07 Outubro 2016
Estreia discreta da semana nos cinemas (está em exibição desde terça-feira apenas no CineBancários), O botão de pérola é daqueles filmes imperdíveis, que só um circuito exibidor tacanhamente subjugado aos blockbusters de Hollywood poderia deixar tão de lado. Trata-se do segundo filme da mais nova trilogia política assinada pelo documentarista chileno Patricio Guzmán, que se iniciou com o extraordinário Nostalgia da luz (2010) e deve ser encerrada em breve com um terceiro filme sobre os crimes cometidos pela ditadura de Pinochet.
A reflexão é de Daniel Feix, publicada por Zero Hora, 06-10-2016.
A lembrar: Guzmán é o diretor do histórico A batalha do Chile (1975-79), série monumental formada por três longas- metragens sobre a deposição do governo de Salvador Allende. Seus títulos mais recentes voltam ao período que culminou com o regime militar, relembrando a repressão a partir de associações a características da história e da geografia de seu país. Se em Nostalgia da luz o cineasta visitou o deserto do Atacama, território ao mesmo tempo de observação astronômica e depósito de corpos dos oponentes do regime, em O botão de pérola traça um paralelo entre as perseguições promovidas pelos agentes de Pinochet e o extermínio dos povos indígenas, décadas antes, no extremo sul da América do Sul.
O que os une é uma engenhosa construção narrativa, reconhecida com o Urso de Prata de melhor roteiro no Festival de Berlim, que tem como ponto de partida a presença da água na formação identitária do Chile – o litoral do país tem mais de 4 mil quilômetros de extensão, e o território sulista, berço de tribos dizimadas pelo homem branco, é basicamente um dos arquipélagos com a maior quantidade de ilhas de que se tem notícia. O terceiro filme dessa série (que ainda não tem título nem data de lançamento) falará sobre a Cordilheira dos Andes, o que permite concluir que se trata de um grande ensaio sobre a formação de um país marcado pela união do mar com o deserto e as montanhas à sombra da violência – “Praticada pelo mais forte sobre o mais fraco”, para reproduzir uma frase da narração em off de O botão de pérola (a voz é a do veterano diretor de 75 anos de idade).
Há apuro visual nas imagens apresentadas por Guzmán, especialmente quando sua câmera percorre os trechos de mar em meio ao gelo da Patagônia. Ainda mais impressionantes são as entrevistas com os raros descendentes das tribos e as fotografias recuperadas pelo cineasta, por meio das quais podem ser constatados costumes ancestrais dos índios, como o de pintar o corpo reproduzindo desenhos de constelações que eles viam no céu. A história do nativo cooptado pelos europeus – que justifica o título do filme – beira o inacreditável, mas, em meio a um contexto tão rico, soa “apenas” como mais um elemento deste que é, desde já, um dos grandes documentários do nosso tempo.
Nada é mais decisivo para o resultado final do que o texto escrito por Guzmán. Apoiando-se na intuição para fazer associações entre tempo, espaço e as relações sociais, o realizador promove reflexões de caráter poético que dimensionam com profundidade incomum alguns fatos históricos. É multidisciplinar o seu exame das grandes tragédias chilenas: até a astrofísica cumpre papel relevante na conformação de certas situações. Paradoxalmente, O botão de pérola evidencia que as causas dessas tragédias remetem a questões primitivas da vida em sociedade – a luta por território e riquezas naturais, a ganância e a incapacidade de conviver com o diferente.
Trata-se de um convite ao pensamento mais elaborado. Irrecusável.
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Onde o mais forte sempre vence. Um filme a ser visto e debatido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU