Por: Cesar Sanson | 04 Março 2016
"Continua desafiadora a exigência de conseguirmos detectar situações atuais de trabalho escravo, hoje bem mais dissimuladas em nosso meio, no campo e na cidade, na agricultura, na construção, no extrativismo, na mineração, na indústria, na pesca, no comércio". O comentário é de Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o trabalho escravo, em artigo publicado por Comissão Pastoral da Terra – CPT, 03-03-2016.
Eis o artigo.
A audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em 18 e 19 de fevereiro para julgar ação movida contra o Estado brasileiro por omissão no combate ao trabalho escravo no caso da fazenda Brasil Verde, no Pará, desenvolveu-se da melhor maneira possível, do nosso ponto de vista de peticionários.
Agora, a sentença deve sair dentro de 6 meses, dando uma resposta ao caso que a Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização na qual eu milito, e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), apresentaram em 1998 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A denúncia encaminhada à Corte pela CIDH aponta que o Estado não tomou providências necessárias para evitar a exploração de trabalhadores na fazenda entre 1988 e 2000, apesar dos alertas. Além disso, não fez esforços para punir os donos da propriedade.
Ao longo daqueles doze anos, nas seis ocasiões em que fiscais do governo estiveram na propriedade, 340 trabalhadores foram resgatados. Infelizmente, a Brasil Verde era apenas um caso entre centenas de outros esquecidos pelo Estado, que relegou dezenas de milhares de pessoas à condição de escravos.
Durante a audiência na Corte, conseguimos evidenciar a realidade, brutal e sistemática, do trabalho escravo naquela época, destacando elementos que constituíam um verdadeiro “padrão”, uma prática sistemática, especialmente naquela região norte. Mostramos que, apesar de inegáveis instrumentos e avanços produzidos ao longo desses anos, continua chocante a ineficiência do combate ao trabalho escravo.
Nesse contexto de passado que, sob vários aspectos, permanece até o presente, surge, como mais um desafio, a sinalização de profundos retrocessos em processo no Congresso e em setores do Executivo e do Judiciário. Serão retrocessos consumados se não reagirmos à altura destes desafios e se – em situações como a evidenciada no caso da Brasil Verde – não for mandado ao Estado o recado adequado.
As testemunhas e peritos chamados a falar durante a audiência não deixaram margem para dúvida quanto à caracterização da situação constatada na Brasil Verde e na região na mesma época, ou à lamentável leviandade do tratamento dado a esses fatos pelas autoridades. Já na época, ficava claro que a negação da liberdade nesses cantos isolados podia se dar de muitas maneiras, entre elas a imposição de dívidas impagáveis, a submissão à mais degradante condição, a coação psicológica ou a coerção brutal por capangas.
Leonardo Sakamoto, conselheiro do Fundo das Nações Unidas contra Formas Contemporâneas de Escravidão, esclareceu o contexto e o entendimento do sistema da escravidão moderna, uma realidade que presenciou na Amazônia em várias oportunidades e analisou à luz de sua experiência internacional: é um crime movido à ganância, miséria e impunidade.
Sakamoto também frisou a importância dos mecanismos inovadores criados no Brasil a partir de 2003, com a finalidade de, no mercado, separar o joio do trigo, dando transparência à atuação da fiscalização. Mas lamentou os redobrados ataques a esses mecanismos, provenientes de grupos econômicos atingidos pela fiscalização, bem como a fraca resposta do Estado a essa situação.
Ana de Souza Pinto, que atua na CPT de Xinguara, no Pará, expôs as deploráveis condições que trabalhadores fugidos de fazendas desta região, onde está a sede da Brasil Verde, vinham lhe relatar: não era um ou outro caso, eram centenas de casos, envolvendo milhares de trabalhadores, acolhidos com humanidade, atenção e rigor, de maneira a embasar as denúncias encaminhadas à fiscalização federal.
Ela descreveu também o perfil recorrente desses trabalhadores, geralmente aliciados no Maranhão, Piauí ou Tocantins, migrantes por necessidade, vítimas de promessas enganosas, tratadas pior do que animais: homens na força da idade e jovens, analfabetos ou com precária educação formal (por já terem iniciado o trabalho pesado desde a infância). Ana insistiu na força do poder econômico representado pelos fazendeiros, e na violência ali reinante.
Com base na extensa pesquisa que realizou em centenas de casos notificados entre 1995 e 2004, dentre eles 142 casos típicos de escravidão envolvendo mais de 7700 pessoas, Raquel Elias Ferreira Dodge, subprocuradora geral da República, desenhou o padrão característico do trabalho escravo na fronteira agrícola do Pará, suas rotas, seus atores e sua forma de atuação em concurso, na busca de vantagens. Ela cobrou e apontou para uma estratégia judicial adequada à natureza do crime de colarinho branco.
Pela Comissão Interamericana, declarou o perito Cesar Rodriguez. Ficou evidente que o Estado, desde 1989 e de forma repetida, teve notícia de suspeitas e, por várias vezes, de evidências de trabalho escravo na Brasil Verde. Mesmo assim, não atuou a contento. Argumentos apresentados pelo perito do Estado Jean Allain, tendendo a descartar a qualificação de trabalho escravo para as situações então constatadas pelos fiscais, não convenceram.
Outros testemunhos e outras perícias foram oportunamente juntados ao processo, na forma de escritos de especialistas incontestes arrolados pelos peticionários, entre fiscais do trabalho, gestores públicos, peritos internacionais, procuradores, juízes ou acadêmicos.
Questões em disputa dizem respeito, entre outras, à realidade da qualificação dos fatos do caso Brasil Verde, por terem ocorrido em período anterior à clarificação legal do conceito de trabalho escravo, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2003, à realidade das ações desempenhadas pelo Estado, à competência da Corte para conhecer dos fatos, ações e omissões trazidos à tona.
O fato de outros países deste continente terem uma conduta eventualmente bem pior que a do Brasil não o exime de ter de corrigir seus defeitos e superar seus limites e omissões. E não são poucos: nenhuma ação real – sistemática – de prevenção voltada aos públicos em situação de vulnerabilidade ao tráfico, ao aliciamento, à migração de risco e ao trabalho escravo; baixa histórica na capacidade de intervenção do Estado (faltam 1000 fiscais!); lista suja jogada às nuvens e conceito legal de trabalho escravo sob tiroteio.
Sem falar na impunidade gritante: de quase 2300 empregadores escravagistas já flagrados por esse crime desde 1995 (com mais de 50 mil pessoas resgatadas pela fiscalização), nenhum – nenhum! – ainda cumpriu pena de prisão, como manda o art. 149 do código penal.
Dizem que os casos de trabalho escravo no Brasil estão em redução? Na verdade, está diminuindo, sim, o número de resgatados do trabalho escravo (em média 2.000 por ano nos últimos cinco anos, contra 4.500 anuais nos anos de 2003 a 2010). Isso não significa exatamente a mesma coisa. Continua desafiadora a exigência de conseguirmos detectar situações atuais de trabalho escravo, hoje bem mais dissimuladas em nosso meio, no campo e na cidade, na agricultura, na construção, no extrativismo, na mineração, na indústria, na pesca, no comércio.
Ficou triste – revoltante até – ter que ouvir do representante do Estado (Advocacia Geral da União) nas audiências da Corte uma cínica negação da realidade de trabalho escravo constatada na época na fazenda Brasil Verde, em discurso que pouco se diferenciava do argumento de um ruralista impenitente. Como bem disse o representante da Comissão Interamericana na conclusão das alegações finais, dirigindo-se ao Estado: faltaria então nos explicar porque o Estado resolveu, na época, resgatar dessa fazenda aqueles tantos trabalhadores: resgatar do quê?
Aguardaremos a sentença da Corte, prevista para sair, esperamos, até julho ou setembro deste ano. Essa sentença, além de determinar a reparação dos danos sofridos por mais de 300 trabalhadores explorados sucessivamente na Brasil Verde, deve também enunciar parâmetros importantes – válidos para o conjunto dos países membros da OEA – para que o trabalho escravo seja devidamente – e com a máxima energia – identificado, prevenido, combatido e sancionado, no Brasil e fora do Brasil. Sem esbarrar em institutos inadmissíveis como o da prescrição, que ainda vigora no Brasil, mesmo para crimes tão repugnantes como o de reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Uma situação que, de acordo com a Convenção Americana assinada pelo Brasil, não se pode admitir.
Ao iniciar as alegações finais, os peticionários saudaram a atuação corajosa do frei Henri Burin des Roziers, autor, em 1998, da inicial do caso Brasil Verde na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, e que, desde Paris, no mesmo dia da audiência e auspiciosamente, celebrou seu 86°aniversário, com a apresentação de mais um livro, este intitulado Comme une rage de justice (Como uma raiva de justiça).
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Caso de trabalho escravo faz OEA pôr Brasil no banco dos réus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU