14 Outubro 2016
“Nossas esquerdas devem saber que a nossa sociedade é majoritariamente conservadora porque: a) é conduzida pelo medo: medo dos potentados e corruptos de perder seus privilégios; e medo das classes médias de perder o pouco que têm. E, b) o baixo nível da nossa educação, centrada hoje na formação de técnicos mais que em cidadãos, em esquecer as humanidades (que, pelo menos ensinam que as coisas são complicadas e os simplismos nefastos), e em pregar o direito ao prazer mais que o apelo à solidariedade, fomenta esse conservadorismo”, escreve José Ignacio González Faus, teólogo jesuíta espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 13-10-2016. A tradução é de André Langer.
É comum a afirmação de que a direita está sempre unida porque se une em torno de interesses e a esquerda sempre está desunida porque se une em torno de ideais. A imagem volta a ser, infelizmente, atual. Mas, para encará-la melhor, conviria examinar um pouco mais a identidade da esquerda.
Na realidade, há dois tipos de esquerda. Caberia chamá-las de esquerda-Voltaire e esquerda-Marx. A primeira é anticlerical, antimonárquica, irônica e simpática; mas profundamente burguesa: recordemos a célebre frase de Voltaire (“o supérfluo é coisa muito necessária!”) e sua defesa da escravidão para que não soubesse o preço do cacau.
A segunda é marcada pelo caráter judaico de Marx e seu conhecimento dos profetas de Israel. Com todos os seus defeitos, Marx viveu pobre e só por uma causa: a aposta incondicional nas vítimas deste sistema cruel. Suas superstições sobre o paraíso futuro são muito ingênuas, embora compreensíveis como estímulo para manter essa luta.
Nossas esquerdas devem se perguntar se têm o sobrenome de Voltaire ou de Marx. As reivindicações culturais do primeiro, por mais legítimas que sejam algumas delas, são secundárias em relação às exigências sociais do segundo; e podem esperar. Mas não é assim; outrora eu disse que o PSOE começou a desvirtuar-se quando Cuca Solana proclamou que “os socialistas também tem direito de passar o verão em Marbella”. Mas, não: enquanto houver um único faminto neste país, nenhum verdadeiro esquerdista tem direito a isso. Isso fica para os Granados e outros.
Também o ERC (Esquerda Republicana da Catalunha) está sacrificando os aspectos verdadeiramente esquerdistas (a causa dos pobres) a reivindicações menos significativas hoje, como a república. Dizer que somos um partido com vocação para governar é uma sandice: devemos procurar ser um partido que mereça ser chamado a governar, um mérito que não parece tê-lo um PSOE convertido em uma balbúrdia. Após o 26J, os líderes das nossas esquerdas não foram capazes de encontrar nenhuma culpa que justificasse seu fracasso. Pelo contrário, entoaram hinos ao seu grupo, como se fossem fundamentalmente religiosos gringos. Pablo Iglesias poderá dizer que as pessoas tiveram medo deles: mas evita reconhecer quanta culpa eles tiveram nesse medo, anunciando paraísos quando, na verdade, ao que se podia aspirar, era passar do ruim ao regular...
Em um país com uma enorme dívida, com a probabilidade de uma multa de Bruxelas (mais provável se a esquerda ganhar), com o melhor de sua juventude emigrada e em que um governo inescrupuloso comeu em quatro anos quase dois terços do fundo da seguridade social, o medo não era devido apenas às sórdidas calúnias do PP (“financiados pela Venezuela e pelo Irã”, assim como as contas de Trías na Suíça, etc.), mas, sobretudo, ao fato de que eles davam a sensação de não saber em que país se encontravam. É como se, diante de um enfermo com câncer, o seu médico (e que tem boa parte de responsabilidade) promete seguir com o tratamento habitual, ao passo que outro médico promete que dentro de duas semanas o enfermo poderá participar, como atleta, dos Jogos Olímpicos. Que escolha restaria à pobre família?
Mas, não temos necessidade de apelar a Marx: talvez pudéssemos ter falado diretamente da “esquerda-Jesus”: essa esquerda é essencialmente ética. E, na medida em que queira ser verdadeiramente cristã, implicará em erigir as vítimas do planeta em senhores absolutos, sem cair na ingênua vaidade de se achar melhor por isso. Isso permite concluir que a palavra que melhor pode designar a identidade das esquerdas é a palavra igualdade. O que implica duas coisas: por um lado, o trabalho por uma sociedade muito mais juta e igualitária que a nossa.
E, por outro lado, o diálogo: precisamente porque os seres humanos são iguais, todos merecem respeito e podem ser considerados como interlocutores, para ver o que se pode tirar deles sem que fragilize minhas convicções, mas talvez as complete. Para Jesus, a denúncia das injustiças, que foi tão dura, nunca foi incompatível com sua abertura a todos os seres humanos concretos. E isso só brotará de uma esquerda não inflada pela vaidade, mas pelo amor às vítimas deste sistema cruel. A esquerda é essencialmente dialogante: essas posturas ultras de “comigo ou contra mim”, do eu sou a verdade absoluta e os outros o eixo do mal e de que só nós podemos “expulsar demônios”, caem bem para o inefável Bush júnior, mas contaminaram muito as nossas esquerdas.
Mas, toda ética autêntica reclama realismo se não se quiser acabar em farisaísmos ou em contos de fadas. A esquerda deve abandonar o engano de que a nossa sociedade é majoritariamente de esquerda. Isso valeria talvez para a esquerda-Voltaire (ou para a ambígua palavra “progressismo”), mas não para a esquerda-Marx. Entre “progressistas” e “pobres” está o verdadeiro dilema.
Nossas esquerdas devem saber que a nossa sociedade é majoritariamente conservadora porque: a) é conduzida pelo medo: medo dos potentados e corruptos de perder seus privilégios; e medo das classes médias de perder o pouco que têm. E, b) o baixo nível da nossa educação, centrada hoje na formação de técnicos mais que em cidadãos, em esquecer as humanidades (que, pelo menos ensinam que as coisas são complicadas e os simplismos nefastos), e em pregar o direito ao prazer mais que o apelo à solidariedade, fomenta esse conservadorismo.
Vou dar um exemplo de hoje: em Badalona criou-se um conflito desnecessário e inútil, com a mania de não celebrar o feriado de 12 de outubro só porque é o aniversário de um genocídio. Não duvido da boa vontade da prefeita, e creio também que houve genocídio. Mas, seguramente essa prefeita bem intencionada desconhece que, além do genocídio, houve uma série de nomes como Antonio de Montesinos, Bartolomé de Las Casas, Toribio de Mogrovejo, Cristóbal Pedraza, A. de Valdivieso e vários outros (Francisco de Vitória na Espanha), que resistiram aos conquistadores, e graças a eles conservou-se o guarani, o quéchua, o aimara, o náhuatl no México e várias outras línguas. Coisa que não aconteceu no norte da América. Seria muito mais hábil celebrar estes nomes e dar, assim, a volta por cima à ambiguidade desta festa. Ao contrário, do jeito como se fez, mais que como um ato revolucionário, permanece como um novo episódio para o “Celtiberia Show” do amigo Carandell.
Outro exemplo para concluir: Hans Magnus Enzensberger (prêmio Príncipe das Astúrias) tem uma breve novela (Sempre o dinheiro), em que uma tia supermilionária (“astuta e cínica”) explica aos seus sobrinhos como funciona a economia: com absoluta lucidez sobre suas injustiças, mas para acrescentar depois que isso não pode ser mudado, porque os que pretendem mudá-la serão vítimas de sua própria cobiça quando tiverem um pouco de poder. Depois disso, como a tia não necessita de falas justificativas, permite-se acrescentar:
“possivelmente, Marx era um tipo desprezível, mas, pelo menos, não era um charlatão e um hipócrita, (mas) um homem inteligente e incorruptível... Tinha uma visão de lince para dar-se conta do que estava acontecendo... Eu teria gostado de falar com ele!... Há mais de 150 anos prognosticou que o capitalismo acabaria mal. Eu também vejo as coisas assim – lhe teria dito. Mas, quando exatamente será derrubado? Não enquanto você e eu estivermos vivos, certo?”
Talvez a esquerda tivesse que recuperar o melhor de Marx, o que faz com que se tache o Papa Francisco de “comunista” quando proclama o Evangelho: denunciar um sistema que mata e as mil pseudojustificações que procuram encobri-lo – que “as ideais dominantes são apenas as ideias da classe dominante”.
Dizer estas coisas incomoda muito, mas creio que alguém tem que dizê-las. Eu sou um dos que menos tem a perder com isso.
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González Faus: “Por uma esquerda-Jesus; o que melhor pode designar a identidade da esquerda é a palavra igualdade” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU