24 Agosto 2016
No canto da sala do apartamento que transformou em seu lugar de leitura, aos 88 anos “e meio”, como faz questão de salientar, Sereno Chaise senta-se tranquilo no sol de uma manhã de agosto, em Porto Alegre. Sobre a mesinha, em frente ao sofá, empilham-se livros de fotos da capital gaúcha, da construção de Brasília e a sua leitura mais recente: o segundo volume da biografia de Getúlio Vargas, escrita por Lira Neto. “Estou gostando muito”, comenta.
A reportagem de Fernanda Canofre, publicada por Sul21, 24-08-2016.
Getúlio tirou a própria vida em um final de agosto. Foi também em um final de agosto que Leonel Brizola liderou a Campanha da Legalidade. E no final de agosto destes dias, o Senado brasileiro se prepara para votar o impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Todos agostos com protagonistas que Sereno conheceu bem. Com 56 anos de vida política, a biografia do advogado e quadro histórico do antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) andou lado a lado com alguns dos eventos mais importantes da história recente do país.
Mas o agosto de agora ele assiste do banco de reservas. Há um ano, por problemas de saúde, Sereno decidiu deixar a presidência da Eletrobras Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTEE), cargo que ocupava desde 2006, nomeado pela então ministra de Minas e Energia, Dilma. Fora da estatal, fora do governo, Sereno saiu de cena na política.
Em um perfil publicado pela revista piauí, no final do ano passado, se viu definido como “o último amigo” da presidenta. Ele discorda do título: “Ela ainda tem muitos amigos, não é nada disso”. Mas a relação dos dois é, de fato, uma das mais antigas da vida político-partidária de Dilma. Durante anos, eles dividiram a presidência do Partido Democrático Trabalhista (PDT) no Rio Grande do Sul. “Durante os doze anos em que presidi o PDT, ela era a vice”, lembra. Quando Sereno deixou a sigla para se filiar ao Partido d os Trabalhadores (PT), em 2000, Dilma foi uma das integrantes da legenda de Brizola que o acompanhou.
Apesar se dizer um admirador dela, Sereno admite que nunca imaginou que aquela Dilma que conheceu em Porto Alegre, um dia se tornaria a primeira mulher eleita presidente da República. “Ela sempre foi competente, perseverante, mas um pouco sem jogo de cintura. Muito dura”, diz. Um traço que, para ele, se acentuou com o cargo presidencial e colaborou para a crise política que pode dar fim precoce ao segundo mandato da petista.
Sereno já não vê mais volta para o impeachment, que será votado a partir de quinta-feira (25). “Trabalhamos juntos por muitos anos, gosto dela, me dou bem com ela, mas ela se isolou muito, não dava bola para ninguém. Vai ter esse julgamento no Senado e acho difícil para ela”, diz em tom de lamento. Ele culpa ainda a “equipe fraca no Planalto” e “o erro histórico” da nomeação fracassada de Lula para a Casa Civil, como os pontos que foram definitivos para o caminho sem volta.
Mas a fatura final dos escândalos de corrupção envolvendo nomes importantes do PT, para Chaise, virá com as eleições municipais de outubro: “É o teste de fogo agora, mas indiscutivelmente, o PT vai pagar um preço por essas safadezas”, diz ele. “É como obstáculo, ou pula ou cai na vala”.
Quem começou na vida política como vereador sabe que eleições municipais funcionam como termômetro para os partidos. Sereno Chaise aprendeu isso cedo, ainda na década de 1950, quando poucos partidos disputavam cabeça a cabeça o voto nas urnas e ele trabalhava para eleger o amigo Leonel Brizola, para a Prefeitura de Porto Alegre.
Os dois jovens vindos da região norte do Estado – Brizola, de Carazinho, e Sereno, de Soledade – só se encontraram na Capital. Um anúncio lido por acaso no jornal, levou Chaise a uma reunião da Ala Moça do PTB, onde Brizola já era figura de destaque. Os dois dividiram um quarto de pensão, organizaram juntos a Campanha da Legalidade e formaram uma parceria política que se estenderia por cinco décadas.
“A influência dele em mim foi muito grande, nós estivemos juntos por mais de 50 anos. No PTB, tivemos várias pessoas importantes, mas ele foi mais”, afirma Chaise. Já na primeira reunião que participou na Ala Moça, ao encontrar um partido dividido pelas discussões entre Brizola e Wilson Vargas, Chaise simpatizou logo com a linha do primeiro.
Na casa dos pais agricultores, Sereno cresceu olhando para o retrato de Getúlio Vargas na parede da sala. Ser trabalhista era regra na família. Tanto que aos 18 anos, em meio a um comício na antiga Praça da Conceição, vestido com o uniforme do Colégio Rosário, quando Osvaldo Aranha, em campanha pelo Brigadeiro Eduardo Gomes – candidato da União Democrática Nacional (UDN) – veio saudar o estudante aos gritos de “Brigadeiro!”, Sereno não hesitou em responder: “Não. Eu sou Getúlio!”. “Ele não gostou, fez uma cara feia e saiu. Foi como eu conheci o Osvaldo”, conta rindo.
O fim da amizade de mais de 50 anos entre Chaise e Brizola veio em um telefonema, em 2001: sem concordar com os rumos do partido, Chaise anunciou que deixava o PDT pelo PT e o velho caudilho não o perdoou. Sereno já não concordava com a centralização do partido na figura única, que tirava o PDT da base de apoio do governo Olívio Dutra, para se candidatar mais uma vez à presidência, em 2002. “São coisas da vida. Eu fui ao Palácio [Piratini] para o velório dele, fazia muitos anos que não entrava lá. Mas aí ele já estava no caixão. Nunca mais conversamos”, fala entre demoradas pausas.
Depois de ter sido vereador por um mandato, deputado por sete anos, Sereno venceu as internas do partido para se candidatar à Prefeitura de Porto Alegre em 1963. A decisão foi pessoal e a convenção terminou numa vitória apertada: 23 votos a 21, contra Wilson Vargas – que na eleição anterior fora derrotado por José Loureiro Silva, da coligação PDC-PL (Partido Democrata Cristão – Partido Liberal).
A eleição municipal, no entanto, veio com larga vantagem nas urnas para Sereno e o PTB. Ele deixou para trás, com mais de 100 mil votos, o dissidente Cândido Norberto (MTR – Movimento Trabalhista Renovador) e Sinval Guazelli, que tinha a maior coligação entre os três, com UDN, PL e PDC. “Política também era uma questão de sorte, de momento”, analisa hoje.
A plataforma que elegeu Chaise priorizava o que segue sendo um dos grandes desafios aos candidatos à Prefeitura da Capital em 2016: a questão habitacional. No começo dos anos 1960, Porto Alegre tinha um programa habitacional criado por Ildo Meneghetti, em seu segundo mandato na Prefeitura, que já servia como referência. As vilas Sarandi, São Borja, Santa Rosa e o condomínio do IAPI foram todos frutos do programa municipal. “As vilas que existem hoje, são as que foram criadas naquela época”, diz Sereno. A proposta dele era seguir com a política do partido opositor, ampliando o número de casas, com subsídios que ele buscaria junto ao presidente João Goulart.
Dois meses depois de assumir como prefeito, no dia 24 de fevereiro de 1964, Sereno Chaise foi ao Rio de Janeiro cobrar os repasses federais, para cumprir suas promessas de campanha. Jango estava em Petrópolis, no Palácio Rio Negro. Os soldados que guardavam o palácio não deixavam ninguém passar pelos portões. Sereno só conseguiu entrar horas depois, aproveitando a chegada do então Ministro da Fazenda, Ney Galvão.
Jango liberou o equivalente a dois orçamentos anuais para ajudar com as obras na capital gaúcha. Além das casas populares que pretendia construir, Sereno já havia encomendando também, de uma fábrica da Iugoslávia, os trólebus que ajudariam no transporte coletivo. Mas a reunião teve também outro tom. Depois de “alinhavado” o acordo das verbas, Sereno compartilhou com Jango uma inquietação gaúcha: pelo sul, os trabalhistas estavam preocupados com atividades conduzidas por certos generais e coronéis com a conversa de que “o país marchava para o comunismo e precisamos salvá-lo”.
“Eu disse isso pra Jango e ele manda chamar o General Assis Brasil. Eu nem sabia que o Assis Brasil estava em Petrópolis. Ele diz: ‘olha General, o prefeito está aqui me dizendo isso e isso’. O Assis Brasil vai: ‘olha, presidente, eu sei muito mais do que isso. Mas o dispositivo militar é totalmente seguro. Eu aperto um botão e o país inteiro levanta’. O que eu ia dizer?”, conta Sereno.
Em 1º de abril, o golpe aconteceu e nenhum botão o parou. Em 8 de maio, Sereno estava cassado. Ele havia recebido a notícia na noite anterior, enquanto jantava no famoso Caçarola, na Avenida Independência, ao lado do deputado José Fidelis Ramos Coelho. Ele havia esperado 39 dias, com ameaças em discursos na Câmara e companheiros sendo presos – o vereador Adelmo de Carvalho repetia na tribuna que “a espada de Dâmocles estava sobre a cabeça do prefeito”. “É verdade, estava. E eu esperava”, diz ele.
Esperando a chegada dos militares, Sereno limpou as gavetas e deixou na mesa apenas dois projetos. O primeiro, para a desapropriação das terras que deveriam se tornar o Parque Moinhos de Vento. O projeto era polêmico, ambientalistas pediam a desapropriação total da área, enquanto a Prefeitura estudava desapropriar apenas a metade e não precisar pagar a indenização aos proprietários. Eles mesmos já haviam aceitado o acordo. “Como era polêmico, resolvi deixar ali, que venha alguém que resolva. O outro era sobre o aumento do preço do transporte coletivo, que tem até hoje…Mas pensei: já estou saindo, por que vou castigar o povão? E deixei o processo sem assinar”, conta.
Três dias após sua cassação, Sereno Chaise foi preso. A primeira de suas dez prisões, o primeiro dos 360 dias que passaria sob tutela dos militares ao longo do regime de 21 anos. “Nessa primeira prisão, fiquei no gabinete do diretor do DOPS, que tinha sido meu aluno no Colégio Protásio Alves”, lembra Sereno, que foi professor de Geografia e História Universal antes de se eleger deputado. O “aluno” era José Morsch, um dos 377 agentes apontados como responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura no relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Em uma entrevista de sete anos atrás, Sereno disse a um grupo de historiadores que olhava para os deputados e vereadores de agora e achava “tudo tão fraco”. Hoje, ele repensa a retórica. “Não sei se é um pouco de inclinação pessoal, mas tu olha a Assembleia. Durante todo o governo do Brizola, eu sustentei o debate com a oposição, porque eu era o líder do governo. Talvez seja um erro nosso, achar que naquele tempo nós tínhamos mais expressão. Os partidos não tem mais aquela expressão que tinham”, analisa.
Em tempos de golpe branco, com ares de legalidade, a semelhança maior entre 1964 e 2016, aos olhos de Chaise, está no povo. “O parecido é isso, que a opinião pública fica de simples espectadora, ninguém mais quer arriscar o pescoço. Há um desencanto geral”.
Ele conta que ainda pensou em se candidatar mais uma vez. Queria terminar onde começou, como vereador. Uma das principais ideias de Sereno era colocar um limite aos servidores públicos que ganham mais do que o teto. “Sempre fui aliado ao fator do trabalhador. Sempre achei que no mundo moderno, trabalho, capital, tem que haver uma prevalência do trabalhador. Eu sempre afirmei assim: o capital não sente frio, não sente fome, não tem filhos para educar. Ao passo que o trabalhador sente frio, tem fome”, fala tentando conter a indignação que sempre o acompanhou. “Mas hoje é desairoso ser político. Eu ainda pensando em me candidatar, mas depois cheguei à conclusão de que não tenho mais saúde, nem idade”.
Com tantos anos de vida política, Sereno diz não lembrar de um tempo em que a corrupção fosse tão investigada, mas também não lembra de vê-la tão escancarada. Ele lembra de uma época em que a própria imprensa se constrangia de publicar denúncias que envolviam figurões da escala de ministros: “Agora está desbragada a coisa, não tem ministro que não participe de uma safadeza. Aliás, a política nunca esteve tão por baixo, justamente pelo comportamento dos políticos”.
Ainda assim, ele se diz otimista. Aos olhos do homem que ajudou a criar a resistência nos porões do Piratini, em 1961, o Brasil ainda tem futuro e em dois anos a crise política vai passar. Um lulista assumido, Sereno acredita em um retorno de Lula em 2018, para conseguir reerguer a confiança do país.
Quanto a ele, tão sereno quanto o nome que carrega desde o batismo, com a tranquilidade de quem viu a História acontecer dentro de seu tempo, diz que agora está esperando o ônibus: “Sabe como é a vida humana? Casa, estuda, trabalha, constitui família e fica à beira da estrada esperando o ônibus que não tem hora, nem dia, nem mês para vir, mas que vem na certa. Então, eu estou na beira da estrada. Não sei quando vai vir o ônibus, se demorar um pouco é bom”.
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Prefeito cassado pela ditadura e aliado de Dilma: ‘É o teste de fogo. O PT vai pagar um preço’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU