ δοῦλοι) a se darem conta do problema e a alertar o dono da plantação.
Também são estes que nos revelam a identidade do proprietário: ele é um οἰκοδεσπότου, isto é, um pai de família, termo que a Vulgata mantém (patrifamílias). Esta abordagem do texto faz com que a problemática em torno do cultivo esteja vinculada à responsabilidade do pai em manter a casa, alimentando os filhos. Uma vez que a colheita esteja arruinada, também estará seu empreendimento de cuidador. O horizonte da parábola pode ser este: o Reino é como um pai de família que plantou boa semente em seu campo, mas quando frutificou foi informado que alguém havia disseminado erva daninha ocultamente; deverá esperar a época certa para diferenciar os frutos e fazer recolher aquilo que não serve para prover sua casa.
A Liturgia situa a comunidade na interpretação deste texto, já nos ritos iniciais, identificando a assembleia celebrante como servos (cf. texto latino). Por isso, a despeito dos domingos do Ano B e C cujos trechos evangélicos são outros, para o Ano A cairia bem manter a designação ‘Senhor’ (Domine) e ‘vossos servos’ (famulis tuis). Esta possibilidade é muito interessante face à parábola do joio e trigo, uma vez que famulis é a origem etimológica de família. Neste sentido, a tradução portuguesa verte bem a expressão por ‘vossos filhos e filhas’. Entretanto, seria significativo notar – particularmente para este domingo – que somos membros, sim, da família de Deus, habitamos o mundo como sendo sua casa, mas temos – perante ele, que é o Senhor da Casa – também a função de cuidar e vigiar para que haja ordem em seus empreendimentos de Pai da família (cf. OC semper in mandatis tui vígili custódia perseverent).
Como na parábola, os servos agem de acordo com as ordens do Pai. A assembleia pede o favor de Deus para que seja ardente (fervéntes) na fé, esperança e caridade e assim possa cuidar de suas coisas (seus mandamentos). As chamadas ‘virtudes teologais’ são herança do Senhor para o seu povo. É interessante que, na Quinta-feira Santa, quando se faz memória da Ceia Derradeira em Jesus nos deixa seu testamento, a assembleia entoe durante o serviço do lava-pés, que repete em atenção ao mandamento do Mestre, o versículo paulino 1Cor 13,13: “Fé, esperança e caridade sempre vós hão de habitar.” Isto indica que é no convivium que o Banquete Eucarístico favorece, repetição ritual da Ceia de Despedida do Senhor, que encontramos este calor familiar necessário para forjar nosso serviço frente ao Pai. É significativo, portanto, termos sempre o altar diante dos olhos quando celebramos.
O Pai ensina aos seus familiares que o serviço no horizonte de seu Reinado se faz na paciência. A parábola do joio e trigo trata, no fim das contas, de saber esperar sem desespero, na fé que confia à a época de separar os frutos, quando serão revelados aqueles que não servem par ao consumo, a fim de não perder a colheita e privar a casa do necessário para viver. E o que move o Pai e em consequência os servos nesta paciência é o amor enquanto caritas. Esta palavrinha curta e às vezes desgastada sugere não apenas o afeto e a ternura, mas a criticidade do amor de Cristo como expressão da caridade do Pai. Caritas é amor no sentido de descortinar o que é caro, o que vale à pena, o que possui alto preço. Pensando a parábola a partir de nossa mentalidade contemporânea, em que não se pode perder tempo, diríamos que o dono da casa deveria ir pelo caminho mais curto embora mais oneroso: arrancar tudo e fazer novo plantio. Se fosse um rico agricultor, isso não teria nem mesmo importância. Mas a paciência que a parábola insinua é também pedagógica, há um ensino, há algo que se aprender sobre o que semeamos e o tempo propício para colher.
Nada tão atual para nós aqui no Brasil. Temos reiterado sobre a urgência de purificar o Brasil da praga da corrupção disseminada em todos os campos do Estado e seus poderes. Mas é a urgência que está matando a própria democracia. Haveremos de nos perguntar se a rapidez com a qual algumas coisas se dão em nosso país (algumas delas, como a tramitação de pautas hostis à vontade popular, como a reforma trabalhista) e desenfreada vontade achar e punir culpados por uma enfermidade que é sistêmica pode nos sair muito caro à médio prazo. Pode-se confundir joio e trigo e se perder tudo. Esta parábola do Reinado de Deus, então, nos solicita abrir os olhos e exercer a vigilância amorosa que não visa punir, em primeiro lugar, mas discernir sobretudo, para que abramos mão apenas do que não serve de fato e salvaguardemos o que né necessário para a manutenção da casa.
A mesa Eucarística não é aquela que recolhe sobras e distribui (há inclusive uma regra, do ponto de vista ritual, que ajuda a compreender isso: não se sirva à comunidade o pão consagrado noutra missa e guardado no sacrário). Sobre ela está o que existe de mais caro: a vida pulsante de alguém que viveu com paciência e empenho, conforme as instruções (mandamentos) do Reino. O pão e o vinho, “fruto da terra e do trabalho humano” se vertem em bênção para a comunidade que celebra à medida que se faz memória ao redor deles daquilo que a oração sobre as oferendas chama de “sacrifício único”: a doação inteira de si realizada por Jesus como obediência ao Pai em cuidar daqueles que a Ele concedeu como irmãos e irmãs.
A celebração da Ceia do Senhor é a tradução mais exata do labor de Deus como Pai que prepara os campos, semeia, vigia, discerne e colhe para manter viva e saudável a sua família – e educa, enquanto procede com seu trabalho. Assim, é o Espírito quem vem em nosso auxílio e penetra no íntimo de nossos corações e nos faz proceder segundo Deus (cf. Rm 8,26-27 – II Leitura). Nos dá o discernimento precípuo sobre como agir neste mundo responsavelmente e com paciência, de modo que avancemos neste mundo tendo como horizonte uma vida realmente nova (cf. PC). É uma pedagogia que nos desveste do velho ser humano, apegado ao engano do passado – seja ele religioso, político, psicológico, afetivo – e nos lança na perspectiva de que “o justo deve ser humano”. Fora deste caminho, não há salvação.
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O Pai de família, a casa, o joio e o trigo: paciência e Reinado de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU