14 Abril 2015
Noam Chomsky, nascido em 1928 e que começou ensinando no Massachusetts Institute of Technology – MIT em 1955, é considerado o “pai da linguística moderna”, mas é mais conhecido como ativista político e intelectual público. Um dos maiores críticos do envolvimento americano no sudoeste da Ásia e na América Latina, ele também escreveu, de forma contundente, sobre o capitalismo global e descreve-se como um socialista libertário. Entre os seus inúmeros livros, destacam-se “At War with Asia” (1971); “Fateful Triangle: The U. S., Israel and the Palestinians” (1983); “Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media” (com Edward Herman, 1988); e “On Anarchism” (2013).
A entrevista é de Nicholas Haggerty, publicada por Commonweal, 09-04-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em um dos cantos de seu escritório no MIT, Chomsky tem uma pintura de Oscar Romero e dos seis jesuítas mortos em El Salvador em 1989.
Eis a entrevista.
Estou aqui para perguntar a você sobre aquela pintura ali.
Eu a mantenho neste lugar para lembrar-me do mundo real. Ela acabou sendo também uma espécie interessante de teste de Rorschach. Eu frequentemente pergunto às pessoas se elas sabem o que esta pintura significa. Os americanos, nenhum sabe. Europeus, talvez 10%. Os latino-americanos, 100% deles costumavam saber, mas os mais jovens não sabem mais.
Num artigo recente, o senhor mencionou o 25º aniversário do massacre destes jesuítas. Por que o senhor continua a pensar e escrever sobre este incidente em particular?
Por um lado, este incidente é bastante terrível, mas por outro é de uma significação histórica enorme. O ato culminou nos 10 anos de atrocidades terroristas na América Central. A década de 1980 começou com o assassinado de Dom Oscar Romero e terminou com o assassinato dos seis intelectuais jesuítas. Nesse meio tempo, duzentas mil pessoas foram mortas. Os Estados Unidos foram condenados pelo envolvimento em algumas destas atrocidades pelo Tribunal de Justiça Internacional, rejeitaram tal condenação e expandiram a guerra. Foi um período realmente terrível. E isso não é tudo. O momento culminou também com algo que era mais antigo ainda. Em 1962, o presidente Kennedy alterava a missão dos militares latino-americanos: da “defesa hemisférica” para a “segurança interna”. [1] Segurança interna significa algo. A expressão quer dizer guerra contra a sua própria população. E isto desencadeou um histórico horrendo de crimes e atrocidades. Na realidade, Charles Maechling, chefe da contrainsurgência e estratégia de defesa sob o comando de Kennedy e Lyndon Johnson, mais tarde diria que esta alteração tática mudara os EUA: de uma posição onde meramente tolerava a ganância dos militares latino-americanos para uma outra que apoiava diretamente alguns dos métodos usados por Heinrich Himmler, o que está correto. E há mais: em 1962 havia o Vaticano II. É aí quando o Papa João XXIII tentou fazer a Igreja se voltar aos evangelhos, àquilo que ela era antes de que Constantino a fizesse a religião oficial do Império Romano. Isto fora tomado a sério pelos bispos latino-americanos. Eles buscaram a opção preferencial pelos pobres, tentaram fazer com que os camponeses lessem os evangelhos, buscaram organizá-los. Estas ações desencadearam uma guerra contra a Igreja. Uma guerra brutal e sangrenta. Houve mártires religiosos por todos os lados, e muitos outros. Instalam-se Estados de segurança nacional ao estilo neonazista no Brasil, no Uruguai, no Chile e na Argentina. Por fim, chegam à América Central na década de 1980. Foi um período horrendo. E ele basicamente culminou no dia 16 de novembro de 1989, com o assassinato dos seis jesuítas em El Salvador. É um evento de uma significação histórica muito grande. As pessoas nos EUA deveriam saber sobre ele. Somos os responsáveis por isso. É algo muito pior do que aconteceu na Europa Oriental neste mesmo tempo.
O senhor mencionou João XXIII trazendo a Igreja de volta aos evangelhos. Acha que o Papa Francisco está fazendo algo parecido na mesma direção?
É um tipo de trabalho em andamento. Acho que existem alguns indícios, alguns passos nesta direção. Esperemos para ver.
O senhor frequentemente fala, com reverência, sobre a Igreja latino-americana. No entanto, no filme de Michael Gondrys “Is the Man Who Is Tall Happy?”, menciona ter tido um profundo medo de católicos quando era criança na Filadélfia. Houve alguém ou algum evento que o fez mudar de opinião?
Eu comecei a mudar no começo dos anos 1960, quando passei a conhecer pessoas da esquerda católica como Dan Berrigan e Dorothy Day – pessoas realmente maravilhosas. Neste década eu fui à América Central algumas vezes. Um dos meus amigos mais próximos era o reitor da Universidade Centro-Americana – instituição jesuíta na Nicarágua –, César Jerez. Ele tinha uma posição de destaque na Igreja, da Guatemala, mas foi forçado a fugir quando os guatemaltecos anunciaram que iriam matar todos os jesuítas. Todos os jesuítas foram retirados do país, e ele foi para El Salvador. Era uma pessoa estudada. Dom Oscar Romero era uma espécie de camponês – uma pessoa muito honesta, decente, mas com pouca formação. Jerez tornou-se o seu intelectual local. Lembra da famosa carta que o arcebispo enviou ao presidente Jimmy Carter, instando-o a não fornecer apoio à junta governamental? Foi Jerez quem a escreveu. Algo extremamente interessante acontecia então. Não pude escrever sobre isso porque não há nenhuma documentação. Jerez me contou que escreveu a carta para Romero e que, no dia em que a carta chegou a Washington, ele recebeu um telefonema do Vaticano. Aparentemente, o governo de Jimmy Carter pedira ao Vaticano para cessar a ação deste sacerdote perturbador. Eles sabiam o que Jerez estava fazendo. Pediu-se a ele que fosse imediatamente ao Vaticano. Ele foi e aí se reuniu com o chefe da ordem jesuíta, quem lhe perguntou sobre o que estava fazendo. Jerez disse-lhe, e recebeu apoio para continuar. Ele teve também uma audiência com o papa. Jerez disse que o pontífice fora meio neutro em suas palavras: ele não disse para parar nem para seguir em frente. Então, Jerez tomou isso como uma autorização para continuar. Voltou a El Salvador e, poucos dias depois, Romero seria morto. Jerez teve então de fugir para a Nicarágua. Na verdade, quando eu estava visitando a Nicarágua, costumava ficar na residência dos jesuítas. Foi uma grande mudança.
O senhor cresceu lendo as escrituras hebraicas, e já disse que Amós era o seu profeta preferido. O senhor se inspira nos profetas ao emitir os seus alertas sobre as ameaças existenciais de desastres nucleares e ambientais?
Isto é uma enorme autoglorificação. O que se traduziu, em inglês, como “profeta” não significa profeta. Basicamente este termo significa intelectual. Os profetas foram o que chamaríamos de intelectuais dissidentes. Amós diz: “Não sou um profeta. Sou o filho de um profeta. Sou um simples pastor e agricultor”. Ele estava se distanciando daquilo que chamaríamos de elite intelectual, e falando pelo povo de forma bastante eloquente. Jeremias, é claro, não foi bem tratado por causa de suas súplicas pela misericórdia e justiça. Mas isto é normal. Aqueles a quem chamamos profetas, creio eu, são os primeiros intelectuais dissidentes e são tratados como a maioria dos intelectuais também dissidentes: de forma muito mal. Eles são presos, levados para o deserto. O rei Acabe, epítome do mal na Bíblia, condenou Elias como um “inimigo de Israel”. Este é o primeiro judeu que se auto-odeia; é a origem do termo auto-ódio. Isto tem a ver diretamente com os nossos dias. Esta é a história dos intelectuais. A maioria deles são falsos profetas, bajuladores da corte. Os verdadeiros profetas formam a exceção e são mal tratados. O quão mal eles são tratados depende da sociedade. Como na Europa oriental, eles foram tratados de forma muito ruim. Na América Latina, foram mortos.
O senhor tem mencionado em entrevistas que uma transformação espiritual terá de acontecer para que um projeto socialista libertário tenha sucesso, e que este projeto vai, em si, fazer acontecer uma transformação espiritual na sociedade.
Tem de haver uma transformação espiritual entre as massas, que precisam estar dispostas a reconhecer que sua opressão não é uma lei da natureza. É isso o que os bispos latino-americanos estavam fazendo quando formaram as comunidades de base. Eles estavam tentando fazer com que os camponeses reconhecessem que podemos ter o nosso destino nas nossas próprias mãos. É isso o que o movimento dos direitos civis fez aqui [nos EUA]. É isso o que o movimento feminista fez. Esse movimento começou em pequenos grupos de conscientização, onde as mulheres conversavam umas com as outras e diziam: “Nós não precisamos aceitar este tipo de opressão”. Isso é um tanto dramático nos Estados Unidos. Existem problemas realmente graves aqui, os quais vimos na última eleição intercalar. Trata-se de um fenômeno marcante na história americana. Ela vai bem longe no tempo. Este sempre foi o país mais rico e seguro – e, às vezes, o mais perigoso – do mundo. Nos primeiros anos, o perigo existia para todos: escravos, americanos nativos, mexicanos. Ele então se expandiu, em 1898, ao Caribe, a Cuba, a Porto Rico, ao Havaí e às Filipinas. Na verdade, a expressão “segurança nacional” não é praticamente usada até 1930. E há um motivo para isso. Naquele tempo, os Estados Unidos estavam começando a se tornar global. Antes disso, o país era uma potência regional apenas – os ingleses eram a maior potência mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial, a segurança nacional estava em todo o lugar, porque basicamente nós éramos os donos do mundo, então a nossa segurança é ameaçada em todo o lugar. Não só em nossas fronteiras, mas em todo o lugar – portanto é preciso ter mil bases militares ao redor do mundo para “defesa”. Ao mesmo tempo, temos a maior segurança que qualquer outro país já teve. Junto com isso vem o medo. Os EUA é um dos países mais assustados do mundo. Isto remonta às colônias. Vejamos a Declaração de Independência. Uma das acusações contra o rei George III é que é que ele soltou contra nós os “índios selvagens e impiedosos” cuja forma de guerrear se dá através da destruição e do terror. Era Thomas Jefferson no poder! Ele estava lá, ele sabia que os ingleses selvagens e impiedosos eram os ingleses, mas alegou serem os índios “selvagens impiedosos” quem estava nos atacando. E, então, houve o medo de uma rebelião de escravos. Uma das razões para a produção insana de armas nos EUA remonta ao medo para com os índios e escravos. Quando se está esmagando as pessoas, elas poderão reagir, então é preciso se defender. E tem a ver diretamente com os dias de hoje. Consideremos o surto de ebola, por exemplo. As pessoas estão aterrorizadas. Acho que foi isto o que aconteceu nas eleições intercalares. É um país simplesmente muito assustado, o que faz ser extremamente fácil mobilizar as pessoas em direção à agressão e à violência. Tudo que se precisa fazer é dizer a elas que estamos sendo ameaçados e elas, imediatamente, se amontoam debaixo do guarda-chuva.
Em relação ao assunto do medo nos EUA, por que os católicos irlandeses de classe média começaram a votar nos republicanos no final dos anos 1960 e início dos anos 1970?
As políticas de transporte escolar incluindo negros e brancos como forma de aproximá-los mudou, de fato, as coisas em Boston. Na verdade, há certo sabedoria por trás disso em todo o país. É fácil ver a razão. Vejamos o caso de Boston. Este modelo de transporte escolar inter-racial foi organizado por progressistas de Harvard. Ele foi projetado para deter a segregação. Mas como fizeram isso? Enviavam crianças irlandesas que viviam no sul de Boston para Roxbury; enviavam crianças negras de Roxbury para o sul de Boston – e ninguém para dentro dos bairros onde os progressistas ricos viviam. É claro que esta iniciativa desencadeou conflitos. Um homem irlandês que trabalhava para a empresa telefônica que, finalmente, teve dinheiro para comprar uma casinha e mandar seus filhos para a escola numa boa vizinhança teve, de repente, seus filhos sendo enviados para Roxbury e crianças negras vindo para onde morava. Este homem ficou furioso. Era uma enorme mudança para o país, e houve muitas outras coisas como essa aconteceram. É daí onde surgem os Democratas por Reagan, brancos de classe média que votam geralmente no Partido Democrata. O modo de vida deles estava sendo afetado. O caso “Roe contra Wade” fez parte disso. O modo de vida deles estava sendo atacado por liberais, então começaram a odiar os progressistas e votar contra os seus próprios interesses. É por isso que temos pessoas trabalhadoras votando para destruir eles próprios. Isto é notável. Parece-se muito com o que está acontecendo na Inglaterra. As políticas do UKIP [sigla inglesa para o Partido pela Independência] são um tanto prejudiciais aos trabalhadores e, mesmo assim, é aí onde os seus votos se encontram, porque as pessoas estão com tanto medo “de eles” virem e tomar tudo de “nós”. O medo nos EUA é particularmente dramático entre os irlandeses, que foram tratados, de forma horrível, quando vieram para cá. No final do século XIX em Boston, era possível ver placas que diziam: “No Dogs or Irish”, ou seja, que não havia nem cão nem irlandês na casa. Por fim, os irlandeses começaram a entrar para o mainstream e se tornaram influentes, mas no passado foram tratados praticamente como os afro-americanos. Agora, eles mudaram a ponto de estarem com medo “deles”. Este é um país incrivelmente racista. Vejamos as votações, os estados que votam predominantemente nos democratas ou nos republicanos. É um tanto parecido com a Guerra Civil. Os Estados Confederados da América são todos vermelhos [republicanos]. Por que eles se tornaram republicanos? Por causa do movimento dos direitos civis. Então eles foram de democratas para republicanos.
Há alguma relação entre este racismo e os movimentos nacionalistas em expansão na Europa?
A atual situação está muito assustadora, e estes movimentos estão em toda parte. A situação na França é horrível. A Europa oriental é a pior. A Hungria está sendo administrada por um partido praticamente neonazista [Jobbik]. Não se via o racismo na Europa porque, no passado, ele era homogêneo. Quando todo mundo é loiro de olhos azuis, não se vê o racismo. Mas tão logo começou a imigração, ele se apresentou de forma muito dramática. Muitas pessoas estão saindo da África, que é uma história de horror completa – em grande parte por causa das ações europeias ao longo dos séculos. As pessoas estão fugindo daí para a Europa. O primeiro lugar a que vão é a Itália. Esse país está meio que resgatando as pessoas, mas já anunciou recentemente que quer parar de assim agir, passando a responsabilidade para a União Europeia. A EU já declarou que não irá fazer grandes esforços nesse sentido. A Inglaterra disse que não fará coisa alguma. Então, se centenas de milhares de pessoas morrem no mar, o problema é delas – fugindo de séculos de agressão europeia. Nós estamos fazendo a mesma coisa. As pessoas que fogem da América Central, do que estão fugindo? [Chomsky aponta para a pintura de Oscar Romero] Coisas desse tipo. Bem próximo de Boston há uma comunidade maia. Hoje, aquela mulher ali [Chomsky aponta para uma foto emoldurada] acontece de viver com minha filha. Ela é uma refugiada maia. Elas estão fugindo do rescaldo do genocídio virtual nas terras altas do começo dos anos 1980 que os EUA apoiaram. E nós recolhemos estas pessoas na fronteira e as jogamos de volta. Há poucos dias houve um relatório da Human Rights Watch condenando os EUA por mandar de volta os refugiados – mulheres e crianças. É uma verdadeira história de horror. Atualmente, maioria dos refugiados vem de Honduras. Em 2009, os militares desse país tiraram do poder o presidente com um golpe de Estado. Então, realizaram uma eleição, que foi reconhecida por Obama, mas praticamente por ninguém mais. Desde então, Honduras tornou-se a capital das mortes no mundo; há horríveis atrocidades, há infanticídio, o assassinato de mulheres só aumenta e as pessoas estão fugindo em desespero. Elas vêm para a fronteira, e nós as colocamos em caminhões e, depois, as enviamos de volta para o México para morrerem. E aqui temos pessoas com medo dos imigrantes ilegais – é isto o que estamos fazendo. É muito chocante.
Sempre que o senhor é entrevistado, parece que lhe são feitas sempre as mesmas perguntas. Alguma vez já ficou cansado disso? O que lhe mantém na ativa?
Ver imagens como aquela dali [Chomsky aponta de novo para a pintura de Romero]. Eu gostaria que me tivessem perguntado mais sobre este assunto. Realmente gostaria.
Esta entrevista foi editada para fins de extensão e clareza. Foi feita em 7 de novembro de 2014.
Nota:
[1] Chomsky está se referindo aos esforços do Departamento de Estado americano, iniciados no começo da década de 1960, para reorientar os seus programas de assistência militar de ajudar às forças de segurança dos países latino-americanos de se defenderem contra a agressão externa indo no sentido de suprimir a “subversão” interna. Ver o testemunho, de 1963, do secretário de Defesa Robert S. McNamara diante do subcomitê sobre as apropriações, organismo da Câmara dos Representantes. (Hearings, “Foreign Operations Appropriations” para 1964, 88º Congresso, primeira sessão [maio, 1963], Parte 2.) [Nota do entrevistador]
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“A opressão não é uma lei da natureza”. Entrevista com Noam Chomsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU