22 Fevereiro 2017
Bem antes de Matteo Ricci, a ordem de São Francisco de Assis foi enviada à China em missão, por ordem do papa. E o historiador italiano Alberto Melloni analisa os pormenores desse fato.
Melloni é professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 20-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os caminhos da seda são um emaranhado. Um feixe de estradas e de rotas, acima e abaixo das grandes cadeias caucasianas, sobre as quais a audácia comercial, diplomática e missionária da Itália medieval e moderna teve uma importância igual apenas no atraso com que os grandes mediadores culturais (a Rai, por exemplo) tomaram consciência do dever de estudá-la e contá-la.
Por aqueles caminhos, em meados do século XIII, passou uma hipótese diplomático-militar não menos imprudente do que a do embaixador sarraceno que, em 1238, tinha proposto uma aliança com os cruzados para derrotar os mongóis: Inocêncio IV que mandou Giovanni da Pian del Carpine à corte dos “tártaros”. O frade, que auxiliou na eleição do novo Kahn no dia 24 de julho de 1246, propôs uma aliança contra os abássidas, conjugada em uma das cartas mais bem conservadas no Arquivo Secreto Vaticano.
No ano seguinte, Azzelino e Guicciardo da Cremona aportaram com o mesmo objetivo nas cidades-casernas da Ásia Central: e lá encontraram os generais cristãos nestorianos, herdeiros da pregação do Evangelho feita pelos missionários sírios do século VII, que se fixaram na estela de Xi’an, com a tradução do querigma e do símbolo, e onde um Cristo assentado sobre uma flor de lótus como um Buda se distingue dele por causa dos estigmas.
O rei da França, de novo, enviou Guilherme de Rubruk (ou Ruisbroek), que se fez acompanhar por Bartolomeo da Cremona na mesma direção e com o mesmo objetivo: graças aos transportes do senhor da Horda de Ouro, chegaram no inverno de 1253 à corte de Kublai Khan. Eles veriam a sua nova capital, a atual Pequim, onde ele tomaria posse da dinastia Yüan e onde Bartolomeo permaneceria, talvez com os seus livros e com a sua sabedoria. E onde Kublai Khan entregaria a Marco Polo, em 1265, uma carta para pedir que o papa enviasse seis “homens sábios”: mensagem relatada pelo mercador veneziano ao cardeal Visconti – o futuro Gregório X – antes de relatar ao soberano “o óleo da lâmpada que arde no Sepulcro em Jerusalém”, do qual os cristãos nestorianos da corte deviam ter lhe falado.
Quem conhecia bem aqueles caminhos era Giovanni da Montecorvino – franciscano da corrente espiritual, mandado como missionário para a Pérsia por Bonagrazia di Persiceto a partir de 1279, depois núncio na Armênia na corte do Rei Ayeton II. O Ilkhan Argoun em pessoa entregou a Montecorvino uma carta para Nicolau IV, primeiro papa franciscano: ele lhe entregou em Rieti, e o papa retornou com 27 missivas aos soberanos armênios, georgianos, persas e “etíopes”, na velha lógica de uma aliança anti-islâmica. Que já era secundária em relação a um desígnio missionário totalmente latino.
Em julho de 1289, frei Giovanni partiu novamente com um pequeno séquito e chegou à capital do Katai em 1293, escoltado, por último, na grande via d’água do imperador, à corte do sucessor de Kublai, Temür Khan. Da aliança militar, não se faria nada. Em vez disso, nasceu com ele uma Igreja latina que entrou em polêmica com a Igreja siríaca. E as suas cartas levadas à corte papal pelos mercadores criam entusiasmo: partem freis com “libros, calices et paramenta”, e sete são consagrados bispos por Clemente V para que pudessem, por sua vez, consagrar Giovanni e lhe conferir os poderes de jurisdição para fazer dioceses e bispos como delegado pela bula Nuper considerantes.
Giovanni organizou diversas dioceses e, quando morreu, em 1328, foi venerado como um santo na China: mas a sua construção não sobreviveu a ele. Andrea da Perugia, um dos seus bispos, confessou o fracasso oito anos depois (“ego solus remansi”), e, apesar da chegada de Giovanni da Marignolli em 1338 e da missão de Giacomo da Firenze, morto por autoridades muçulmanas em 1370, desapareceu a presença estável de cristãos latinos no Reino do Meio.
Mas não dos seus livros. O Speculum Historiale fala dos homens do Katai que têm familiaridade com as escrituras e honram as bíblias, tem-se vestígios tênues do trânsito de textos sagrados respeitados pela sua caligrafia, que, como quem conhece a cultura chinesa sabe, é a coisa mais preciosa que existe. Quem presta contas disso é o Itinerarium do citado Guilherme, no qual se fala de um volume com “tota Scriptura Sacra” e se descreve a santa pobreza dos húngaros presentes em Pequim, que não têm nada consigo, “nisi biblium et breuiarium”.
No “scriptorium” do século XIV de Montecorvino, também se lê a partir de um original que é traduzido e ditado. Um desses livros sagrados foi encontrado três séculos depois: quando os jesuítas de Matteo Ricci e de Xu Guangqi implantaram um terceiro encontro entre cristianismo e China. A sua sugestiva experiência de inculturação nasceria usando o “Tratado sobre a Amizade” de Confúcio, mas nem a sua tradução nem os livros trazidos de presente salvariam os jesuítas da obtusa desconfiança romana, que veria sincretismo nos “ritos” chineses. A obtusidade impediu de entender que esses “rituais” eram o modo necessário para dizer a única fé em chinês: e que não é a China que precisa do cristianismo, mas o cristianismo que precisa da China, para se libertar da circuncisão filosófica da cultura grega que deu ao cristianismo um retrogosto “ocidental” que não é ruim, mas não lhe é essencial.
Hoje, talvez, essa obtusidade esteja ultrapassada, se é verdade, como muitos indícios sugerem, que China e Santa Sé já encontraram um acordo, justamente submetido a uma experimentação antes de ser anunciado (“Os nossos tempos são eternos; os d’Ele, infinitos: não vai demorar muito”, dizem ter dito o mais renomado dos negociadores).
Quando ele for tornado público na China, será um domingo normal, em que entrará em uma missa católica o dobro de cristãos que fazem o mesmo na Itália. Em Roma, em vez disso, haverá a canonização de Montecorvino, de Ricci e de Xu. Um domingo qualquer para uma reviravolta epocal.
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Quando os jesuítas eram os franciscanos. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU