18 Julho 2016
No domingo 21 de julho de 2002, o sindicalista pernambucano Bartolomeu Moraes da Silva, de 47 anos, apelidado de Brasília, líder de trabalhadores sem terra das margens da BR-163, foi surpreendido por um grupo de homens armados. Em sessão de tortura em lugar ermo de beira da estrada, no distrito de Castelo de Sonhos, em Altamira, ele sofreu pancadas nos braços e no estômago, teve as pernas quebradas e depois foi alvejado com 12 tiros na cabeça.
A reportagem é de André Borges e Leonencio Nossa, publicada por O Estado de S. Paulo, 16-07-2016.
Três anos após a morte do sindicalista, o Incra finalizou o processo de um assentamento com lotes de oito alqueires para 500 famílias, batizado com o apelido do líder assassinado. O processo do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Brasília foi interrompido em 2010 pela Justiça, que aceitou argumento do Ministério Público Federal de que o projeto não respeitava a legislação ambiental. Em meio à interrupção, projetos de obras de melhoria de estradas de acesso foram suspensos e a busca de crédito agrícola tornou-se uma possibilidade distante.
Enquanto a Justiça não analisava o pedido do MP, os homens do governo desapareceram. Uma decisão judicial proibia a entrada do Incra na área. “Se o Incra entrasse, pagava multa”, lembra Cícero do Espírito Santo, de 61 anos, liderança do assentamento. Aos poucos, fazendeiros apareceram para comprar lotes de assentados sem recurso para produzir. As “compras” foram feitas em condições e valores impostos pelos fazendeiros. “Eles chegam e dizem para o assentado: ‘Você tem que vender porque o lote é meu’. E passam a ameaçar”, relata Cícero. O preço de um lote variou de R$ 10 mil a R$ 20 mil.
Depois de três anos de processo na Justiça, Brasília virou um descampado. A legislação que estabelece corte de 20% da vegetação foi ignorada. Estima-se que 90% das terras do assentamento foram desmatadas para comportar os bois dos “invasores”, como as lideranças dos assentados se referem aos donos de mais de dez lotes. Das 365 famílias que ganharam lote do Incra, 220 permaneceram. A lista de mortes diretas na consolidação do assentamento inclui, além de Brasília, Neguinho da Banana, morto em 2007, Moisés, o Serra, Raimundinho e Pescoço Torto, em 2011. Nos últimos anos, essa relação se tornou incompleta, segundo Cícero. “Há muitas mortes indiretas relacionadas ao assentamento, geralmente assassinatos de pessoas sem família, que se recusam a vender terra e acabam incluídas em listas da criminalidade geral”, afirma.
Izabel Oliveira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Castelo dos Sonhos, está na lista dos marcados para morrer. Outro que faz parte da relação é Cícero. Ele reclama que esteve em Brasília, na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, para relatar ameaças, mas as autoridades não se sensibilizaram. “Fiquei chateado com os direitos humanos. Eu ponho a cara e meu nome não é incluído na lista de testemunhas ameaçadas.”
No passado, uma disputa entre Rambo e Onça Branca
Na falta de médicos, o empresário gaúcho Leo Reck, fundador do povoado de Castelo de Sonhos, em Altamira, no Pará, chegou a socorrer garimpeiros feridos, realizando pequenas cirurgias. A fotografia do álbum familiar do empresário foi tirada nos anos 1980, auge da extração de ouro Arquivo pessoal
Castelo de Sonhos, um distrito de Altamira, no Pará, a 1.100 quilômetros da sede do município, tem uma história digna dos povoados lendários da Amazônia. O chefe de garimpo Onça Branca – nome do gaúcho brizolista Leo Reck – decidiu abrir uma cidade na selva para abrigar homens e mulheres que chegavam. Batizou o lugar com o título da música do sertanejo Walter Basso que animava os garimpeiros: “Do meu castelo de sonhos você é a rainha/ Do céu sem estrela você vive a bailar/ Eu te amo meu bem mais que a minha vida/ Só não posso viver sem o teu olhar”. Logo apareceu um rival, o mineiro Márcio Martins, que tomou à força a frente de extração.
De família de agricultores simpatizantes de Leonel Brizola em Carazinho, no Rio Grande do Sul, Leo Reck age com voz mansa. Sabe negociar melhor com os homens da lei.
Márcio logo seria procurado pela polícia. Numa invasão de garimpo na região, ele ganhou o apelido de Rambo ao descer de helicóptero na lavra e executar com tiros na cabeça seis pistoleiros de um grupo adversário. Era vingança pela morte de um amigo. Márcio também entrou armado em Castelo de Sonhos com seu bando. Procurou adversários em cada esquina e casa. A mulher de Onça Branca, Irene, chegou a ser levada por Márcio e seus pistoleiros pelas ruas do povoado para indicar o cofre do marido. Onça Branca não estava.
Em 1992, a Polícia Militar do Pará cercou um sítio onde Márcio estava. Ele se escondeu atrás de uma parede falsa da casa. Após 24 horas, um irmão dele levou os agentes até o local do esconderijo. Quando chamou por Márcio, ele saiu da casa. Leo Reck chegou horas depois. “Simularam que o Márcio reagiu. Ele foi executado”, relata Reck. Márcio virou lenda, dessas que não morrem. “Eu vi o corpo, que foi embalsamado aqui mesmo e levado para Goiânia”, conta. “As tripas eu levei para o cemitério.”
Depois de servir ao Exército em Foz do Iguaçu, Leo Reck se casou com Irene e foi para Mato Grosso. Em 1974, chegou ao canteiro das obras da BR-163. Fixou-se a poucos quilômetros da Serra do Cachimbo, no Pará. Ali montou um pequeno comércio e passou a investir em garimpo. Numa terra inóspita, pôs em prática, em homens e mulheres, tudo o que aprendeu de veterinária, por meio de um curso a distância. Tornou-se o senhor da vida e da morte em Castelo de Sonhos. Passou a fazer partos e extrair balas nos corpos dos que travavam guerras nos garimpos e margens da estrada. “Nunca perdi uma vida”, conta.
A mudança na legislação que tornou mais difícil a criação de municípios pegou Leo Reck de surpresa. Castelo de Sonhos continuou a ser distrito de Altamira, distante de sua sede por quase a mesma distância que separa Brasília do mar. Cerca de 15 mil moradores vivem no lugar. A lama, no inverno, e a poeira, no verão, trazem problemas de saúde e dificultam os deslocamentos. As ruas largas não têm calçamento e crateras desafiam motoristas.
Leo Reck é o homem mais rico de Castelo de Sonhos. As Organizações Reck negociam lotes, sítios e fazendas. Em seu escritório, o empresário guarda um porta-retrato com a fotografia de Márcio. “Nunca consegui ter raiva dele”, afirma. Também mantém uma vitrola e o disco LP de Walter Basso com a música que inspirou o nome do povoado. Na conversa, ele diz que o futuro de Castelo de Sonhos deve ser a agricultura – a soja já passou pela Serra do Cachimbo e está em volta do distrito. Aos 80 anos, não esconde a vontade de seguir o mesmo caminho em direção a Santarém. “Não sei se devo dizer, mas às vezes tenho vontade de abrir outra cidade mais adiante”, conta. Difícil será escolher outro título de música de sentido tão contrário ao lugar.
Deus também é jardineiro. – A Criação como ecologia realizada.
Queriniana, 240 páginas. O francês Boureux propõe uma nova perspectiva sobre Criação e salvação.
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Marcados para morrer no Castelo de Sonhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU