17 Agosto 2016
Franciscano até 1992, Leonardo Boff concedeu uma entrevista a este jornal, na qual narrou sua própria experiência perante a Inquisição e questionou o rumo do Brasil e da Argentina com a subordinação aos capitais transnacionais.
Este sujeito alto e bonachão de 77 anos que conversa com o Página/12 sobre sua preocupação com o Brasil e a Argentina é o mesmo que em 1992 decidiu abandonar os hábitos quando era padre franciscano e o Vaticano o ameaçava outra vez com a mesma condenação já sofrida em 1985: o silêncio. E o silêncio não era a especialidade de um dos fundadores da Teologia da Libertação.
Segue sem gostar de ficar calado. Boff recebe este jornal em um hotel simples de Palermo. Ao meio-dia esteve conversando com Hebe Bonafini no programa de rádio do ex-embaixador no Vaticano Eduardo Valdés, seu amigo. Às 17h, de um domingo raivoso e olímpico, Boff deve ser o único ser humano que não assiste tênis pela televisão. Chega a fotógrafa do jornal. Enquanto posa para a fotógrafa, conta que faz muitos anos explicou o que era a mística diante de um fotógrafo do O Globo. Quando cruzou os braços, ficou em posição de dar banana.
– Escreveram que eu tinha dado banana ao Papa – narra Boff com cara divertida. Aqui se diz assim?
A entrevista é de Martín Granovsky e publicada por Página/12, 15-08-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Não, mas usamos muito o gesto.
Evidentemente publicaram essa foto.
E era verdade que você deu banana ao Papa?
Não. Até teria gostado, mas não podia. Nesse momento, João Paulo II já me tinha imposto o silêncio.
O Vaticano não o silenciou de qualquer modo. Em 1985, condenou-o ao silêncio quando ainda era padre. Antes foi julgado pela Congregação para a Doutrina da Fé, como se chama agora a velha Inquisição. Era Joseph Ratzinger, que em 2005 seria entronizado papa como Bento XVI.
– O prédio está à esquerda da grande praça, para quem vai na direção da Basílica de São Pedro. Foi uma experiência terrível. Entrei por um longo corredor ao qual davam galerias com tapetes vermelhos. Em um determinado momento vi ao fundo uma porta muito pequena. Tive que me abaixar, porque percebi que erguido não entraria. É uma área escura e tenebrosa. O cardeal estava sentado em seu lugar, sobre um tablado a meio metro do chão. Tudo claro: ele estava acima de mim. Ao lado já se havia sentado o notário. Fizeram-me sentar na mesma cadeira onde esteve sentado Galileu Galilei, e não é uma metáfora: era a mesma cadeira. O interrogatório foi duro. O cardeal Ratzinger aceitou que em uma das partes eu pudesse falar com ele junto com dois cardeais brasileiros, Paulo Evaristo Arns e Aloísio Lorscheider.
Escolheu dois cardeais progressistas.
Sim, em um momento éramos três contra um. Disseram-lhe que a teologia escrita por mim era boa para as comunidades. Ratzinger tinha escrito artigos criticando-a. Um dos cardeais lhe disse que ele tinha feito a escolha de um gramático, em vez de um engenheiro, para construir uma ponte. “Venha a Fortaleza, fale com os camponeses, reze com eles e conosco, participe de nossas celebrações e depois dê sua opinião”, lhe propus. Ratzinger tremia. “Não posso fazer isso, não é tradição do Santo Ofício sair daqui”. Psicologicamente, isso é muito forte, porque para cada pessoa da Igreja representa toda uma história e então alguém pode se sentir sozinho e abandonado. Levei o apoio escrito de 100 mil pessoas de todo o mundo, incluindo um cardeal coreano e outro filipino.
Minha causa era justa: a dos pobres do mundo. Continua a ser a mesma. Do contrário, olhe para o que está acontecendo no continente.
Ou por um golpe, como no Brasil, ou pelo voto, como na Argentina, na América Latina avançam os processos neoconservadores. Por quê?
Há uma nova guerra fria que se trava entre os Estados Unidos e a China. A China está entrando na América Latina e o Brasil pertence aos BRICS. Então, ao atacar o Brasil, atacam a China e seus enormes investimentos: somente no ano passado investiu 54 bilhões de dólares em uma ferrovia que une o Atlântico ao Pacífico. Também investiu em portos e infra-estrutura, obviamente para favorecer as exportações para a China.
E o que querem, segundo você, os Estados Unidos?
Não veem com bons olhos o avanço das relações com a China, porque eles querem controlar o continente. A ideia chave do Pentágono é dupla. Por um lado, um só mundo, um só império. Por outro lado, cobrir todos os espaços. Assunta-nos o fato de que os Estados Unidos estejam negociando com Mauricio Macri duas bases militares: uma na Patagônia e a outra nos limites entre o Brasil, Paraguai e a Argentina, perto do maior aquífero de água doce do mundo.
É verdade que o Papa disse que o processo no Brasil é “obra dos capitalistas”?
O Papa se aproximou muito da Dilma e a Dilma se entusiasmou muito com ele. Sempre buscou saudá-lo em cada viagem à Europa. Mas, além disso, o Movimento Sem Terra tem o apoio do Papa. Em uma das viagens ao Vaticano, os dirigentes se fizeram acompanhar pela atriz brasileira Letícia Sabatella. Letícia contou a situação e disse que a principal coisa era defender a democracia, porque atacar a Dilma era atacar a democracia, e a fragilização da democracia, disse ela, traria formas violentas de repressão social. Ao ouvi-la, o Papa teria lhe dito: “É obra do capitalismo. Do capitalismo do Brasil e do capitalismo transnacional”.
O que os capitalistas querem fazer e que não puderam fazer antes e necessitam de governos conservadores?
Penso que o Papa viu que o neoliberalismo, que dá mais valor ao mercado que ao bem comum, produz uma grande marginalização e uma grande pobreza. Os 40 milhões que foram tirados da fome no Brasil começam a voltar à sua situação original. No Brasil, como se sabe, o vice-presidente, que assumiu como presidente interino, demitiu o gabinete da Dilma e atacou o Ministério do Bem-Estar Social e da Reforma Agrária. Os projetos sociais têm cada vez menos financiamentos. A Cultura passou de ministério a uma subsecretaria na Comunicação. Temer cortou a metade dos subsídios destinados às universidades públicas.
O Papa entendeu, na minha opinião, que o golpe parlamentar sem baionetas busca o mesmo efeito antes buscado pelo golpe militar: reforçar o grupo dos grandes capitalistas nacionais articulado com os capitalistas transnacionais em função de uma acumulação maior, o que se faria privatizando os bens nacionais. A produção seria para a exportação. Há um projeto de recolonização da América Latina para torná-la cada vez mais uma zona de exportação de commodities e não agregue valor aos seus produtos. Que exportemos matérias-primas puras. Soja ou minerais, seja lá o que for...
Neste cenário, a América Latina forneceria bens que não existem em outros lugares. O Brasil tem mais de 70 milhões de hectares de terra para produzir. O Brasil sozinho poderia saciar a fome de todo o mundo. E temos água de sobra. Isso cairia sob o controle do grande capital privatizado ou internacionalizado. O Papa se dá conta do fenômeno e de que os pobres voltarão à miséria e à fome.
Thomas Piketty, que escreveu o livro O Capital no Século XXI, disse que onde entram as relações sociais do capital a primeira coisa que aparece é a desigualdade. O capital é bom para o enriquecimento e ruim para a distribuição e a justiça social. É a última fase da acumulação capitalista. Há pesquisas muito interessantes do economista Ladislau Dowbor. Um dos seus artigos resume uma pesquisa suíça que revelava a existência de 737 megacorporações que controlam 87% dos fluxos econômicos e financeiros do mundo. Eles decidem investir, onde roubar riquezas e dólares, quais partidos apoiar e que governos desestabilizar. Paraguai, Honduras, Brasil.
A tendência também se confirma com as políticas de Mauricio Macri. Na Argentina, o Estado assume uma política privatista e não discute mais com a sociedade. Dialoga com as empresas. No final do socialismo e mais ainda após o seu término, Ronald Reagan e outros presidentes se propuseram a aplicar o capitalismo puro. Não há sociedade, mas indivíduos. E os indivíduos comem-se uns aos outros, não cooperam entre si. José Graziano, diretor da FAO, informou que até a crise de 2008 havia 800 milhões de pessoas passando fome no mundo e que agora há cerca de um bilhão. A acumulação da riqueza concentra-se em um núcleo cada vez menor.
Por que menciona especialmente Macri em sua descrição?
Porque não se pode analisar a Argentina ou o Brasil somente a partir de um dos dois países nem analisar os dois maiores países da América do Sul sem analisar a tentativa dos Estados Unidos de alinhar os países dentro da estratégia imperial. O Brasil tem um mercado de mais de 200 milhões de habitantes. Em 13 anos de PT no poder ficou demonstrado que há dois projetos em jogo. Os dois querem ser democráticos. Mas a democracia neoliberal é para poucos. Faz políticas ricas para os ricos e políticas pobres para os pobres.
No relato sobre a visita de Letícia Sabatella você citava quantos super-ricos há no Brasil.
Sempre recordo esse número: 71.400 super-ricos que controlam mais da metade do Produto Interno Bruto. Sobre uma população de 210 milhões de habitantes. O Banco Mundial já disse que a maior acumulação de capital acontece no Brasil. São os capitalistas mais antipopulares e mais anti-sociais, têm grande parte das fortunas no exterior, em paraísos fiscais, e operam por meio de sociedades off shore. É um exemplo, justamente, dos dois tipos de democracia. A reduzida, de Estado mínimo e mercado máximo, com o ataque aos projetos sociais. O outro tipo de democracia, que no Brasil foi o de Lula, é o de democracia inclusiva, aberta a todos. O dado dos 71.400 super-ricos é do IPEA, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. É muito sério. A correlação mundial de forças não permite que possamos impedir a acumulação do capital. Mas, pelo menos, podemos colocar-lhe algum limite. Devemos fazê-lo.
“Quem vai derrotar o capital será a Terra”. Entrevista com Leonardo Boff
A renda cidadã: uma saída viável da crise mundial. Artigo de Leonardo Boff
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“Assusta-nos o fato de que os Estados Unidos estejam negociando duas bases com Macri”. Entrevista com Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU