05 Mai 2017
Centenas de processos para demarcação de terras aguardam conclusão na Justiça.
Inaldo Gamela ainda se recupera do tiro que levou na cabeça. Ele não sabe exatamente de onde partiu o disparo, mas acredita ter escapado da morte. "Eu cai depois que fui atingido, eles vieram atrás de mim. Queriam me matar. Mas consegui fugir", narra um dos líderes do povo indígena gamela sobre o confronto mais recente com fazendeiros no norte do Maranhão.
A reportagem é de Nádia Pontes, publicada por Deutsche Welle, 04-05-2017.
No dia do ataque, domingo 30, os indígenas faziam por conta própria a retomada de uma porção de terra que, segundo defendem, é tradicionalmente ocupada pelos gamela, mas está nas mãos de pecuaristas. A etnia, dada como extinta na década de 1940, quer recuperar sua história.
"Achamos uma certidão que mostra que nossas terras foram ‘doadas' pela Coroa em 1769", conta Inaldo. "Encontramos o registro de um processo dos indígenas contra fazendeiros em 1822 e uma venda das terras fraudada no cartório", adiciona o líder.
O histórico de fraudes, corrupção e grilagem quase calou para sempre os gamela. Em 2014, as lideranças iniciaram o processo para o reconhecimento de suas terras tradicionais junto à Funai (Fundação Nacional do Índio), que não progrediu desde então.
"Vemos um Estado anti-indígena, apesar de ter uma Constituição que garanta nossos direitos", menciona o capítulo 8 da Constituição, que reconhece os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas por índios.
O pedido de demarcação dos gamela, oficialmente, ainda não existe na base de dados da Funai, que acumula centenas de processos na fila de espera. O monitoramento feito pelo ISA (Instituto Socioambiental), que acompanha as informações divulgadas no Diário Oficial, aponta 704 pedidos – 480 foram concluídos, com terras indígenas demarcadas.
"A maior parte dos processos em andamento tem forte concentração no centro-sul do país. Onde, não por acaso, há maior ocupação do território, com destinação privada das terras que foi feita à revelia dos índios, historicamente", comenta Márcio Santilli, sócio fundador do ISA e ex-presidente da Funai. Nessa parte do país, fora da Amazônia Legal, vivem cerca de 40% da população indígena.
Dentro e fora das áreas demarcadas, a disputa pela terra gera violência, aponta o relatório publicado anualmente pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Dos 71 confrontos registrados em 2015, a maioria ocorreu no Maranhão. Em todo o país, 137 indígenas foram assassinados naquele ano.
Organizações internacionais que acompanham o debate veem um cenário de retrocesso. "Hoje temos uma conjuntura crítica, que foi se aprofundando ao longo dos anos. Vários projetos de lei suprimem ou relativizam de vez os direitos indígenas, por iniciativa do próprio Executivo", comenta Danicley Aguiar, do Greenpeace.
Ele faz referência principalmente à PEC 215, que transfere para o Congresso a aprovação das demarcações das terras indígenas, e ao projeto de lei que permite a exploração comercial por terceiros de recursos dentro do território indígena. "A nossa união com os indígenas é natural, pois são eles os maiores protetores das florestas", diz o coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace.
Na visão de Santilli, que presidiu a Funai de 1985 a 1996, o país vive seu momento mais crítico desde a redemocratização. "Vemos iniciativas de retrocessos legais", analisa. A pressão viria, principalmente, do setor agropecuário e segmentos ligados a grandes obras de infraestrutura. "O setor agropecuário tem poder muito grande dentro do Congresso, porque é o segmento da economia que banca as campanhas eleitorais dos grandes partidos", afirma Santilli.
Para os parlamentares que conduziram a Comissão Parlamentar de Inquérito da Funai, o problema não seria a falta de terra. "Considerando que a população indígena do Brasil é composta por 817.963 índios, ocupando 117 milhões de hectares, 13,7% de todo o território nacional, é difícil imaginar que a grande condição de indignidade dos mesmos se resuma apenas à questão da terra", diz o relatório final, de mais de 3 mil páginas.
A CPI, presidida pelo deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), foi criada para investigar denúncias de irregularidades na atuação da Funai e do Incra na demarcação de terras indígenas e quilombolas, mas deputados da oposição acusam a comissão de proteger grileiros e tentar criminalizar entidades que lutam em defesa dos índios.
Segundo o relatório final, divulgado no início de maio, a Funai é influenciada por "interesses escusos" de organizações não governamentais que recebem dinheiro do exterior. "Assim o fazem com base em laudos fraudulentos, em conluio e confusão de interesses com antropólogos e ONGs, muitas vezes, respaldados, juridicamente, por segmentos do Ministério Público Federal e patrocinado por soberanias outras que pretendem a nossa relativizar", afirma o texto.
Márcio Santilli cita motivação política, e inconstitucional, por trás do relatório. "São parlamentares que se opõem à efetivação do preceito constitucional que determina à União a demarcação das terras dos índios", defende. "O intuito é intimidar."
Ainda assim, acredita Inaldo Gamela, as lideranças indígenas não vão recuar. "Numa conjuntura como essa, em que o Estado é nosso inimigo, ou a gente faz a luta pra retomar nossas terras ou a gente vai ter que esperar milhares de anos", afirma o indígena, que estudou no seminário e já foi padre, mas abandonou a batina para defender sua etnia.
Procurada, a Funai não atendeu à solicitação de entrevista da DW Brasil.
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"O Estado é nosso inimigo": a luta dos índios no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU