Por: Cesar Sanson | 19 Abril 2012
Mais de 120 anos após o fim da escravidão, regularização das áreas remanescentes de quilombos caminha a passos lentos. Quilombolas denunciam mortes em conflitos pela posse das terras.
A reportagem é de Mariana Santos e publicado pelo sítio Deustche Welle, 18-04-2012.
Dezenas de quilombolas de várias partes do país começaram a desembarcar em Brasília no início desta semana. Eles querem garantir um bom quórum – e muito barulho – numa grande manifestação planejada para esta decisiva quarta-feira (18/04) em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF).
A suprema corte julgará uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) impetrada em 2004 pelo então PFL, atual Democratas (DEM). Na ação, o partido questiona o decreto 4887 de 2003, o qual define o procedimento de regularização das terras dos quilombolas.
A Constituição já reconhece o direito dessas comunidades à propriedade definitiva das terras que ocupam, mas o DEM reclama que a regulamentação foi feita por meio de decreto, assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem a participação do Legislativo.
Autodefinição
Um dos pontos questionados pelo DEM em sua ação é o critério de "caracterização mediante autodefinição da própria comunidade", estipulado pelo decreto presidencial, para estabelecer quem é quilombola e tem, portanto, direito à posse da terra.
"O partido avalia que o critério utilizado foi equivocado, o que pode levar a distorções. Para o Democratas, o critério deveria ser um estudo histórico-antropológico", justifica o DEM por meio de nota, ressaltando que o partido "não é contra os quilombolas, mas não concorda com o critério da auto-atribuição, por poder recair em distorções da realidade verificada no período imperial".
No entanto, segundo lideranças quilombolas, a necessidade de apresentação de documentos que certifiquem a origem quilombola de uma pessoa, ou mesmo que comprovem a ocupação da terra, seria, quando não impossível, extremamente difícil, já que os quilombos surgiram na clandestinidade, para abrigar escravos fugitivos.
Para o geógrafo Rafael Sanzio dos Anjos, coordenador do projeto Geografia Afrobrasileira, da Universidade de Brasília, o argumento do DEM é vazio. "Esta é uma questão meramente técnica. Temos vários setores do governo que trabalham com isso", afirma o professor.
Quilombo do Curiaú, no estado do Pará
Constantes conflitos
Reginaldo Bispo, um dos coordenadores da Frente Nacional em Defesa da Titulação dos Territórios Quilombolas, diz que alguns documentos de terras simplesmente não existem ou se perderam com o tempo. Bispo, que está em Brasília para a manifestação desta quarta-feira, conta que a insegurança é grande nas áreas ocupadas pelas comunidades negras devido a constantes conflitos com latifundiários na briga por terra para o plantio de monoculturas, como soja, cana e milho.
"Nos primeiros três meses deste ano, oito lideranças quilombolas foram assassinadas. Outras cem estão ameaçadas de morte. O governo sabe disso, mas até agora, nenhuma solução foi tomada", reclama Bispo. "E, se o decreto for derrubado, a situação vai se agravar ainda mais."
Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que, em 2011, foram assassinados quatro quilombolas em cerca de cem conflitos por terra. A maior parte das mortes acontece no Maranhão, que concentra cerca de um terço das comunidades quilombolas.
Título da terra
Apesar de terem o direito ao título de propriedade de suas terras assegurado desde 1988 – previsto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal – apenas 190 comunidades quilombolas das aproximadamente 3.000 espalhadas pelo Brasil têm o documento de posse em mãos. Nas comunidades que conseguiram o título da terra vivem cerca 12 mil famílias.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), além do Maranhão, é grande o número de comunidades quilombolas na Bahia e em Minas Gerais, estados que registraram intenso uso de escravos em suas atividades econômicas nos séculos 16, 17 e 18. Os únicos estados brasileiros que ainda não apresentam demanda para registro territorial são Acre e Roraima.
O antropólogo Roberto Alves de Almeida, da Coordenação-Geral da Regularização de Territórios Quilombolas do Incra, admite que são muitas as dificuldades para fazer cumprir o direito dos quilombolas à posse definitiva de suas terras. Desde 1988, vários decretos presidenciais se sucederam e dificultaram o andamento dos processos de titularização. Na prática, até hoje muito pouco acabou sendo concluído.
Almeida ressalta, por exemplo, que um decreto de 2002 chegou a estabelecer uma espécie de usucapião (ocupação ininterrupta da terra) de no mínimo cem anos – de 1888, ano da abolição da escravatura, até 1988, promulgação da Constituição – para que as famílias quilombolas pudessem reinvindicar a propriedade. Nos casos convencionais, o usucapião pode ser solicitado após 15 anos.
Desde 2003, o Incra vem identificando áreas e realizando os processos de titularização com base na autodeclaração das comunidades. Segundo Almeida, os registros são dados para as associações comunitárias. "Essas entidades já têm prática do uso comum da terra. Cada família detém o controle privado de um sítio – uma casa, um quintal – de uso do núcleo familiar. E elas estabelecem as próprias regras para uso das áreas coletivas. Elas sempre viveram assim", explica o antropólogo.
Ele ressalta ainda a relação da preservação da cultura quilombola com a titularização das propriedades. "É regularizando a terra e garantindo território que eles conseguem manter esse modo de vida distinto", afirma.
Brasil escravocrata
Para os apoiadores dos quilombolas, o julgamento do STF traz à tona algo maior do que apenas uma disputa jurídica. Em nota intitulada Que sob a toga dos ministros do STF não se esconda nenhum escravocrata, o presidente da CPT, Dom Enemésio Lazzaris, afirma que os "novos escravocratas" – boa parte, segundo ele, reunida na bancada ruralista do Congresso Nacional – estariam usando de ações diretas "ou utilizando de trincheiras, assim chamadas legais", para impedir o reconhecimento de territórios historicamente ocupados por povos não apenas quilombolas, mas também indígenas.
"Está em jogo [no STF] o direito de populações que historicamente foram discriminadas, massacradas, jogadas à margem da sociedade", afirma a nota assinada por dom Enemésio.
O geógrafo Sanzio dos Anjos afirma que a mentalidade escravocrata surgida no século 16, com a chegada dos primeiros escravos africanos ao Brasil, ainda está muito presente na sociedade. Para ele, as dificuldades para o reconhecimento das terras quilombolas revelam os "valores coloniais tradicionais preconceituosos brasileiros".
Sanzio ressalta ainda que o Brasil foi o penúltimo país a sair do escravismo, antes apenas de Cuba, e por uma imposição internacional. Ele lembra que os escravos sustentaram a economia brasileira durante mais de três séculos, dispondo não apenas da mão de obra, mas também da tecnologia necessária – como no caso da exploração de metais preciosos. Para ele, o Estado tem uma dívida social com os descendentes dessas populações.
"Após a Lei Áurea, não houve nenhuma politica pública para amparar ou dar um suporte territorial para que essas populações se inserissem. Pelo contrário, uma parte foi retornada à África, numa estratégia maior de embranquecimento da população, incentivando a entrada de migrantes europeus no país", afirma.
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Titularização de terras quilombolas ainda enfrenta resistências - Instituto Humanitas Unisinos - IHU