26 Fevereiro 2016
"Desde a obra seminal de Esping-Andersen (e mesmo antes), a sociologia comparada vem mostrando o papel dos adensados sistemas de proteção social nas sociedades modernas. O ideário de sociedade de indivíduos, onde apenas autonomia, o esforço, o empreendedorismo seriam tanto molas de crescimento econômico e de bem-estar social, não encontra âncora em evidências", escreve Luciana Jaccoud, doutora em Sociologia pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS) e técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Economia Aplicada (Ipea), em artigo publicado por Plataforma Política Social. Caminhos para o Desenvolvimento, 21-02-2016.
Eis artigo.
Após mais de uma década, voltamos a assistir no debate público ao recrudescimento das críticas às políticas sociais. Alimentada pelo diagnóstico de que a crise econômica impõe urgente e estruturante ajuste fiscal, retoma-se a discussão de se as políticas sociais, acolhidas pela Constituição Federal como responsabilidade pública obrigatória, são financeiramente sustentáveis ou mesmo socialmente desejáveis. De fato, tornou-se usual o argumento de que, ampliadas desmesuradamente, as políticas sociais têm causado o descontrole do gasto público. Estariam hoje beneficiando públicos que a elas não fazem jus, além de ofertarem serviços de qualidade duvidosa e que poderiam ser, em maior ou menor medida, mais bem geridos pela esfera privada.
Como resposta aos problemas identificados, retoma-se a antiga receita da racionalização do gasto público, tendo em vista sua maior eficiência, com ênfase na priorização das ofertas públicas para aqueles que de fato delas necessitariam. Nesta perspectiva, reafirma-se a responsabilidade do Estado brasileiro no enfrentamento da pobreza, negando, contudo, a continuidade e estruturação do sistema de proteção social tal como vem sendo desenvolvido desde a Constituição democrática de 1988. A crítica à ampliação da responsabilidade pública e à construção de um campo adensado de direitos sociais estendido a todos os brasileiros sustenta-se, assim, tanto na reafirmação da natureza essencialmente compensatória da política social, como na confiança reiterada na esfera privada e no esforço individual. O argumento é tão simples como atraente, e tão limitado como insuficiente.
A larga e longa experiência internacional demonstra que as políticas sociais operam não somente frente a casos e situações sociais específicas, mas ao contrário, são parte orgânica de uma trajetória de desenvolvimento – ou seja, crescimento socialmente não predatório. Como destaca Atkinson em trabalho recente, não se conhece entre os países desenvolvidos, trajetória relevante de redução das desigualdades que não tenha sido acompanhada por expressivos gastos e adensadas institucionalidades em políticas sociais (Atkinson, 2015).
Não é por outro motivo que, mesmo com taxas reduzidas de crescimento econômico, confirma-se a expressiva participação estatal no campo social entre os países da OCDE, seja em termos de magnitude da oferta, seja no gasto social que lhe dá sustentação (OCDE, 2014). É o reconhecimento de que o desenvolvimento pressupõe papel significativo do Estado na regulação da vida social, seja para a garantia de patamares de bem-estar, seja para a manutenção de níveis limitados de desigualdade social (e não apenas de renda).
Desde a obra seminal de Esping-Andersen (e mesmo antes), a sociologia comparada vem mostrando o papel dos adensados sistemas de proteção social nas sociedades modernas. O ideário de sociedade de indivíduos, onde apenas autonomia, o esforço, o empreendedorismo seriam tanto molas de crescimento econômico e de bem-estar social, não encontra âncora em evidências (nem mesmo nos EUA como demonstram não apenas a política de educação, como o recente debate sobre o acesso à saúde).
Contudo, na agenda brasileira atual, educação, saúde, assistência social e previdência social passam a ser objeto de propostas reformistas que visam a reduzir seu escopo em oferta e público beneficiário. Nesta nova-velha agenda, a ausência dos temas da desigualdade e da equidade revela um debate que, abstraindo a perspectiva sociológica, restringe a análise da política social a uma dupla dimensão: a individual, afirmada pela perspectiva do beneficiário, sob o qual se exercitam critérios de justiça que adequariam a seleção e cobertura; e a econômica-tributária, aqui limitada ao esforço do gasto público.
Da perspectiva social, entretanto, o debate se impõe em outro registro. A pobreza, mesmo quando atingindo apenas parte da sociedade, repercute de forma ampla na dinâmica da vida social. Como já afirmou Rosanvallon (2011), a desigualdade é vivida solidariamente. Longe de afetar somente os menos favorecidos, ela diz respeito à sociedade como um todo e tem efeito deletério sobre toda ela. Operar com mais ou menos igualdade afeta extensamente a sociabilidade e os vínculos
sociais, tanto na vida privada como pública, alterando as formas como se processam e mediam os conflitos distributivos, e com impactos que se estendem dos patamares de violência urbana à legitimidade da ordem política.
A desresponsabilização das políticas sociais sobre o nível e a dinâmica das desigualdades sociais tem consequências efetivas e para o conjunto da sociedade. A sociedade dinâmica em contexto de crescente individualização não prescinde de amplas políticas de proteção social. Entre os vários motivos, cabe lembrar dois destacados por Castel (2003): em termos individuais, estar em situação permanente de insegurança impede tanto controlar o presente como antecipar positivamente o futuro em termos sociais; as políticas sociais fortalecem a inserção dos indivíduos, de modo que possam participar da sociedade em parte inteira. Ela atua, portanto, como canal privilegiado de integração social, fazendo face aos riscos de fragmentação e ruptura social que a desigualdade social promove na medida em que avança.
Concluindo, cabe lembrar os impactos diversos das políticas sociais. Para além do enfrentamento das situações de pobreza, elas operam preventivamente seja no campo da garantia de renda, permitindo o enfrentamento dos riscos de pobreza nas situações de impedimento de participação no mercado de trabalho, seja no dos serviços, se voltadas ao desenvolvimento das capacidades e ao acesso a oportunidades via ofertas de educação, saúde e cultura. Podem ainda ter papel expressivo na construção e melhoria de inclusão produtiva, seja frente aos riscos inerentes a um mundo do trabalho em rápida transformação, seja face à população trabalhadora ainda inserida em atividades precárias e de baixa produtividade. Desnecessário, por evidente, avançar no argumento de vínculo entre políticas sociais e desenvolvimento.
Mas talvez o impacto mais relevante da proteção ancorada em direitos universais seja que, ao reconhecer certos padrões de igualdade referentes a condições de vida, seguranças e oportunidades, e ao manter em negociação permanente o seu conteúdo, as políticas sociais operam na contramão de heterogeneidades, hierarquias e desigualdades. Afirmam, assim, conteúdos no campo do que é comum e do que é coletivo. E é neste campo que valores e vivências podem afirmar uma sociedade, uma sociabilidade que vá além dos indivíduos e suas diferenças. Neste sentido, uma agenda de reformas se impõe, mas certamente não a do constrangimento das generosas possibilidades que nos delegou a proteção social desenhada pela Constituição de 1988. Mais do que uma alternativa, este parece ser o único caminho para tornar o Brasil um lugar onde a dignidade seja afirmada e permita tanto a confiança no futuro como o usufruto e o convívio social. E não apenas para os pobres, mas para todos aqueles que não podem ou não pretendem viver em Miami.
Bibliografia
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A desigualdade e a política social no debate sobre reforma fiscal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU