Por: Cesar Sanson | 08 Julho 2016
“A grandeza de Pe. Sabino ficou nas coisas, nas pessoas, na ação política. Destituído das ambições da carreira eclesiástica, foi, por inteiro e acima de tudo, o ator político que assumiu posição intransigente ao lado dos excluídos e com eles buscou as formas de superação de suas situações-limites”. O comentário é de Aparecida Fernandes, professora do IFRN – Campus Parnamirim, ex -militante da PJMP e da Pastoral Operária em artigo sobre o Pe. Sabino Gentili.
Eis o artigo.
Em um fatídico 08 de julho do ano de 2006, a comunidade de 17 mil habitantes, cravada em cima de uma duna na cidade de Natal-RN, composta por trabalhadores assalariados, biscateiros, donas-de-casa e muita criança, foi tomada de tristeza. O coração de sua maior referência humana havia parado. Por ironia do destino, a metáfora que mais o caracterizava – o homem de grande coração – transformou-se no sentido literal mais duro: o coração, de tão grande, não coube mais no seu peito. E abateu para sempre Sabino Gentili, o Pe. Sabino.
Os jornais locais noticiavam: “Morre um ícone do social”. Outra manchete dizia: “Padre mudou realidade social da periferia”. E o editorial do hoje extinto Diário de Natal declarava:
Num tempo como o que ora vivemos, da exacerbação dos interesses individuais, em que o espírito público parece uma expressão fora de uso, registrar a morte do padre Sabino Gentili é um requinte de dor. Quantas pessoas deixam a sua terra, ainda mais uma terra resolvida, uma das cinco maiores economias do mundo, um lugar de trabalho tranquilo, um futuro desenhado para, em troca de nada, estabelecer residência numa comunidade pobre, de uma região pobre do Terceiro Mundo? Este italiano cujo nome nenhum natalense pode jamais esquecer, fez. Professor de um colégio de classe média alta, ele poderia ter se rendido aos encantos de uma vida tranquila mesmo aqui, se deixar a Itália era seu intento. Mas isso pareceu pouco para Sabino, o padre Sabino, um adepto da Teologia da Libertação. [...] (DIÁRIO DE NATAL, 11 jul. 2006, p. 2. Opinião).
A grandeza de Pe. Sabino ficou nas coisas, nas pessoas, na ação política. Como ressalta o editorial citado, Sabino saiu da Congregação dos Salesianos nos anos de 1980 para tornar-se padre diocesano e foi fixar residência no periférico bairro de Mãe Luiza.
Em tese de doutorado em educação, em que se analisa a metodologia de ação de Sabino Gentili, questionei como foi possível a alguém, saído das hostes de um campo religioso fechado, tornar-se o ícone da Teologia da Libertação no Rio Grande do Norte, visto que a posição de D. Bosco, fundador dos Salesianos, “era não fazer política nenhuma”, conforme ressaltou Caviglia (1987, p. 100). Então, as questões conjunturais do período em que Sabino fez o seminário – anos 1960 – dos novos rumos que o Papa João XXIII dava à Igreja, a partir do Concílio Vaticano II, e da ação progressista da Igreja na América Latina deram a tônica para a opção feita pelo Pe. Sabino de também se colocar a serviço dos excluídos. Juntem-se a isso sua origem humilde, de família camponesa da Itália, e sua sólida formação humanista.
De uma geração ímpar de religiosos que fizeram a opção pelos pobres na teoria e na prática, mesmo ainda no Salesiano, de cuja escola fora diretor em Natal, atuava também fora de seus muros. Abria as portas da escola aos fins de semana para as crianças e os adolescentes das periferias; articulava, no âmbito do Nordeste, a construção da Pastoral de Juventude do Meio Popular – PJMP.
Ao chegar em Mãe Luiza, sua primeira ação foi o envolvimento com conflitos de moradia, constantes nessa comunidade, visto que, embora habitada pela massa pobre que vinha majoritariamente do interior e também das adjacências da cidade de Natal, estava situada próxima ao centro da cidade e sua localização geográfica – rodeada de um lado pelo mar e por outro por um grande cordão de dunas e matas – tornava-a um filão para o setor imobiliário.
Em 1983, Sabino ergueu o Centro Sócio Pastoral N. Senhora da Conceição, por meio de mutirão, que se tornou o centro de referência das lutas comunitárias. Sua atuação, pautada numa metodologia participativa e emancipatória, aos moldes freireanos, provocava o protagonismo dos sujeitos na resolução de seus problemas, numa aposta de que a ação coletiva não só reivindicativa, mas propositiva e executora de projetos seriam o motor para empurrar o poder público para a execução das políticas necessárias à promoção da cidadania.
E foi das carências do Morro de Mãe Luiza que a Escola Espaço Livre, de Educação Infantil, fora fundada em meados dos 1980, quando a carência de escolas para a faixa etária dos 3 aos 6 anos era ainda mais gritante; também nascem a Casa Crescer, escola de contra turno para crianças e adolescentes com dificuldades na escola formal e em situações de risco, e a Escola Novo Lar, atendendo a alfabetização de jovens e adultos; cria-se o Projeto “Amigos da Comunidade”, que acompanhava mães gestantes ou com crianças até 1 ano de idade, o que fez reduzir a índices europeus a mortalidade infantil no bairro; o Amigos da Comunidade, ao cumprir sua função, aponta outra demanda que era a quantidade significativa de idosos em situação de vulnerabilidade. Desfaz-se o projeto Amigos da Comunidade e funda-se o Espaço Solidário, em 2011, casa de convivência para abrigar esses idosos em estado de exclusão. E ainda emplacou cursos de profissionalização, de idiomas, biblioteca, cursinho pré-vestibular. Para além disso, contribuiu para fomentar o debate político no interior do bairro, por meio dos seminários comunitários nos quais os moradores discutiam suas necessidades e as alternativas de ação para enfrentá-las.
Sabino não foi somente o padre à frente do suporte institucional dado pelo Centro Sócio Pastoral, mas o morador de Mãe Luiza que também resistia e com ela caminhava travando as lutas contra a especulação imobiliária, pelo direito à cidade, à vida digna.
Travou o debate de todas as pautas que atingiam os trabalhadores. Ajudou a formar muitas chapas de oposição sindical, articulou e assessorou a Pastoral Operária, fez-se presente nas lutas dos sem-terra, enfrentou a problemática da criança abandonada, sendo o responsável pela implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Rio Grande do Norte. Sobretudo, foi um grande educador, formador de pessoas, de lideranças, em todos os campos – da luta sindical, do movimento popular, do movimento dos sem-terra, da juventude, da comunicação alternativa, da educação.
Pe. Sabino nunca vestiu o manto do missionário civilizador. Destituído das ambições da carreira eclesiástica, foi, por inteiro e acima de tudo, o ator político que assumiu posição intransigente ao lado dos excluídos e com eles buscou as formas de superação de suas situações-limites. Mesmo quando diretamente atingido pela onda conservadora da Igreja, que em Natal teve em D. Heitor de Araújo Sales seu expoente máximo, Sabino não esmoreceu. Desligou-se da Arquidiocese de Natal e incardinou-se na província de Rieti, Itália, sua terra natal, permanecendo aqui como missionário. Continuou, até seus últimos dias, a serviço do projeto de sociedade em que acreditava.
Sabino andou com fé e nunca deixou de depositar esperança no ser humano. Sempre dizia: “minha cachaça é gente”. Seu legado continua no Morro de Mãe Luiza. E, para além do Morro, fez as pontes com o Velho Mundo, provocando outras pessoas a somarem-se na partilha pela construção de um mundo mais solidário e igual.
Como ele mesmo afirmou em artigos que escreveu para o Jornal Fala Mãe Luiza, “para as mudanças verdadeiras é preciso dar-se o tempo. Os desejos de mudança devem crescer de dentro.” E “será uma grande tristeza se, algum dia, tivermos de nos arrepender de não ter feito o que devia ser feito. Omissão é pecado que não tem perdão, porque o tempo já passou.”
Sabino não se omitiu. E, por isso, olha-nos do céu, com seu típico sorriso largo. Sua memória impõe-se com força, como aquele que se fez homem no convívio com a gente sofrida.
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Dez anos sem o libertário Pe. Sabino Gentili - Instituto Humanitas Unisinos - IHU