15 Janeiro 2016
Massimo Faggioli nos acolhe com grande disponibilidade e cordialidade alguns minutos depois de participar de uma edição ao vivo do programa Il Diario di Papa Francesco, do canal italiano TV2000, e o faz sem pôr limites de tempo nem de assuntos. Desde logo, as suas respostas são concisas, aprofundadas e articuladas, revelando a sua sólida formação como historiador, não só da Igreja.
A reportagem é de Francesco Gagliano e de Luis Badilla, publicada no sítio Il Sismografo, 14-01-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Faggioli é atualmente professor associado de Teologia e diretor do Institute for Catholicism and Citizenship da University of St. Thomas, em St. Paul (Minnesota), e professor do Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University (Filadélfia). Publicou inúmeros livros e ensaios, além de ter estudado e ensinado em diversos centros acadêmicos importantes dos Estados Unidos, Canadá e Itália.
Uma parte importante do seu compromisso universitário é dedicada a seminários e encontros internacionais sobre teologia, eclesiologia e história. Além disso, Massimo Faggioli é muito conhecido do grande público pela sua intensa e oportuna atividade jornalística, razão pela qual os seus artigos são lidos e comentados em várias publicações (Global Pulse Magazine, blog dotCommonweal, Huffington Post).
Encontramos Massimo Faggioli na segunda-feira passada, 11 de janeiro, poucas horas depois do discurso do Papa Francisco ao Corpo Diplomático credenciado junto da Santa Sé, e essa alocução nos sugeriu logo a primeira pergunta.
Eis a entrevista.
Fluxos migratórios sem projeto nem previsões
Por que o papa dedicou 60% do seu discurso para a questão que ele chamou de crise migratória, usando até o adjetivo "grave"?
Porque essa é a crise mais grave, especialmente para a Europa, desde a Segunda Guerra Mundial, com uma diferença: as ondas de milhões de refugiados depois da guerra eram parte de um projeto diplomático muito preciso e claro, era o mundo assim como tinha sido decidido em Yalta. Além disso, eram refugiados, penso, por exemplo, nos alemães provenientes da Alemanha Oriental e nos judeus que iam morar no recém-criado Estado de Israel, muito mais facilmente assimiláveis do que os refugiados de hoje.
A situação política, em nível europeu, vê governos (de direita ou de esquerda) que têm dificuldade em aceitar os migrantes. Do ponto de vista étnico, estão muitas vezes em conflito entre si – os Yazidi, os árabes cristãos, os árabes sunitas. Portanto, tudo é muito mais complicado, até mesmo do ponto de vista religioso, muitas vezes também dentro do próprio mundo cristão, por exemplo, na percepção recíproca entre mundo católico e ortodoxo. Por isso, é a crise migratória mais grave das últimas décadas, porque carece completamente de um projeto diplomático, mas também de uma previsão política que saiba intuir quais são as frentes mais urgentes onde é preciso agir. Portanto, hoje, o papa, que é o personagem mais popular que fala da imigração, deve enviar a mensagem mais impopular, é o único que pode fazer isso, lembrando a importância de não perder a si mesmo ao enfrentar esta que é uma verdadeira emergência.
Quando o risco profético vale a pena
Além desse elemento recém-analisado, na sua opinião, há algum outro ponto do discurso do papa ao Corpo Diplomático que você gostou ou que mais chamou a sua atenção?
Fiquei impressionado com a reivindicação da escolha de abrir o Jubileu da Misericórdia em Bangui (República Centro-Africana). Acho que ele quis reivindicar também o fato de que a sua presença lá, em novembro, ajudou, talvez, um certo processo e mudança política naquela área, que é uma área de guerra. A meu ver, esse foi um sinal que ele quis mandar para dizer: "Os gestos simbólicos que eu faço, além disso, não são tão simbólicos, têm consequências, não são só poesia". Assim, um gesto não de orgulho, obviamente, mas de reivindicação, que diz: "O risco vale a pena". Penso, por exemplo, como prova desse raciocínio, naquilo que ele fez em Cuba, nas relações com a China. Se você nunca arrisca, se não enfrenta de modo direto determinadas questões, você não pode esperar mudá-las apenas com as palavras. É um papa que, neste momento, é o único que pode dizer certas coisas.
Política, economia, finanças
Temos a impressão de que o papa falou muito sobre economia e finanças, raramente sobre política. Ao contrário, quando ele estava em Buenos Aires, eu notei, lendo o seu magistério episcopal, que ele falava muito sobre política, inaugurando a cada ano um curso de formação sem poupar críticas muito duras. Depois, a impressão de que ele passou a se concentrar, nos anos seguintes, em temas como a economia e as finanças, pois ele considera que agora não vale a pena falar dessa política que é refém de um certo tipo de economia e finanças, e o instrumento que permite essa anomalia seria a corrupção: qual é a sua opinião a respeito?
Eu compartilho esse seu raciocínio com algumas nuances: um dos possíveis motivos desse "distanciamento" da política é que Bergoglio entendeu muito bem que, quando se tornou Francisco, ele se expôs, na Itália, a riscos específicos nas relações com a política. Por isso, quis criar uma zona-tampão, para poder manter uma distância adequada entre si e os políticos italianos que tendem a se "apropriar" do papa. Essa me parece ser uma coisa genial e muito importante, também para resgatar uma certa ideia de pontificado aos olhos dos italianos que sempre o viram como parte da política italiana.
A segunda coisa é esta: a meu ver, é verdade que o papa interpreta a economia financeira como dominadora do mundo e a própria política como sujeita a ela, mas ele nunca insulta esta última por um motivo semelhante, o que, ao contrário, nos Estados Unidos e especialmente entre muitos teólogos progressistas, está se espalhando cada vez mais, porque a política é vista como para além de qualquer salvação possível, perdida para sempre. Francisco, em vez disso, conserva a ideia de que a política é muito importante, é uma nuance muito significativa, porque nos Estados Unidos muitos teólogos católicos tinham acreditado que podiam contribuir para mudar o mundo e perceberam, nos últimos 20, 30 anos, que é muito mais complicado do que parecia e, portanto, agora tendem a renunciar à própria ideia da política. Chegaram a pensar que o futuro do cristianismo está em pequenas comunidades, onde a política, de acordo com o seu raciocínio, não existe.
O papa, em vez disso, é muito claro ao dizer que a política é a única coisa que pode trazer justiça, que pode reequilibrar as situações de desigualdade. Eu acho que aquilo que ele está tentando fazer é reabilitar a política, e é uma coisa essencial, porque é verdade que estamos em uma fase de profunda crise, mas eu não vejo como o mundo pode ser um lugar melhor sem política. Essa sua atenção é uma das melhores qualidades que o papa, na minha opinião, está mostrando. Ele interpretou o momento atual e está dando uma visão muito católica dele.
Reformar a Cúria: a expectativa
Na sua opinião, quais são as maiores armadilhas que se apresentam agora, no início do terceiro ano de pontificado e com os projetos em obras (reforma da Cúria, métodos e estilos no governo central da Igreja, o próprio modo de dar testemunho da fé...)?
Eu vejo que, sobre a sua mesa, o dossiê mais difícil é o da reforma da Cúria, porque, até agora, só foram dados pequenos passos: essa nova congregação, os novos dicastérios para a economia. A expectativa que existe é a de uma reforma radical, que ele está fazendo com um plano de subtração de competências de Roma e de restituição aos bispos locais. Isso é muito importante, e eu acho que deve ser acompanhado, em certo ponto, por uma mensagem que dê a entender que a Cúria Romana pode mudar. A estrutura dessa instituição é muito semelhante à de 1588. Cada papa do século XX tentou reformar a Cúria, mas foram todas ações que agiram apenas na superfície. Agora, é claro que é necessário dar um fim nesse processo, porque é o mais difícil de se fazer. Como historiador, vejo a sobrevivência de um certo tipo de modelo curial como algo que contribui para fazer com que se acredite que há coisas que podem sobreviver a qualquer mudança.
Francisco na Igreja e na política dos EUA
Em breve, terão passado seis meses desde a visita do papa aos Estados Unidos. O que ficou? Há uma herança que foi recolhida pela Igreja e não só pelos católicos?
Permaneceu uma grande impressão, muito mais na base dos católicos norte-americanos do que na cúpula dos bispos. Sabemos que grande parte do episcopado estadunidense foi nomeado em um determinado período, e eles ainda estão aprendendo a conhecer o Papa Francisco. O que ficou é a sensação e a certeza de que é possível ser católico nos Estados Unidos sem ser escravo de um programa ou de um partido político, que é a tara cultural e política da Igreja norte-americana dos últimos 30, 40 anos.
Também permanece a impossibilidade de encerrar Francisco na caixa do progressivismo e liberalismo, de um lado. ou do conservadorismo, de outro. Eu acho que esse é um exemplo de como a agenda do papa não é redutível a uma plataforma de um partido e que desafia uma certa ideia de ser estadunidense, ou seja, uma certa ideia de poder, de papel que se desempenha no mundo, uma certa relutância em usar a linguagem da misericórdia. A visita aos EUA foi um grande evento e, de certa maneira, era a visita mais difícil, mas o sucesso foi total, porque Francisco se revelou pelo que ele é, sem seguir um roteiro ou um script. Certamente, há coisas ainda a serem vistas. Refiro-me, por exemplo, às próximas eleições presidenciais e à conduta dos católicos, fiéis e hierarquia.
Reforma do governo central da Igreja
Voltando à questão da reforma da Cúria, parece-lhe que Francisco tem realmente a possibilidade de mudá-la ou, ao menos, de lançar as bases para uma renovação? Enfim, ele é o homem certo no momento certo?
Eu diria que sim, por uma série de motivos: o primeiro é biográfico. Ele é o primeiro papa que, em muitas décadas, nunca estudou nem trabalhou em Roma; portanto, ele parte de uma notável liberdade e autonomia em relação às questões romanas. Depois, sendo muito franco, a Cúria nunca gozou de uma grande fama, os topos anticurial é antiquíssimo e hoje é ainda mais; o poder simbólico e político da Cúria está no seu nível mais baixo. Portanto, eu acho que este é o momento de começar a repensá-la. Eu entendo bem que o papa não tem a intenção de investir todo o seu pontificado nessa reforma, porque não faria sentido. No entanto, se nem Francisco conseguisse atacar esse sistema, se criaria uma camada de imortalidade em torno dessa instituição que não seria saudável, porque não há notícia da Cúria nos textos sagrados ou em outros lugares, ela é uma criação totalmente humana e histórica e, portanto, não pode permanecer imutável ao longo dos séculos.
Este, na minha opinião, é o momento de agir, porque Francisco é um papa que não tem obrigação de reconhecimento ou de "investimentos" pessoais com a Cúria Romana, como era típico de Paulo VI ou de João XXIII. Eu não defendo a destruição da Cúria. Deve existir, para a Igreja, um sistema de administração central, mas, quanto mais se espera para reformar esse sistema, mais vão crescer as vozes que vão querer a sua destruição, e isso é arriscado, porque um certo lugar para representar, por exemplo, as vozes das Igrejas pobres em nível global deve existir, e isso pode ser feito muito bem por Roma, mas é necessário fazer alguma coisa antes que o sistema se torne tão desacreditado a ponto de considerar Roma desprovida de qualquer valor, até mesmo simbólico.
Vaticano II: ir além da época das controvérsias
A 50 anos do Concílio Vaticano II, você pensa que Francisco é o primeiro papa que está colhendo os seus frutos finalmente maduros?
Não há dúvida. É o primeiro papa que não tem incertezas sobre como o Concílio devia ser interpretado, devia ser interpretado de um certo modo. Agora n´so o temos em mãos e nós o interpretamos, sem reabrir controvérsias de 30 ou 40 anos atrás. O que eu acho interessante é que ele fala muito pouco do Vaticano II, enquanto o faz, o aplica constantemente, e o mais fascinante é que ele nunca mostrou interesse na questão hermenêutica do Concílio, não é um tema para ser reinterpretado, mas atualizado e realizado.
Este é o seu dom teológico: ir além da época das controvérsias. Sem dúvida, elas existem – e, vivendo nos EUA, eu poderia fazer uma lista infinita –, mas são coisas que o magistério discerne não com uma doutrina imposta, mas iniciando um processo de interpretação e de recepção, porque o discernimento magisterial do Vaticano II, ao som de decretos, é uma daquelas coisas que não funcionaram nem no Concílio de Trento, então imagine agora. Em conclusão, eu diria que o que Francisco está aplicando é realmente o Vaticano II e muito mais, porque ele está tocando em temas que, para o Concílio, eram precoces, mas sem ter medo de deixar outros em aberto. Ele sabe que algumas questões deverão ser enfrentadas no futuro e que deixá-las irresolvidas e de "herança" já é o primeiro passo para a sua solução.
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"O Papa Francisco fala muito pouco do Vaticano II, mas o aplica constantemente." Entrevista com Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU