Por: Cesar Sanson | 21 Julho 2016
A cada declaração, uma polêmica. Essa tem sido a rotina do ministro interino da saúde, Ricardo Barros, que em quase dois meses de gestão provisória colecionou controvérsias destacadas nas páginas dos principais jornais.
Semana passada, num evento da Associação de Médicos Brasileiros, ele afirmou que há excesso de exames desnecessários no SUS, já que a maioria dos usuários que procuram serviços de saúde não tem doença alguma, apresentando apenas um quadro psicossomático. Mas a fala recente que mais tem mobilizado as instituições de saúde e o movimento sanitário em geral veio na forma de uma proposta concreta: facilitar a criação de planos de saúde populares, mais baratos e com cobertura mais limitada, como estratégia para economizar recursos, diminuindo o uso do sistema público e universal de saúde brasileiro.
Embora em entrevista ao Estadão Barros tenha desqualificado as críticas que vinham dos professores universitários porque eles não entendiam nada de mercado, o Portal EPSJV/Fiocruz, 20-07-2016, procurou a professora universitária e médica sanitarista Ligia Bahia para analisar a proposta e discutir as concepções de saúde e os interesses por trás dela.
Eis a entrevista.
Houve uma reação de profissionais e pesquisadores da saúde, do movimento sanitário de um modo geral, à proposta do ministro interino Ricardo Barros de criar um plano de saúde popular para desafogar o SUS. Por que da perspectiva do movimento sanitário isso é alguma coisa condenável?
É uma surpresa que o ministro da saúde, que deveria ter um discurso sobre saúde, passe a falar como se estivesse dando conselhos para o mercado. É muito estranho esse deslocamento de uma autoridade da saúde, principalmente num país que tem Zika, que tem problemas muito graves de saúde, tem uma dívida sanitária imensa. E o ministro não fala sobre saúde! Ele se coloca como quem vai aconselhar sobre para onde seria melhor ir, sobre como as empresas de planos podem se virar nessa conjuntura, quando na realidade não é disso que se trata. O mais estranho ainda é que, se existe uma conjuntura de recessão econômica ou uma crise estrutural, como as pessoas vão comprar planos, sejam baratos ou caros?
Assim, o nosso ministro parece a Maria Antonieta: se vocês não têm SUS — e não terão —, então tenham um plano. Primeiro nós achamos que [esse tipo de postura] era um erro dele. Tanto que ele fez aquela primeira declaração [defendendo diminuir o tamanho do SUS] e depois desmentiu. Mas, na realidade, já existe uma terceira declaração sobre planos baratos, o que nos obriga a tentar depreender uma reflexão mais aprofundada sobre isso. Porque não se trata de ingenuidade de alguém que é um engenheiro, que nunca ouviu falar sobre saúde. Na primeira vez em que ele falou isso, era uma hipótese, mas agora não é mais. Ele tem dito isso, inclusive, em agendas com entidades da área, e parece que essa é a única proposta que ele tem.
No governo Dilma Rousseff também apareceu num dado momento a proposta de criação de planos populares, teve uma grita geral e acabou não se concretizando. Tem diferença?
Eu acho que tem uma diferença. A proposta que apareceu na época da Dilma talvez fosse mais apavorante do que essa porque vinha com um subsídio público. Era uma proposta na qual o governo faria um subsídio público para que parte da população tivesse plano de saúde. E houve uma gritaria geral, a gente conseguiu falar com a imprensa, emitimos uma nota no dia seguinte com o título ‘Dilma, vai acabar com o SUS?’. A gente sabia a origem dessa proposta: ela vinha de um grupo de empresas de plano de saúde, que já vendiam planos mais baratos. Já havia toda aquela concepção de que 50% da população brasileira poderia ter plano, desde que esses planos tivessem um amparo, um suporte dos fundos públicos.
O que o Ricardo Barros está falando eu penso que é diferente. Ele está dizendo o seguinte: olha só, gente, não vai ter SUS. Se puder, se vire. E ele vai ajudar todo mundo a se virar, fazendo com que a ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] regulamente de outra maneira os planos. A outra proposta era de uma política para estimular a demanda para planos de saúde, via ação governamental. Agora, se está dizendo que o SUS não tem jeito. E, diante disso, o que se vai fazer é: os planos de saúde vão ficar piores, as coberturas vão ficar menos abrangentes, e aí as pessoas vão poder comprar. Então, eu não acho que sejam propostas similares, embora elas possam até ter um efeito parecido, no final, que seria a expansão do mercado de planos.
Tem-se denunciado isso pela ótica da defesa do consumidor, já que seria um rebaixamento dos planos privados. Mas o Brasil tem um sistema universal de saúde. Como se discute que a saída para desafogar um sistema público universal seja focalizar através de planos privados?
A questão é que uma autoridade pública está se desonerando das suas responsabilidades com relação à saúde. Tem um paradoxo: ele é o ministro da não saúde! Em primeiro lugar, a gente sabe que ele foi financiado por plano de saúde na campanha, o que é um detalhe que tem relevância. Em segundo, a própria legislação não permite isso, ele quer mudar a Lei 9656, que regulamenta os planos de saúde.
E isso poderia mesmo gerar economia para o SUS?
Não, claro que não. Ao contrário: torna-se um esquema muito mais fragmentado, muito mais segmentado e muito mais caro, porque os custos de transação, os custos administrativos aumentam. Todos os casos graves, em algum momento, chegam ao SUS. O gasto com os últimos dias de vida, o atendimento de pacientes com várias comorbidades, etc., são elevados. O que o ministro está querendo, para resumir, é uma proposta que a Colômbia fez usando planos de saúde. E que deu completamente errado porque gerou uma avalanche de sentenças judiciais favoráveis aos consumidores de planinhos com pouca cobertura, pouco abrangentes.
O direito à saúde não é só um direito constitucional, mas um direito humano. O que ele está propondo é incompatível não só com as legislações nacionais e internacionais mas com a jurisprudência, com o senso comum.Além de defender planos de saúde populares, o ministro interino teve outra fala polêmica recente, afirmando que a maior parte dos usuários que procuram os serviços não estão doentes, mas apenas com um quadro psicossomático. O argumento era exatamente para apontar um suposto excesso de gasto com exames ‘desnecessários’ no SUS. Você vê relação entre as duas falas?
Eu acho que tem uma intenção específica, que é cobrar no SUS. Ele vem anunciando isso: que o SUS deveria cobrar por faixa de renda, etc. E que, se o SUS cobrar, as pessoas só vão usar quando for extremamente necessário. Daí ele faz conta com plano barato. Então, o SUS poderia reaver parte de recursos da população, que ele considera que pode pagar e que não paga. Ele considera pago ou não pago apenas o pagamento direto e não o pagamento de todos os impostos diretos e indiretos. Então, eu acho que tem conexão. Ele quer impedir o que considera um uso excessivo do SUS. E acha que, se for pago, vai haver consciência de custos. E o SUS pode diminuir. Eu acho que talvez a outra conexão seja essa: ele está dizendo que o SUS tem que ficar menor.
Tramita no congresso a Proposta de Emenda Constitucional 241, que institui um teto de gastos para o governo federal e, com isso, ameaça reduzir muito o financiamento da saúde pública. Essa proposta de saída pelo plano privado pode ser compreendida como um complemento dessa medida? Uma naturalização do corte estrutural de recursos que viria?
Eu diria que não. Eu diria que o Ricardo Barros é quase um evento experimental, um fenômeno a que a gente está tendo o ‘privilégio’ de assistir. Eu não acho que ele seja uma expressão da hegemonia do governo interino. Acho que ele expressa uma parte desse conjunto, que é uma amálgama. Ele próprio não é da saúde e [com essa proposta], tenta se aproximar de algumas entidades médicas e de alguma parte das empresas — algumas, porque há empresas que não querem fazer plano barato desse jeito.
Mas você identifica qual a parte dele nesse amálgama?
Para mim estava muito difícil achar a tribo dele. Agora eu estou achando que é essa direita do sul, que não vai conseguir falar com a direita do norte. Porque vai ter eleição, né? E como é que algum candidato a prefeito no nordeste vai dizer que a proposta dele é plano de saúde barato? Eu penso que ele está fazendo um discurso desesperado para ver se consegue base para se manter como ministro.
Mas você acha que ele está ameaçado como ministro? Existe um ‘Fora Barros’ independente de um ‘Fora Temer’?
Eu acho que o ‘Fora Barros’ ganhou mais autonomia em relação ao ‘Fora Temer’. Mas eu diria que o Barros é alguma coisa ainda pior do que o Temer. O Barros é o Temer que nós mais temíamos. Não acho que tem que ficar livre e autônomo e, relação ao ‘Fora Temer’, mas até o próprio Temer diz que não o queria como ministro da saúde.
O Temer disse isso?
Ele disse que queria um perfil de médico, famoso, etc. Ele quer um psdebista, não queria botar um cara do PP desse jeito. Isso sem contar os nomes dos outros escalões do ministério... Ali ninguém é da saúde, todo mundo é do PP.
Ainda no governo Dilma, o movimento sanitário vinha denunciando uma Proposta de Emenda Constitucional de autoria do Eduardo Cunha que obrigava as empresas a oferecerem plano de saúde para todos os empregados. Agora o ministro interino propõe a criação de planos mais baratos, com cobertura menor. Você vê relação entre essas coisas?
Sem dúvida. Eu não acho que ele está atirando aí, mas se os planos reduzirem ainda mais a abrangência de cobertura, certamente as empresas empregadoras vão se beneficiar com isso. Os empresários tendem a contratar planos mais baratos mesmo para os seus empregados, especialmente aqueles que pagam um percentual grande do plano, 70%, 75%.
Foto: Abrasco.
Veja também:
Sistema Único de Saúde. Uma conquista brasileira - IHU On-line nº 376
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‘O Barros é o Temer que nós mais temíamos' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU