06 Dezembro 2016
No último dia 29, enquanto a PEC 55 era aprovada no Senado em primeiro turno, pelas ruas de Brasília, manifestantes vindos de todo o país gritavam os prejuízos que a proposta vai causar aos brasileiros, principalmente aqueles dependem da saúde e da educação públicas, ao som de balas de borracha e bombas de efeito moral. Com a presença massiva de estudantes, a defesa da educação pública, ganhou relevância.
Em entrevista para Raquel Júnia do portal EPSJV/Fiocruz, 02-12-2016, o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, que também esteve em Brasília, analisa os cenários possíveis após a aprovação da PEC e reforça a necessidade de massificar as informações sobre o tema. Daniel alerta sobre a relevância ainda maior neste momento de um trabalho de formação política, que na opinião dele, foi pouco praticado pela esquerda nos últimos tempos.
Eis a entrevista.
Diante da aprovação da PEC no primeiro turno no Senado, quais as perspectivas para a defesa da educação pública?
As cenas que aconteceram dia 29 provam que o Congresso Nacional está completamente enclausurado e de costas para a sociedade. E a tendência é aprovar em segundo turno, considerando que os placares são muito próximos ou até se repetem desde o processo de impeachment. O governo tem tido uma base parlamentar que foi composta numa cumplicidade pautada por um processo de impeachment que maculou a democracia e posteriormente decisões que maculam o nosso raquítico Estado de Bem- Estar Social. A gente nem tem um Estado de Bem-Estar Social ainda, essa era a promessa da Constituição de 1988 e a base parlamentar do Temer desconstrói o pouco que já avançamos no Brasil.
Então, a tendência agora é fortalecer o processo de mobilização social e fazer com que a PEC 55 a cada dia que passe fique mais desmoralizada na sociedade, o que certamente deve ter algum efeito no momento do voto. Vai haver uma situação muito estranha em 2018 porque eu tenho quase certeza que, em termos morais, a sociedade brasileira tende a optar novamente por governos mais conservadores, mas ela não vai aceitar – eu tenho cada vez mais convicção disso olhando todas as manifestações que têm ocorrido e mesmo acompanhando os debates do cotidiano – uma medida como a PEC 55 por muito tempo. Ela vai ter consciência até lá de que a PEC vai diminuir o acesso às escolas, vai diminuir a qualidade das escolas, vai diminuir o acesso à saúde, à assistência social, às políticas de cultura. É uma PEC que vai reproduzir as desigualdades e eu imagino que em 2018 a gente já vai ter mais força para fazer com que essa medida seja revogada. Agora, não dá para parar a mobilização nas ruas, não dá para desanimar perante a desfaçatez do Congresso Nacional.
A PEC introduz uma regra de teto de gastos para os próximos 20 anos, com a possibilidade de revisão da política daqui a dez anos. Você mencionou a necessidade de intensificar a mobilização. Considerando que ela seja aprovada em segundo turno, quais os mecanismos possíveis para a revogação dessa PEC antes desse prazo de dez anos?
Primeiro que a PEC 55 é completamente irracional. Provavelmente a partir de 2019 esse efeito fique mais claro, porque a gente conseguiu uma pequena vitória na Câmara dos Deputados, que foi retardar o efeito da PEC para 2018 para a saúde e a educação. Isso vai amenizar um pouco o impacto na vida das pessoas. O cenário agora é que a gente tem até 2018 para fazer com que o tema da PEC 55 seja um tema nacional, que ele supere as barreiras que são impostas pela grande mídia, que apresenta só uma versão sobre a PEC 55, que é uma versão falaciosa de que ela representa o controle dos gastos públicos, o que não é verdade. Até porque a dívida pública não está constrangida pelo teto de 20 anos, pelo contrário, ela pode crescer infinitamente. O que está constrangido pelo teto de 20 anos é exatamente o investimento em saúde, em educação, o pagamento dos servidores públicos.
Então, é uma proposta altamente regressiva. O desafio agora é informar a sociedade, é mostrar que muito do que vai acontecer de ruim no cotidiano das pessoas advém dessa PEC 55. É preciso tornar essa PEC 55 algo compreensível pela população, coisa que a grande imprensa fez questão de não fazer porque defende essa proposta. Então, a gente tem um desafio agora que é muito grande, muito complexo, mas a gente vai ter que dar conta dele, no sentido de mostrar para as pessoas que as condições de vida vão piorar e o resultado dessa piora é a implementação da PEC 55. Eu não gosto de uma hashtag que tem circulado - eu mesmo já utilizei mas me arrependo - que é da PEC do fim do mundo.
É claro que o efeito da PEC é altamente pernicioso, disso eu não tenho duvida, mas a história não vai acabar com a aprovação da PEC 55. É muito provável que ela seja aprovada no Senado e seja promulgada logo em seguida, mas a história não vai acabar e a gente precisa mostrar isso para as pessoas. Mostrar que as condições de vida vão piorar porque esse governo é irresponsável, de caráter ultraliberal, mas que a gente vai continuar lutando, que a gente tem ainda a prerrogativa do voto e que precisamos fazer bom uso dessa prerrogativa. As pessoas não podem votar em quem aprova a PEC 55. Eu acho que é nesse caminho que a gente vai conseguir obter uma vitória, que não vai ser agora, então infelizmente a PEC vai vigorar pelo menos até o final do mandato do Temer certamente, e vai ser uma luta para derrubá-la, mas eu não acho que seja impossível. Isso se a gente trabalhar bem no processo de mobilização e de formação política - nosso campo por muitos anos deixou de fazer formação política - com uma formulação econômica mais clara para as pessoas. Nós temos esses desafios pela frente e vamos precisar dar conta deles.
Falando sobre os mecanismos legislativos e legais pelos quais a mobilização popular pode pressionar, só uma outra PEC derrubaria essa PEC?
Exatamente. Porque essa PEC age sobre os atos das disposições constitucionais transitórias. É um espaço na Constituição que é possível modificar desde que você tenha maioria, então não é possível revogar a PEC simplesmente. Existe outro caminho, mas que a gente não tem falado muito sobre ele porque é muito sinuoso, arriscado e depende do clima político do país, que é o caminho da judicialização. Nós vamos arguir o STF sobre a inconstitucionalidade dessa proposta, porque nós consideramos que ela é inconstitucional. Porque se a PEC 55 for promulgada e se tornar uma emenda à Constituição, ela é uma medida que vai contra elementos centrais da Constituição, cláusulas pétreas que entram nos direitos sociais. Os direitos sociais não existem só como uma declaração e parte dessa garantia de efetividade dos direitos sociais é o mecanismo de financiamento dos direitos, especialmente do financiamento da educação. E a PEC atinge diretamente o artigo 212, que é o que fala do financiamento da educação pública.
Então, com base nessa argumentação, nós vamos fazer uma ação de inconstitucionalidade. Nós temos só o ministro Gilmar Mendes fazendo a defesa da PEC 55, mas ele faz a defesa de qualquer coisa que seja negativa para o financiamento dos direitos sociais, então não é novidade. Há muitos outros ministros que podem declarar a inconstitucionalidade da PEC 55. Mas primeiro precisa aprovar a proposta, para depois apresentarmos essa ação. Eu estive na assembléia das Nações Unidas fazendo uma denúncia da PEC 55 e na semana que vem estarei junto com outro grupo grande de entidades brasileiras fazendo uma denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no Panamá, também sobre as outras medidas regressivas do governo Temer. Então, agora também vamos ter que trilhar esses caminhos internacionais.
Em relação a esse caminho legislativo, qual a permeabilidade do Congresso para que a população pressione pela revogação da PEC? Um projeto de lei de iniciativa popular, por exemplo, poderia originar outra PEC?
Depois do que foi feito ontem, a minha sensação é de que é um Congresso apartado da sociedade, que representa os 70 mil super-ricos do Brasil que não vão ser afetados pela PEC 55, contra os outros 200 milhões de brasileiros. O assustador é que os 200 milhões elegeram esse Congresso. Isso demonstra o quanto a gente falhou em termos de formação política. É um Congresso que só faz uso de argumentos falaciosos porque o argumento racional é bem básico. Se as pessoas estão satisfeitas hoje com o que acontece com os direitos sociais, se estão satisfeitas com a saúde pública, com a educação pública, elas devem apoiar a PEC 55. Quem acha que o que temos hoje é insuficiente, tem que ser contra, porque a PEC 55 vai não só evitar a melhoria da qualidade do serviço público, como piorar o que já existe hoje. Então, ela impede a melhoria e ao mesmo tempo piora o que já existe. Quem pensa que isso é ruim é contra a PEC 55, quem pensa que o serviço público já alcançou a excelência e pode cair a qualidade, apoia a PEC 55. Os parlamentares estão nessa linha, eles acreditam que da forma como está hoje, está bom. É claro que eles pensam dessa maneira porque não se preocupam com a população, se preocupam em manter as suas posições de poder. Um projeto de lei de iniciativa popular até poderia derrubar a PEC, mas o problema é que os parlamentares têm que aceitar fazer a tramitação da matéria.
O que aconteceu com o Calero [Marcelo Calero, ex ministro da Cultura] - embora ele não seja nenhum santo e nem deva ser beatificado como a imprensa fez - denunciando o ocorrido entre ele, o Temer, o Geddel Vieira Lima [ex ministro da Secretaria de Governo] e o Padilha [ Eliseu Padilha, Ministro-chefe da Casa Civil] é suficiente para a abertura de um processo de impeachment, mas o Rodrigo Maia [Presidente da Câmara], aquele que deve aceitar o processo de impeachment, faz uma coletiva de imprensa junto com o Presidente da República comprovando a indissociabilidade dos poderes do Brasil. Os poderes já não são mais divididos. O governo federal hoje representa efetivamente o controle. Esse bloco de poder representa o controle do Executivo e do Legislativo, eu nunca vi uma coletiva de imprensa com o Presidente da República, o Presidente da Câmara e do Senado. Então, eu acho bem difícil qualquer caminho institucional parlamentar hoje ser bem sucedido. Mesmo entre os parlamentares de oposição, são poucos os que fazem uma boa representação, a maior parte deles está mais assustada com as eleições de 2018 do que de fato fazendo oposição. Então, a gente está numa posição muito ruim, por isso é preciso formar novas lideranças, investir em formação política. Pode até demorar muito tempo para a gente obter resultados, mas os resultados que obtivermos com essa estratégia vão ser estruturais. Então, este é um ponto fundamental.
Essa consciência do quanto a PEC pode ser negativa está ainda restrita?
Ela não é tão restrita, já superou a bolha. Você encontra pessoas na rua discutindo a PEC, muitas delas repetem a metáfora absurda de que o país se administra como uma casa, como se a macroeconomia fosse tão simples como a microeconomia. Lógico que não é verdade, administrar um país é muito diferente de administrar uma casa, mas quando as pessoas começam a conversar e pensam como vai ser financiada a educação e como vai ser financiada a saúde, elas começam a entender. Porque o que as pessoas querem é mais Estado, não é este Estado que nós temos no Brasil, é um Estado que atenda às suas necessidades de dignidade humana. Ninguém é contra educação pública, saúde pública. Tem alguns dois ou três que defendem que é melhor não ter Estado, que a educação e saúde privadas são de melhor qualidade, mas estes são muito pouco representativos na sociedade. O grosso da população, mesmo a população de classe média alta, quer bons serviços públicos. Isso tem sido comprovado em todas as pesquisas feitas nas manifestações de direita. Sempre quando tinha uma entrevista de profundidade, mostrava que as pessoas queriam mais Estado.
É claro que tem uma contradição: querem mais Estado e menos tributos, daí a conta não fecha. É preciso ter mais Estado e ter também a tributação necessária para dar conta desse Estado. Agora, para que o Brasil arrecade mais nem precisa aumentar a carga tributária, é só fazer com que os ricos paguem o que devem, e no Brasil isso não acontece. Os pobres pagam proporcionalmente muito mais impostos do que os mais ricos. Essa seria uma solução. A PEC 55 seria solucionada se você mudasse o padrão de tributação no Brasil. Se avançasse um pouquinho só sobre o patrimônio e a renda dos mais ricos, aquilo que a PEC pretende resolver estaria resolvido.
As manifestações durante a aprovação da PEC no Senado foram reprimidas com violência, no entanto, a imprensa comercial mostra apenas o patrimônio danificado. Você acompanhou de perto o que aconteceu?
O que aconteceu foi que havia uma situação na qual a polícia estava totalmente despreparada. A gente vê a diferença. Eu já estive em diversas manifestações fora do país, inclusive mais agressivas do que as manifestações brasileiras. É verdade que em nenhum lugar do mundo o policial tem clareza do seu papel, o papel do policial é proteger a vida humana, é proteger o cidadão, mas no Brasil isso passa completamente ao largo. Os policiais tratam os cidadãos brasileiros como inimigos, é o outro que precisa ser eliminado. O que aconteceu ontem [dia 29 de novembro] foi que os policiais, perante o ato irresponsável de alguns manifestantes que fizeram o uso da violência, mas também o fizeram porque estavam acuados, acharam que estavam legitimados a praticar qualquer tipo de violência. E aí foi lançamento de gás de pimenta por helicópteros, foi uso abusivo de bala de borracha, aniquilamento da manifestação. Fizeram movimentações pressionando, comprimindo a manifestação, jogando a manifestação contra prédios públicos. Isso gerou uma nova onda de depredação porque as pessoas ficaram acuadas, elas não queriam depredar, queriam sair, mas estavam acuadas e, nessa tentativa de sair, acabavam se espremendo, se exaltando e tentando revidar a agressão sofrida pelos policiais. Está errado manifestante que vai depredar prédio publico? Está errado. Mas a responsabilidade dele é menor do que a responsabilidade do policial que tem o monopólio da violência exatamente para poder ser o garantidor da paz e da segurança.
O que assusta é a postura do governador do DF, Rodrigo Rollemberg, que fez uma defesa insana de enclausuramento do Congresso Nacional, sendo que 99% dos manifestantes simplesmente queriam expressar a sua contrariedade com a PEC 55 e a reforma do Ensino Médio. Então, isso mostra como a nossa democracia é frágil, porque sequer a polícia, que é o aparato último do Estado, tem a capacidade de compreender o seu papel, ela só sabe agredir e tratar aqueles que ela deve proteger como inimigos.
Você citou a MP 746, que reforma o Ensino Médio como uma pauta forte também na mobilização do dia 29. Qual o peso do setor de educação nesse processo de resistência?
A educação tem puxado por dois fatores: ela é a maior política pública para a juventude e também os jovens, desde junho de 2013, têm sido os principais atores de mobilização no Brasil. Não estou julgando quais jovens e a qualidade da mobilização, mas especialmente desde junho de 2013 é o que tem acontecido. Sempre foi assim, mas isso aumentou. Tem outro fator que é importante: a educação é a área mais atacada. O ataque começa com Alckmin [Geraldo Alckmin, governador de São Paulo] em 2015, com a proposta de reorganização da educação paulista, mas o ataque avança, vai para Goiás, Ceará, Espírito Santo, Rio Grande do Sul. São vários estados fazendo reformas educacionais, especialmente do Ensino Médio, altamente negativas para a qualidade da educação e para a garantia do direito à educação na sua plenitude. Isso gerou um processo de mobilização muito intenso e, com o anúncio da Reforma do Ensino Médio, e da PEC 55 não teve outra alternativa para os jovens a não ser se mobilizarem e ocuparem escolas. Esse é o único saldo positivo de tudo que a gente tem visto nos últimos meses no Brasil, a mobilização dos jovens e a defesa convicta da educação pública por parte deles.
A manifestação durante a aprovação da PEC no primeiro turno no Senado foi expressiva do ponto de vista da diversidade e quantidade de movimentos presentes?
Considerando as dificuldades que a gente tem hoje para mobilização, a chegada à Brasília, todos os constrangimentos que você sofre até chegar lá, foi bastante expressiva sim. É bem simples de calcular essa expressividade, é só olhar o grau de falta de informação na imprensa sobre a manifestação. Claro, foi um dia muito difícil para o Brasil por conta do acidente da Chapecoense, mas o fato jornalístico deveria ter recebido cobertura até porque os manifestantes foram gravemente agredidos. E os principais portais não deram uma linha.
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'O desafio agora é mostrar que muito do que vai acontecer de ruim no cotidiano das pessoas advém dessa PEC' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU