22 Agosto 2016
A presidente do Brasil, momentaneamente suspensa do cargo à espera do julgamento político que terminará no próximo dia 29 de agosto, nessa quinta-feira, durante uma coletiva de imprensa lotada no Palácio da Alvorada – onde ela reside temporariamente – admitiu ter recebido uma carta pessoal "não da Santa Sé", mas do Papa Francisco. A governante, suspensa no dia 12 de maio passado, porém, ressaltou que, sendo uma carta privada, ela não tem nenhuma intenção de revelar o seu conteúdo.
A reportagem é de Luis Badilla, publicada no sítio Il Sismografo, 19-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois, Dilma quis entrar diretamente na análise da sua situação política e pessoal, indicando que, no próximo dia 29, irá defender diante dos seus "juízes" do Senado (alguns dos quais, por sua vez, sob processo) "a democracia e a justiça".
"Espero apenas na justiça", disse a presidente afastada, acusada e processada pelos supostos crimes (em 2015) de violação da lei fiscal que regula os dinamismos contábeis do país. No seu discurso, Dilma admitiu dois graves erros da sua segunda presidência: a nomeação a vice-presidente do atual governante interino, Michel Temer, por ela definido como um "usurpador" (acusado, dentre outras coisas, de "corrupção ativa e passiva") e o fato de ter reduzido os impostos do setor empresarial para ajudá-lo a enfrentar a crise sem obter a contrapartida necessária, ou seja, mais e novos investimentos para reativar a economia.
Para Rousseff, o país enfrenta um "golpe branco", cujo objetivo é o de atacar as conquistas sociais, econômicas e políticas dos setores sociais mais humildes.
A expressão "golpe branco" difundiu-se muito nas análises sobre a crítica e difícil situação latino-americana, do México à Patagônia, particularmente depois das palavras pronunciadas pelo papa. De acordo com um relato oficial da presidência do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano), depois de uma longa conversa com o papa, o próprio pontífice teria usado essa expressão com alguns bispos.
De fato, no último dia 19 de maio, o Papa Francisco teve uma longa conversa com os membros da presidência do Celam. Os interlocutores do pontífice foram seis eclesiásticos: cardeal Rubén Salazar Gómez, arcebispo de Bogotá, presidente; Dom Carlos Collazzi, bispo de Mercedes, Uruguai, primeiro vice-presidente; Dom José Belisário da Silva, arcebispo de São Luís do Maranhão (Brasil), segundo vice-presidente; cardeal José Luis Lacunza Maestrojuan, bispo de David, Panamá, presidente do Conselho para os Assuntos Econômicos; Dom Juan Espinoza Jiménez, bispo auxiliar de Morelia, México, secretário-geral; e o padre Leonidas Ortiz, diocese de Garzón, Colômbia, secretário-adjunto.
No relato do encontro, publicado no site do Celam, foi escrito que o pontífice, refletindo sobre a situação atual da América Latina, falou de "golpe de Estado branco". Concretamente, a expressão do papa – "golpe branco" – se insere nesta passagem, como relata o Celam (disponível aqui, em espanhol): "O Santo Padre mostrou sua preocupação com os problemas sociais que estão sendo vividos na América Latina em geral. Preocupam-no as eleições nos Estados Unidos, por causa da falta de uma atenção mais viva à situação social dos mais pobres e excluídos Preocupam-no os conflitos sociais e políticos da Venezuela, Brasil, Bolívia e Argentina… De repente, pode-se estar passando por um 'golpe de Estado branco' em alguns países. Preocupam-no as carências do povo haitiano e a falta de diálogo das autoridades dos países que compartilham a ilha, Haiti e República Dominicana, a fim de encontrar uma solução legal para os migrantes e deslocados. Preocupa-o a maneira de entender o que é um estado laico e o papel da liberdade religiosa por parte de algumas autoridades mexicanas. O papa se sente animado ao ver o avanço que está ocorrendo nos processos de paz na Colômbia; anima-o igualmente a sua próxima viagem a esse país para a visita pastoral a um povo tão afetado pela violência e que precisa empreender caminhos de perdão e reconciliação. O papa se entusiasma quando começa a falar da Pátria Grande, que é a América Latina, e dos esforços que não devem cessar para alcançar a integração dos nossos povos. Para isso, é necessário aproximar posições, restabelecer o diálogo social e buscar soluções consensuais para os desafios que o mundo de hoje apresenta".
A imprensa captou com um certo interesse as reflexões atribuídas ao papa nesse importante encontro com as autoridades do órgão eclesial que, desde 1958, coordena as 22 conferências episcopais do México ao Chile. O mesmo aconteceu em ambientes políticos latino-americanos, incluindo governos e aparatos diplomáticos. O relato foi dissecado por analistas, observadores e especialistas.
Tempo atrás, sobre essa questão, nós escrevemos:
"Em primeiro lugar, causou curiosidade a lista dos países que o Santo Padre teria evocado e nos quais se vivem crises de natureza e relevância diferentes, embora preocupantes: Venezuela, Brasil, Bolívia, Argentina, Haiti, República Dominicana, México e Colômbia. Em segundo lugar, também chamou a atenção de analistas e observadores uma segunda lista, a das situações críticas que Francisco descreveu, primeiro, genericamente, como 'problemas ou conflitos sociais' e, posteriormente, descreveu esse diagnóstico geral com estas expressões específicas: 'Lições nos EUA, situação social de pobres e excluídos, carências, falta de diálogo, migrantes e deslocados, Estado laico e liberdade religiosa, processos de paz, diálogo social, aproximação de posições e soluções consensuais."
Tudo o que o papa listou não só é verdade, mas, muitas vezes, se trata de questões que geram notícia todos os dias na América Latina e em outros lugares. Muitas vezes, também se fala disso na imprensa internacional, aumentando a percepção, verdadeira, de um continente que lida com graves crises sociopolíticas e institucionais que não se viam desde o período do retorno aos regimes democráticos. Particularmente, entre as opiniões e impressões do papa, no entanto, provocou discussão, e ainda provoca, entre políticos e diplomáticos a expressão "golpe de Estado branco".
Na América Latina, dizer golpe de Estado branco tem conotações históricas, sociopolíticas e institucionais precisas. Significa derrubada de fato de um governo, forçado, sem sangue nem convulsões sociais, a mudar de rota, de programa e de projeto, ou destituição de um governante através de manobras jurídicas, parlamentares e constitucionais de duvidosa legitimidade democrática. Em ambos os casos, embora as modalidades sejam diferentes, o denominador comum é um só: destruição da vontade democrática do corpo eleitoral.
Desse modo, na América Latina, muitos se perguntaram, e se perguntam ainda, a que o Papa Francisco se referiu, ou queria se referir, especificamente. Obviamente, não temos uma resposta para a pergunta, legítimo e oportuna. Só podemos levantar hipóteses e, dentre estas, a mais plausível nos faz acreditar que o Santo Padre quis expressar, sobretudo, um temor, o de que, justamente, as crises em curso, em vez de encontrarem soluções democráticas, abertas e declaradas, preferivelmente consensuais, são contornadas com artifícios obscuros, pseudojurídicos, que, no fim, não resolvem nada, remetendo a novas crises, piores ainda, aquilo que não se quis enfrentar com honestidade e clareza no momento necessário.
É preciso lembrar que, na América Latina, a última tentativa de golpe em 2002, contra Hugo Chávez, fracassou depois de algumas horas. Depois, no entanto, foram registradas duas derrubadas de governos que podem ser chamadas, agora, de "golpe branco ou golpe suave", e que foram bem-sucedidas: em Honduras, contra Manuel Zelaya (2009), e no Paraguai, contra Fernando Lugo (2012).
Muitos definiram a recente suspensão da presidente Dilma Rousseff no Brasil como um "golpe branco", e muitos também temem uma situação semelhante na Venezuela, com o presidente Nicolás Maduro. As insistências e as pressões, por enquanto fracassadas, provenientes de diversas partes, muitas vezes acompanhadas de declarações belicosas, com o objetivo de que a Organização dos Estados Americanos (OEA) aplique na Venezuela a chamada "Carta Democrática", isto é, declare que naquele país desapareceu o Estado de direito, é interpretada como uma tentativa de "golpe branco".
As preocupações do Papa Francisco com a situação geral na América Latina, que piorou visível e notoriamente desde o dia em que, em fevereiro de 2013, ele pegou um avião para participar do conclave que o elegeria como novo papa, depois da renúncia de Bento XVI, são mais do que justificadas e fundamentadas. São as mesmas preocupações dos governos da região e dos analistas mais atentos e bem informados. São também preocupações compartilhadas, e expressadas publicamente, pelas conferências episcopais latino-americanas.
O núcleo do diagnóstico está na constatação da grave e persistente deterioração da política, dos políticos e dos partidos, ao mais baixo nível de popularidade e consenso. A desafeição com a luta política é generalizada, do Rio Grande à Patagônia, e, embora possa parecer uma generalização inapropriada, a percepção é de que hoje as classes dominantes latino-americanas são sinônimo de corrupção e ineficiência.
A bela temporada do retorno às democracias, depois de anos duríssimos de repressão militar, parece uma recordação atávica, e, em vez daquelas grandes mobilizações pela liberdade e pelos direitos humanos, entrou em cena a resignação e a indiferença.
Então, em várias partes e de modo cada vez mais insistente, na América Latina, diz-se: sem política, se, dialética democrática autêntica, sem debate político e cultural, vencem os mais fortes, ou seja, o dinheiro, instrumento capaz de fagocitar tudo.
É o poder imenso desse dinheiro, transnacional, que, no fim, toma as decisões e condiciona a vida dos povos e das suas instituições. O dinheiro e a corrupção substituem as eleições. As manobras obscuras de palácio, dentro e fora da região, substituem os verdadeiros e legítimos atores nacionais. Os interesses das altas finanças e da geopolítica tomam o lugar das necessidades e prioridades dos povos.
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Carta pessoal do papa à presidente afastada Dilma Rousseff: a história do "golpe branco" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU