05 Junho 2017
"Seattle foi o que Hegel chamou de “evento histórico-mundial”. Sua lição duradoura é que a verdade não está apenas lá fora, com uma existência objetiva e eterna. A verdade é efetivada, tornada real e ratificada pela ação. Em Seattle, mulheres e homens comuns tornaram a verdade real com uma ação coletiva que desacreditou um paradigma intelectual que havia servido de guardião ideológico do controle do mundo pelas corporações", escreve Walden Bello, autor e acadêmico filipino, coordena o centro de pesquisas Focus on the Global South, baseado em Bangkok, Tailândia. Integra o Conselho Internacional do Fórum Social Mundial e foi eleito recentemente deputado no Parlamento das Filipinas, em artigo publicado por Outras Palavras, 04-06-2017.
"Penso, afirma Walden Bello, que é urgente superar nossos medos de articular grandes narrativas e expressar a necessidade de superar, através da luta comum, um mundo destruído pelo capital".
Aprendi várias lições na Batalha de Seattle, e uma delas foi que uma policial feminina pode ser tão eficiente quanto qualquer policial. Fui espancado, fortemente, por uma das melhores de Seattle. Ontem, decidi descer a ladeira da memória e visitar a cena do crime. Lembro-me de que vi Medea Benjamin, do movimento Code Pink, sendo tratada com bastante brutalidade e corri até lá para tentar fazer a polícia parar. Foi quando uma policial feminina começou a me bater com o cassetete, enquanto me arrastava e me jogava na rua, com o golpe de misericórdia sendo um bem planejado chute no meu traseiro. Mas o maior golpe não foi este, e sim o que atingiu meu ego: eu merecia ser espancado e chutado, mas não incomodava o bastante para ser preso…
Como Cesar, vou dividir minha fala em três partes. Primeiro, algumas reflexões sobre o que Seattle significou para a mudança nos sistemas de compreensão do mundo globalizado. Segundo, uma discussão de como, a despeito da profunda crise do neoliberalismo, o capital financeiro manobrou para manter intacto seu imenso poder. Terceiro, um apelo para construirmos uma nova visão abrangente da sociedade desejável.
Segundo a teoria de Thomas Kuhn, a respeito de como se dão as mudanças nas ciências físicas, os dados dissonantes não podem ser acomodados no antigo paradigma até que alguém venha com um novo, no qual eles possam ser explicados. Os cientistas sociais apropriaram-se dos esforços de Kuhn para explicar o deslocamento e a substituição do pensamento hegemônico em política, economia e sociologia. Penso que embora o papel dos dados dissonantes tenha sido exaustivamente estudado, como no caso do deslocamento do keynesianismo no final dos anos 70 e das teorias da escolha racional e mercado eficiente durante a recente crise financeira, as explicações sobre mudança nos sistemas de conhecimento não foram capazes de considerar o papel da ação coletiva.
A Batalha de Seattle ressalta, a meu ver, o papel extremamente crítico, se não decisivo, da ação coletiva de massas no deslocamento dos sistemas de conhecimento. Explicarei a seguir.
Aceita-se hoje, de modo mais ou menos generalizado, que a globalização fracassou, em sua promessa tripla de resgatar os países da estagnação, eliminar a pobreza e reduzir a desigualdade. A crise econômica global em andamento, conduzida pelas corporações e baseada na liberalização financeira, fincou o último prego na ideologia da globalização virtuosa. Mas as coisas eram bem diferentes duas décadas atrás. Ainda me lembro a nota de triunfalismo em torno do primeiro encontro ministerial da Organização do Comércio Mundial (OMC) em Cingapura, em novembro de 1996. Lá, ouvimos de representantes dos EUA e de outros países desenvolvidos que a globalização conduzida pelas corporações era inevitável, que era a onda do futuro, e que a única tarefa que faltava era tornar mais “coerentes” as políticas do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial de Comércio de modo a chegar mais rapidamente à utopia neoliberal de uma economia global integrada.
O avanço da globalização parecia varrer tudo à sua frente, incluindo a verdade. Na década anterior a Seattle, numerosos estudos, inclusive relatórios das Nações Unidas, questionavam a alegação de que a globalização e as políticas de “livre” mercado estavam conduzindo ao crescimento sustentável e prosperidade. Os dados mostravam que a globalização e políticas pró mercado estavam na verdade promovendo mais desigualdade e mais pobreza e consolidando a estagnação econômica, especialmente no Sul global. Contudo, esses números permaneceram como “factoides” ao invés de fatos aos olhos de acadêmicos, da imprensa, dos políticos, que zelosamente repetiam o mantra neoliberal de que a liberalização econômica promove crescimento e prosperidade. A visão ortodoxa, repetida ad nauseam na sala de aula, na mídia e em círculos políticos, era de que críticas à globalização eram encarnações modernas dos ludistas ou provinham de pessoas — como fomos rotulados com desdém por Thomas Friedman — que acreditam que a terra é plana.
Então veio Seattle, em 1999. Depois daqueles dias tumultuados na cidade, a imprensa começou a falar sobre o “lado sombrio da globalização”, sobre as desigualdades e pobreza sendo geradas pela globalização. Depois disso, tivemos as espetaculares defecções do campo da globalização neoliberal, tais como as do financista George Soros, do prêmio Nobel Joseph Stiglitz e a do economista-star Jeffrey Sachs. O recuo intelectual da globalização provavelmente atingiu seu ponto alto em 2007, num relatório abrangente sobre um painel de economistas neoclássicos liderado por Angus Deaton, economista de Princeton, e pelo ex-economista chefe do FMI, Ken Rogoff. O relatório afirmou implacavelmente que o Departamento de Pesquisa do Banco Mundial – a fonte da maioria das afirmações segundo as quais a globalização e a liberalização do comércio estavam conduzindo a índices mais baixas de pobreza, crescimento econômico sustentado e menos desigualdade – distorcia deliberadamente os dados e/ou fazia afirmações injustificadas.
É verdade, o neoliberalismo continua a ser o discurso padrão entre vários economistas e tecnocratas. Mas mesmo antes do recente colapso financeiro global ele já havia perdido muito de sua credibilidade e legitimidade. O que fez a diferença? Não tanto a pesquisa ou debate, mas a ação. Foi necessário que acontecessem as ações de massas nas ruas de Seattle, interagindo de modo sinérgico com a resistência de representantes dos países em desenvolvimento no Centro de Convenções do Sheraton, e uma rebelião da polícia, para provocar o espetacular colapso de uma reunião ministerial da Organização Mundial de Comércio e traduzir aqueles factoides em fatos. E o fracasso intelectual imposto à globalização pela luta de Seattle teve consequências bem concretas. Hoje, a revista Economist, primeiro avatar da globalização neoliberal, admite que a “integração da economia mundial está em retração em quase todos os fronts” e um processo de “desglobalização”, que antes considerava se impensável, está na verdade em desenvolvimento.
Seattle foi o que Hegel chamou de “evento histórico-mundial”. Sua lição duradoura é que a verdade não está apenas lá fora, com uma existência objetiva e eterna. A verdade é efetivada, tornada real e ratificada pela ação. Em Seattle, mulheres e homens comuns tornaram a verdade real com uma ação coletiva que desacreditou um paradigma intelectual que havia servido de guardião ideológico do controle do mundo pelas corporações.
Eu não diria que o neoliberalismo foi derrotado em Seattle. Mas, para usar uma metáfora de guerra, Seattle foi certamente a batalha de Stalingrado do neoliberalismo. Demoraria mais uma década até que a globalização fosse definitivamente detida, e foi preciso que a crise financeira global completasse o trabalho, ao aniquilar da Teoria da Escolha Racional e da Hipótese de Mercados Eficientes, que haviam sido a vanguarda da globalização das finanças.
Mas o desmantelamento do paradigma neoliberal é só metade da história. Mesmo com sua crise ideológica, as forças do capital global travaram uma feroz batalha de retaguarda. Como exemplo, tome o caso do bem-sucedido esforço do capital financeiro para resistir a qualquer mudança diante da evidente necessidade e do consenso social para uma reforma abrangente.
Quando o chão se abriu sob Wall Street, em setembro de 2008, houve muita conversa sobre obrigar os bancos a pagarem a conta, prender os “banksters” [mistura de banqueiros com gangsters] e impor regulações draconianas. O então recém-eleito Barack Obama chegou ao poder prometendo reforma bancária, avisando Wall Street, “Meu governo é a única coisa entre vocês e o inferno”.
Ainda assim, mais de oito anos depois da deflagração da crise financeira global, é evidente que aqueles que eram responsáveis pela crise manobraram para sair completamente impunes. Não apenas isso, mas também fizeram com que os governos colocassem os custos da crise e o ônus da recuperação sobre as vítimas.
Como conseguiram isso? A primeira linha de defesa para os bancos foi fazer com que os governos os resgatassem da trapalhada financeira que eles próprios criaram. Os bancos recusaram de cara a pressão de Washington sobre eles para montar uma defesa coletiva com seus próprios recursos. Usando a queda maciça dos preços das ações, desencadeada pela queda do banco Lehman Brothers, os representantes do capital financeiro foram capazes de chantagear tanto os parlamentares liberais quanto os de extrema direita no Congresso dos EUA, para aprovar o Programa de Alívio de Ativos Problemáticos (Troubled Asset Relief Program – TARP), no valor de 700 bilhões de dólares. A nacionalização dos bancos foi descartada como sendo inconsistente com os “valores da América”.
Então, engajando-se na guerra defensiva antirregulatória que eles controlaram durante décadas no Congresso, os bancos foram capazes, em 2009 e 2010, de eliminar, na lei Dodd-Frank de Reforma de Wall Street e de Proteção dos Consumidores, três itens-chave que eram considerados necessários para uma verdadeira reforma: reduzir o tamanho dos bancos; separar institucionalmente os bancos comerciais dos bancos de investimento; e proibir a maioria dos derivativos, regulando o chamado “sistema bancário das sombras”, que provocou a crise.
Isso foi feito usando o que Cornelia Woll chamou de “poder estrutural” do capital financeiro. Uma dimensão desse poder foram os 344 milhões de dólares que o setor gastou fazendo lobby no Congresso dos EUA, nos primeiros nove meses de 2009, quando os legisladores estavam trabalhando com a reforma financeira. Só o senador Chris Dodd, líder do Comitê Bancário do Senado, recebeu 2,8 milhões de dólares em contribuições de Wall Street, em 2007-2008. Mas talvez tão poderoso quanto o lobby de Wall Street entrincheirado no Congresso tenham sido as influentes vozes no novo governo Obama, que eram simpáticas aos banqueiros — em especial o Secretário do Tesouro, Tim Geithner, e o chefe do Conselho de Assessores Econômicos, Larry Summers. Ambos serviram como colaboradores próximos de Robert Rubin, que foi sucessivamente co-presidente do banco Goldman Sachs, chefe do Tesouro de Bill Clinton e presidente e conselheiro sênior do Citigroup.
Finalmente, o setor financeiro foi bem sucedido ao amarrar a defesa de seus interesses a um dos poucos pressupostos que ainda ressoam de uma ideologia neoliberal que se desintegra: o de que o Estado é a fonte de todas as coisas ruins que acontecem na economia. Enquanto se beneficiava do resgate financeiro do governo, Wall Street conseguiu mudar a narrativa sobre as causas da crise financeira, jogando a culpa toda no Estado.
Isso é melhor ilustrado no caso da Europa. Como nos EUA, a crise financeira na Europa foi impulsionada pela especulação, à medida em que os grandes bancos europeus buscaram substitutos de retorno rápido e alto lucro para os baixos retornos que obtinham na indústria e na agricultura. Partiram para empréstimos imobiliários e especulações em derivativos financeiros, ou colocaram seus fundos excedentes em títulos de alto rendimento vendidos pelos governos. Em seu impulso para lucrar cada vez mais, ao emprestar para os governos, os bancos europeus despejaram 2,5 trilhões de dólares na Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha.
O resultado foi que a dívida da Grécia chegou a 148% do PIB em 2010, levando o país à beira de uma crise da dívida soberana. Voltada à proteção dos bancos, a abordagem das autoridades europeias para estabilizar as finanças da Grécia não foi penalizar os credores pelos empréstimos irresponsáveis, mas jogar nos ombros dos cidadãos todos os custos do ajuste. A nova narrativa via a origem da crise não nas finanças privadas desreguladas e ultra-especulativas, mas no suposto “Estado gastador”. Ela rapidamente chegou nos EUA, onde foi usada não apenas para evitar uma reforma bancária real mas também para prevenir o lançamento de um efetivo programa de estímulo em 2010. Christina Romer, ex-chefe do Conselho de Assessores Econômicos de Barack Obama, estimou que seriam necessários 1,8 trilhões de dólares para reverter a recessão. Obama aprovou menos da metade, ou 787 bilhões, aplacando a oposição republicana, mas impedindo uma rápida recuperação. De modo que os desatinos de Wall Street não recaíram sobre os bancos, mas sobre os norte-americanos comuns, com o desemprego atingindo cerca de 10% da força de trabalho em 2011 e o desemprego da juventude chegando a mais de 20%.
O êxito de Wall Street em reverter a explosão popular contra si, após a eclosão da crise financeira, fica evidente na disputa pelas eleições presidenciais de 2016. As estatísticas dos EUA são claras: 95% dos ganhos de receita de 2009 a 2012 foram para o 1% do topo; a renda média era 4.000 dólares menor em 2014 do que em 2000; a concentração de ativos financeiros aumentou depois de 2009, com os quatro maiores bancos detendo ativos que chegaram a quase 50% do PIB. Ainda assim, a regulação de Wall Street não foi uma questão nos debates das primárias do partido Republicano, enquanto que nos debates dos Democratas foi um tema lateral, a despeito dos corajosos esforços do candidato Bernie Sanders para torná-lo uma questão de destaque.
As instituições políticas de uma das mais avançadas democracias liberais do mundo não foram capazes de lidar com o poder do establishment financeiro. Como escreve Cornelia Woll, “Para o governo e o Congresso, a principal lição da crise financeira em 2008 e 2009 foi que eles tinham meios muito limitados para pressionar o setor financeiro a adotar um comportamento compatível com a sobrevivência de todo o setor e a economia como um todo”.
Na Grécia, políticas de “austeridade” provocaram uma revolta popular – expressa no referendo de junho de 2015 sobre o resgate, no qual mais de 60% da população rejeitou o acordo – mas no final seu desejo foi esmagado, pois o governo alemão forçou Tsipras a uma humilhante rendição. É claro que os motivos chave eram salvar a elite financeira europeia das consequências de suas políticas irresponsáveis, reforçando o princípio ferrenho do reembolso total da dívida e crucificando a Grécia para dissuadir outros, tais como os espanhois, irlandeses e portugueses de se revoltar contra a escravidão da dívida. Como admitiu algum tempo atrás Karl Otto Pöhl, ex-chefe do Banco Federal da Alemanha, o exercício draconiano na Grécia era para “proteger os bancos alemães, mas especialmente os bancos franceses, de cancelamentos da dívida”.
Ainda assim, é provável que o triunfo dos bancos seja, no final, uma vitória de Pirro. A combinação de uma estagnação ou recessão profunda induzida pela “austeridade” que oprime grande parte da Europa e os EUA e a falta de reforma financeira é mortal. A prolongada estagnação resultante e a perspectiva de deflação desencorajaram investimentos na economia real para expandir bens e serviços.
Com o fim da tentativa de re-regular as finanças, os bancos têm todas as grandes razões para fazer o que fizeram antes de 2008 e que detonou a crise atual: comprometer-se em operações intensamente especulativas destinadas e obter super lucros, beneficiando-se da diferença entre o preço inflado de ativos (e de derivativos baseados em ativos) e o valor real desses ativos. Isso dura até que a lei da gravidade cause o inevitável desastre.
Estima-se que o mercado opaco de derivativos movimento hoje um total de 707 trilhões de dólares, significativamente mais alto do que os 548 bilhões de 2008. De acordo com um analista, “o mercado tornou-se tão abissalmente vasto, que a economia global corre o risco de danos maciços mesmo que apenas um pequeno percentual de contratos azede”. Seu tamanho e influência potencial são difíceis até de compreender, quanto mais de estimar”. Artur Levitt, ex-presidente da Comissão de Segurança e Câmbio dos EUA, concordou, ao dizer a um escritor que nenhuma das reformas pós 2008 “reduziu significativamente a probabilidade das crises financeiras”.
A questão então não é se irá estourar uma outra bolha, mas quando. E para nós, a lição chave é que a despeito do descrédito ideológico do neoliberalismo e da raiva popular pelas trapaças dos bancos, o poder estrutural do capital continua imenso e impediu até mesmo a prisão de qualquer banqueiro importante — que dizer de uma reforma significativa…
Em que se apoia o poder estrutural duradouro do capital financeiro? Minha impressão é que embora os fatos objetivos, a crítica intelectual e ação coletiva tenham corroído a legitimidade do neoliberalismo, fomos incapazes de articular uma alternativa robusta a ponto de enfrentar a profunda crise do capitalismo em que nos encontramos.
Há um enorme descontentamento, diante da múltipla crise desencadeada pelo capitalismo. Infelizmente, não é possível repetir o que Mao disse certa vez: “Tudo sob os céus está em desordem; excelente notícia!” Muitos daqueles que foram atropelados pela globalização movida pelas corporações estão se voltando para demagogos e ideólogos da direita, tais como Donald Trump e Marine Le Pen. Ou, no meu próprio país [as Filipinas], o presidente Rodrigo Duterte, que deu um jeito de convencer um amplo setor dos cidadãos de que o crime e as drogas estão na base dos problemas do país e que a principal cura para as enfermidades do país é matar todos, tanto traficantes como usuários. Vale lembrar que os EUA e a Europa não têm o monopólio de perigosos demagogos de direita com uma base maciça e radicalizada, grande parte deles pessoas ressentidas das classes médias baixas que desejam soluções simples e querem aprovar a violência para alcançar a visão de seu líder sobre o que seria o céu na terra.
Sem dúvida, parte do problema é o fracasso das forças tradicionais da esquerda em educar suas principais bases de apoio, tais como a classe trabalhadora branca. Outra parte tem sido a falta de habilidade para integrar populações minoritárias entre a esquerda — que tradicionalmente abrigava os desfavorecidos e marginalizados — forçando alguns a se voltarem para grupos radicais fundamentalistas tais como o ISIS. Assim, as feridas reais impostas a tantos setores pela globalização ditada pelas empresas somaram-se aos mitos sobre o deslocamento dos imigrantes e seus crimes, e ao real fracasso da integração dos imigrantes. Donald Trump, Marine Le Pen e o ISIS têm sido muito astutos ao tirar vantagem das brechas abertas pela esquerda, por aqueles que estiveram à frente de movimentos como o Occupy e a antiglobalização. Essas pessoas têm comido nosso almoço.
Não irei adiante nas razões sociológicas para o sucesso delas ou nosso fracasso, dado que muitos outros já fizeram isso, mas quero levantar uma questão. Temos ou não a responsabilidade de criar uma visão, linguagem e programa abrangentes para desenvolver uma alternativa e concretizá-la? Nos Estados Unidos, Bernie Sanders, candidato à presidência em 2016, assumiu essa corajosa tarefa ao apelar por um “socialismo democrático”, algo que ressoou no Sul Global. Penso ser urgente que concretizemos essa ideia, uma vez que o outro lado já está materializando sua alternativa na forma do trumpismo, da defesa dos partidos de direita europeus ou do brexitismo. Nesse esforço, eles somam parte da nossa crítica intelectual ao capitalismo com o apelo altamente carregado de emoção para retornar a um passado idealizado de homogeneidade branca, pureza cultural ou uniformidade religiosa.
Penso que é urgente superar nossos medos de articular grandes narrativas e expressar a necessidade de superar, através da luta comum, um mundo destruído pelo capital. Esta nova narrativa deve defender a construção de sociedades baseadas no mais profundo instinto de homens e mulheres – a cooperação. É quase desnecessário dizer que tal empenho deve também reconhecer as limitações, fracassos e distorções de esforços passados na construção de sociedades pós-capitalistas, especialmente no que diz respeito a questões de democracia, gênero e meio ambiente.
Em geral, não gosto de citar a Bíblia. Mas há alguma coisa muito profunda na passagem 29:18 dos Provérbios: “Onde não há visão, o povo perece”. Seria trágico se as pessoas fossem deixadas às modorrentas alternativas formuladas pela social-democracia na Europa, os enfadonhos Clinton, nos Estados Unidos, e os nada inspiradores movimentos de reforma comandados pela elite no Sul Global. Tais alternativas políticas, além de tudo, não serão capazes de frear os movimentos contrarrevolucionários que estão em marcha.
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Para resgatar o espírito rebelde de Seattle. Artigo de Walden Bello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU