Por: Márcia Junges | 13 Setembro 2016
Um fenômeno que se aprofunda com uma transformação radical do capitalismo. Assim o economista francês Yann-Moulier Boutang sintetiza um dos traços fundamentais do tema em debate na manhã de terça-feira, 13-09-16, no IV Colóquio Internacional IHU - Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica.
Em sua fala em português, intitulada Compreendendo a financeirização: conceito(s), origens, impactos e (im)possibilidades, Boutang destaca que a etimologia do termo finança (finer) remonta ao século XIV, e traz consigo a ideia de conclusão e finalização. A finança é um sistema substituto econômico de instituição econômica que tem três funções específicas: 1) garante tráfego de transações financeiras; 2) junta as poupanças e as coloca em projetos de investimento; 3) realiza o cálculo ou risco e faz algo ser rentável.
A finança corresponde ao binômio crédito-dívida, ou equilíbrio-equivalência. Já o dinheiro aparece quando desaparece a relação de confiança, aponta Boutang referindo-se às reflexões recentes de David Graeber.
“O tamanho da finança na economia era muito pequeno inicialmente. Hoje, seu perímetro é muito maior porque o setor financeiro da economia inclui todas as instituições que permitem realizar essas transações de créditos, financiando assim bancos e outros agentes financeiros”, afirmou à plateia.
Normalmente as explicações da financeirização trazem somente suas consequências fatais, observa. Diz-se que a financeirização é compreensível pela ganância. Porém, existem explicações que não recorrem à condenação moral. É o caso de Lênin, que toma de empréstimo de Hilferding a noção de capital financeiro.
A globalização assinala a passagem de um capitalismo industrial a um terceiro capitalismo que chamamos de capitalismo cognitivo. Essa mudança tem consequência e mudanças enormes sobre a disciplina no trabalho. A produção volta a ser produção de conhecimento, ao invés de produção de mercadoria por meio de produção de mercadoria. Boutang aponta como a revolução digital substituiu as operações da parte esquerda do cérebro pelos programas de dados, que resolvem automaticamente, ou em poucas horas, o que várias pessoas levariam dias para realizar.
Ao explicar o capitalismo cognitivo, Boutang menciona que este é uma acumulação de dispositivos institucionais e produtivos tais como as plataformas de colaboração e as redes sociais, tendentes a capturar as relações produzidas pela interação humana. “Trata-se de um dispositivo de captura que visa o conjunto da atividade humana, e não simplesmente o trabalho para a conta de outro em fábricas”.
E é através da interação das multidões que se produzem bens imateriais como confiança, consciência, cuidado, atenção, amor, afetos, criatividade, inteligência, persuasão e cooperação. A produtividade da cooperação além da rede numérica não é um fato isolado. Ela se generaliza na nova economia à qual Boutang reivindica a possibilidade de concretização. “A riqueza crescente que se gera na nova economia é maior do que aquela do trabalho pago e dependente. É o caso da polinização, que através de um estudo na França detectou que o empobrecimento da biodiversidade é de 253 a 525 vezes a riqueza de comércio criada pelas abelhas domésticas. “Mas isso não interessa aos lobbies como do agronegócio e dos pesticidas das multinacionais”, ironizou Boutang .
O poder da finança de mercado é imenso, e o poder do crédito sempre existiu - é a chave para superar a limitação dos meios do homem frente ao tempo, a natureza hostil, a sua falta de equipamento. Mas este pode se tornar também o poder do credor sobre o endividado e transforma-lo em escravo, ou assujeitado.
Boutang afirmou que a finança hoje não cria mais empregos, sobretudo depois da crise de 2008. Só na França serão de 15 mil a 30 mil empregos ao ano que serão deixados de criar. A finança de mercado é a governança por padrão das externalidades. A economia se tornou a polinização humana desproporcionada com respeito a economia material. A riqueza que forma na circulação precisa um aumento desproporcional de ativos líquidos, contando que princípios estáveis novos não fossem estabelecidos. “Portanto, a crise na economia é a crise da desproporção”.
Dessa forma, acrescenta o pesquisador francês, na economia de polinização a mobilidade humana é fundamental, pois surgem novas formas de coisas que não se conhece. Fala-se então de uma lógica não causal, mas efetual (fundada na teoria das catástrofes). E acrescenta: “A inovação é a criação do novo. Não se pode deduzir a inovação analiticamente dizendo que a inovação é como uma receita culinária. Não podemos dizer que uma coisa nova será criada especificamente, mas somente criamos as condições de emergência do novo. Um sistema complexo não pode fazer intervenção industrial, mas sim acrescentar as condições boas para a sobrevivência e desenvolvimento espontâneo do sistema”.
“A financeirização usa de técnicas que são justamente a origem de sua instabilidade. Contudo, o sistema não irá acabar, mas se modificar”, adverte Boutang . O interessante é a intervenção dos bancos centrais em alguns países. São os bancos centrais que são independentes e usam a criação de moeda, de dívida para financiar atividades e gastos públicos. Isso porque os Estados não o fazem.
A finança de mercado e o seu poder insolente suscitam tantas reações de ódio quanto o aparecimento do dinheiro, o crédito e a primeira finança suscitou entre os séculos XI e XIV com a querela dos franciscanos sobre o uso e a propriedade. Surgirá agora uma nova querela, provoca Boutang ?
Boutang durante a apresentação (Foto: Fernanda Forner | IHU)
Frente a esse quadro complexo, é possível uma outra finança? Boutang pensa que sim. “Numa economia positiva, ou de polinização, o gigantesco poder da finança deve ser posto a serviço de objetivos como a transição energética, a luta contra a poluição química de terras aráveis, uma renda decente para todos, com investimento maciço na saúde e preservação do meio ambiente. O banco central poderia comprar emissões públicas e privadas de empréstimos a projetos ecológicos, redução de poluição, indústria verde, mas também melhorar a qualidade dos serviços públicos”.
E que nome teria essa outra finança, essa nova finança? Boutang intitula essa possibilidade como a finança de Estado numa economia de polinização. Com isso, destaca que é preciso organizar a passagem da finança de mercado em crise à finança de mercado em uma economia de polinização. Entre alguns autores citados que inspiram essa ideia, Boutang menciona Hervé Guez e Philippe Zaouati, autores de Para uma finança positiva (2014), onde explicam o interesse de desenvolver uma finança ecológica e socialmente responsável.
Tão logo foi aberto o debate ao público os manifestantes questionaram Boutang sobre a existência de vontade política para colocar em prática essa economia de polinização. Certamente não será uma tarefa simples: “O mundo da finança é ligado ao mundo poder, dos Estados, dos ricos, e essa gente tem interesse contínuo, porque a financeirização multiplicou por 10 ou 20 os lucros e renda dos mais ricos da sociedade. Enquanto isso, os pobres ficaram ainda mais pobres”.
Yann Moulier Boutang é professor de Ciências Econômicas na Université de Technologie de Compiègne - Sorbonne Universités, na França, membro do laboratório Connaissance, Organisation, Systèmes Techniques - COSTECH EA 22 23, Trivium CNRS. Leciona também na China, na Universidade de Shanghai - UTSEUS, na Ecole Nationale Supérieure de Création Industrielle - ENSCI, Paris, no curso Master Innovation by Design. É um dos fundadores e coordenadores da revista Multitudes. Trabalha com o tema das migrações internacionais, a escravidão, as transformações contemporâneas do capitalismo, a economia digital, os direitos de propriedade intelectual, a inovação. Entre suas obras mais recentes, estão Cognitive capitalism (2012, Polity Press, Cambridge, UK) e L’abeille et l’économiste (Paris 2010).
- O poder das finanças e as estratégias para romper a crise sistêmica. Entrevista com Yann Moulier Boutang, publicada na revista IHU On-Line nº 492, de 05-09-2016.
- A financeirização e as mutações do capitalismo. Entrevista com Yann Moulier Boutang, publicada na revista IHU On-Line nº 468, de 29-06-2015.
- “O sistema financeiro de mercado é como o sismógrafo desta crise”. Entrevista com Yann Moulier Boutang publicada na revista IHU On-Line nº 301, de 20-07-2009.
- A bioprodução. “O capitalismo cognitivo produz conhecimentos por meio de conhecimento e vida por meio de vida”. Entrevista com Yann Moulier Boutang publicada na revista IHU On-Line nº 216, de 23-04-2007.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma outra finança é possível: Yann Moulier Boutang e a economia da polinização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU