14 Março 2017
Na quarta-feira de cinzas e nos domingos da quaresma, a Bondings 2.0 estará apresentando reflexões espirituais de um grupo heterogêneo de estudantes da Graduate Theological Union, em Berkeley, Califórnia, que se identificam como LGBT ou estão envolvidos com pesquisa teológica e/ou ministério LGBTQ+.
Hoje quem escreve é Jude Rathgeb, mestre em Estudos Teológicos da Escola Jesuíta de Teologia da Universidade de Santa Clara. Seus estudos concentram-se especificamente na relação bíblica entre Jesus Cristo e o Espírito Santo. Ele vive em San Francisco, onde busca várias avenidas de discurso teológico e reflexão. O texto é publicado por Bondings 2.0, 12-03-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o texto.
Acho tão importante estar conectado a mim mesmo. Na noite passada, eu estava com alguém, um homem, e queria expressar o que, por tanto tempo, tenho reprimido dentro de mim: que eu gosto dele. Que eu quero tocá-lo, abraçá-lo. Que eu sou--. Mas não consegui. Porque eu sou homem, também. Fiquei ali, ao lado dele, e não consegui reunir forças o suficiente para estar conectado - eu me sentia desconectado, dentre todas as pessoas, de mim mesmo.
'Mas de onde vem esta desconexão de mim mesmo?', eu me perguntava. Este sentimento de estar perdido, vagando, até mesmo sozinho. Certamente, a época da Quaresma nos chama a enfrentar o deserto diante de nós, mas as perguntas, pelo menos para mim, ainda permanecem: Eu sou uma abominação? Eu tenho um "eu"? Um eu real, com desejos reais, com quem posso me conectar?
Estas questões me tiram do eixo - sinto-me perturbado, até mesmo agora, enquanto escrevo. No entanto, o Novo Testamento, segundo Mateus, segue o que Jesus proclama anteriormente, no mesmo sentido: "não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir" (Mt 5:17). Na história da Transfiguração de Jesus no alto da montanha, os discípulos testemunham a Jesus glorificado, bem como a milagrosa aparição de Moisés e Elias. Se, como disse Jesus, Ele não veio abolir a lei ou os profetas, o surgimento destas duas figuras do Antigo Testamento causa grande preocupação para mim.
Em nossa tradição católica e na tradição dos nossos antepassados, o povo hebreu, Moisés é o legislador por excelência. Na verdade, os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica, conhecida como o Torah, são o que muitos povos judeus e cristãos consideram hoje a Lei de Deus, comunicada a Moisés e, então, a nós. Para aqueles que não estão familiarizados com as especificidades desta seção da Bíblia, um desses cinco livros, o de Levítico, é completamente prescritivo, com uma longa lista do que fazer e o que não fazer.
No meu caso, Levítico permanece muitas vezes na minha cabeça sempre que tento dar sentido à minha existência, a quem realmente sou. Mesmo na noite que descrevi acima, lembrei-me de um ensinamento de Levítico: "não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. Isso é abominável" (Lev. 18:22). Assim, o surgimento de Moisés na visão dos discípulos, ao lado de Jesus, é muito preocupante para mim. Se Jesus realmente não veio para abolir o que Moisés prescreve no Livro de Levítico, estou condenado a perpetuamente considerar a mim mesmo e aos meus próprios desejos como abomináveis?
Da mesma forma, o surgimento do profeta Elias ao lado de Jesus fez com que eu desse uma pausa. A tradição dos profetas considera-os como aqueles que chamariam as pessoas ao arrependimento, a voltarem seus corações para Deus. Muitas vezes, isto é uma crítica contundente e evidente de desobediência individual e coletiva. É importante notar que Elias é, talvez, o profeta mais famoso e poderoso do Antigo Testamento. Entre outras coisas, acredita-se que ele tenha ateado fogo no céu, ressuscitado mortos e sido tão digno do Paraíso que chegou a adentrá-lo ainda vivo! Se Elias, alinhado com a tradição profética, responsabiliza os infiéis à Lei por suas dúvidas, então não há espaço para mal-entendidos: transforme o seu coração ou seja vítima do pecado. Mas, como posso eu, ou qualquer outra pessoa, seguir o seu exemplo - especialmente quando se é gay?
Esta é uma pergunta que me fiz muitas vezes, inclusive naquela noite. E é uma pergunta que eu sempre quis fazer a Jesus. Por que é tão importante que eu receba uma resposta? Porque eu o amo. Mais que tudo. Eu não quero ser abominável para Ele - só quero ser amado. Então, como parte desta reflexão, e durante esta época sagrada da Quaresma, pergunto mais uma vez:
"Jesus, eu realmente sou uma abominação?"
Só então, quando perguntei, Jesus transfigurou-se diante de mim. Seu rosto brilhava como o sol e Suas vestes tornaram-se brancas como a luz. Eu estava muito surpreso, muito envergonhado, com muito medo para olhar para Ele, e me senti prostrado. "Levanta-te e não tenha medo", Ele disse para mim. E quando levantei os olhos, vi o próprio Jesus.
Vi o próprio Jesus. Moisés não estava lá para me julgar por violar a lei; Moisés nunca esteve lá para me julgar. Elias não estava lá para me criticar por ser infiel; Elias nunca esteve lá para me criticar. Eu sei disso porque vi Jesus transfigurado diante de mim. Um Jesus que, na verdade, não tinha vindo para abolir a lei ou os profetas, mas para cumpri-los por ser Amor.
Tudo que eu quero é me sentir conectado a mim mesmo, não apesar da minha homossexualidade, mas por causa dela. Quando Jesus se transfigurou, eu me enxerguei: o meu verdadeiro eu. E o seu. E, mais do que isso, Ele estava brilhando, assim como o sol; o calor de Sua luz e todo o Seu desejo acariciavam profundamente a pele do meu rosto sorridente.
Amado.
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Transfigurado de uma vida solitária e desconectada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU