15 Outubro 2025
Este suposto acordo de paz constitui uma manobra dos Estados Unidos para salvar seu grande vassalo no Oriente Médio e, com ele, o projeto comercial, econômico e político que haviam desenhado para a região.
O artigo é de Ignacio Gutiérrez de Terán Gómez-Benita, professor do Departamento de Estudos Árabes e Islâmicos e Estudos Orientais da Universidade Autônoma de Madri, publicada por El Salto, 15-10-2025.
Eis o artigo.
Talvez seja esta a única imagem que expressa uma verdade nos dias que se seguiram ao chamado plano de paz dos Estados Unidos para Gaza: dezenas de milhares de pessoas, com trouxas, malas velhas ou simplesmente com a roupa do corpo, retornando às ruínas da cidade de Gaza. Ou, se as deixarem, seguindo mais ao norte, para Beit Hanun e Beit Lahiya, onde o grau de destruição supera até mesmo o sofrido pela capital da Faixa.
On Tuesday, October 7, a group of Spanish photojournalists assembled outside Parliament to honour the over 240 journalists who have lost their lives in Israeli strikes on Gaza during the past two years.
— TRT World (@trtworld) October 8, 2025
Dressed in press vests and helmets, and clutching their cameras, the… pic.twitter.com/98DPV6TqC1
As primeiras estimativas indicam que três em cada quatro casas estão inabitáveis; estradas, praças, avenidas, reservatórios de água, repetidores elétricos… tudo o que poderia servir para abrigar alguém e dar uma mínima sensação de segurança foi destruído pela passagem das hordas do regime de Tel Aviv.
Nas últimas semanas — como demonstram os vídeos gravados pelos próprios soldados israelenses em tom “festivo”, e que a imprensa ocidental, como tantas outras coisas, nunca mostra — eles se dedicaram a explodir edifícios inteiros com carros carregados de explosivos. Naturalmente, esses automóveis pertenciam a residentes palestinos que ainda estavam por ali. A onda expansiva levou junto edifícios com seus alicerces, calçadas, ruas e fiações elétricas.
Mas o povo de Gaza é assim: resistente como o figo-da-índia de que falava o poeta, e ama sua terra. Natural: eles não são colonos nem forasteiros que aparecem e desaparecem da Palestina ocupada quando se lembram de que fazem parte do “povo escolhido” e têm um suposto direito imperial de ficar com uma terra que não lhes pertence, inventando uma infinidade de histórias estúpidas e insuportáveis sobre um mandato divino para tomá-la de seus legítimos donos. Muitos cidadãos israelenses têm outra nacionalidade, porque nasceram em outros lugares ou mantêm vínculos com os países onde nasceram seus pais; os moradores de gaza, não. Eles vêm sendo expulsos de sua terra há décadas e, por isso, resistiram nesses dois anos como nenhum outro povo seria capaz de fazer. O sionismo não descansa, sobretudo quando está mergulhado em uma etapa de colonização total — não só em Gaza, também na Cisjordânia.
A expulsão — objetivo final dessa campanha de genocídio — foi contida, em parte, pela própria brutalidade dos dirigentes sionistas e sua incapacidade de compreender os limites de sua relação com Washington. Ver todo aquele povo, sem nada, mas com tudo ao se agarrar à sua terra, é a imagem perfeita do horror que esteve prestes a acontecer, não fosse a tenacidade dos gazenses. Eles frustraram o plano do regime de Tel Aviv de forçar a saída da maior parte da população e completar o esvaziamento da Faixa, à espera de fazer o mesmo, por outros meios, na Cisjordânia.
Os Estados Unidos são um império — Israel, uma extensão do projeto colonial europeu e ocidental no Oriente Médio — e têm suas próprias prioridades. Por mais que o presidente norte-americano tenha falado de projetos turísticos em uma nova “Riviera mediterrânea” e insinuado levar os gazenses a lugares tão improváveis quanto Indonésia, Sudão do Sul ou Líbia, a política dos impérios consiste em atender a muitos interesses e aliados ao mesmo tempo, buscando equilibrá-los conforme a vontade da capital imperial.
E esvaziar Gaza, deixando de lado a ideia absurda de espalhar os palestinos pelo mundo, implicaria encher a península do Sinai com dezenas de acampamentos de refugiados. O governo egípcio sabia que um fluxo desse tamanho levaria a uma crise interna enorme e, possivelmente, à queda do regime. E se há algo que os regimes árabes alinhados a Washington temem mais do que as ameaças dos EUA, é perder o controle interno.
O Cairo compreendeu, desde 8 de outubro de 2023, que o objetivo final era expulsar o maior número possível de habitantes de Gaza. E ainda que desejasse a destruição de seu “inimigo” Hamas e das milícias palestinas, se opôs ao grande objetivo de Netanyahu. Este, com seus discursos e mapas sobre o “Grande Israel” — que incluiria partes generosas da Síria, Líbano, Jordânia, Iraque, Egito, e até Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos — espalhou pavor entre os governantes árabes aliados dos EUA. Com um aliado assim, pensam eles, qualquer dia ele poderá reivindicar que Israel se estenda do Nilo ao Eufrates — e então, para que servem os demais?
Depois veio o debate dentro dos EUA sobre até que ponto sua política externa está subordinada aos interesses sionistas. Nos anos 1930, o projeto sionista importava pouco em Washington; nos anos 1950, durante a crise de Suez, Israel não era prioridade. O fato de ser hoje central mostra a evolução da concepção imperial americana no Oriente Médio. Mas o assassinato de Charlie Kirk, ativista pró-Trump, reacendeu esse debate — entre outras coisas porque Kirk, como tantos outros conservadores, dizia que já era hora de deixar de subordinar a política externa dos EUA a Israel. As suspeitas sobre a suposta participação do Mossad na sua morte forçaram Netanyahu a negar qualquer envolvimento. Mas a polêmica estava lançada entre setores nacionalistas: por que continuar apoiando incondicionalmente um Estado cujas políticas nem sempre servem aos interesses do império?
Por tudo isso — porque este suposto acordo de paz é uma manobra dos EUA para salvar seu vassalo no Oriente Médio e seu projeto econômico-político para a região — estamos diante de um conjunto de ficções. O objetivo é restaurar a força e o prestígio perdidos do regime de Tel Aviv. Os governos ocidentais já não sabem como conter a crescente indignação de setores significativos de suas opiniões públicas, e os aliados árabes temem a reação popular diante de sua passividade, quando não conivência, com o cerco brutal do sionismo sobre Gaza.
Os vinte pontos do chamado “plano Trump” são ambíguos e vagos, exceto no que realmente interessa: a libertação dos prisioneiros israelenses em mãos de grupos armados palestinos. O restante permanece uma incógnita.
As tropas israelenses não se retiraram — nem se retirarão — completamente da Faixa de Gaza. O documento oferece brechas suficientes para que o regime de Tel Aviv repita seu modelo de “trégua” no Líbano, vigente desde novembro de 2024: arrogar-se o direito de decidir se a outra parte cumpre suas obrigações e, caso contrário, voltar a bombardear “de forma seletiva”. A qualquer momento podem interromper os comboios de ajuda humanitária e fechar Gaza hermeticamente. Não se sabe ainda quem administrará localmente a Faixa; mas o regime de Tel Aviv, evidentemente, se reserva o direito de decidir quem e como fará isso. Um ponto espinhoso será o desarmamento do Hamas e de outras milícias — algo que certamente gerará pressões intensas dos EUA.
A pergunta é quando o governo israelense tentará recomeçar sua ofensiva em Gaza e até que ponto os dirigentes norte-americanos o impedirão. Os rostos sorridentes dos líderes sionistas em 13 de outubro, após a libertação dos soldados presos, os aplausos no parlamento israelense ao presidente Trump, os discursos triunfalistas… Nada disso esconde que, por ora, a grande aposta da “solução final” sionista foi neutralizada. Mas já voltamos a ouvir falar de bombardear Irã, atacar o Hezbollah no Líbano e os houthis no Iêmen.
O projeto sionista hoje sintetiza aquilo que Gore Vidal definiu como a base da política externa dos EUA no Oriente Médio: “guerra perpétua pela paz perpétua”. Ou seja, fazer a paz para continuar fortalecendo campanhas bélicas, expansão e tensão permanentes. A imagem política dos EUA na região sempre foi cheia de falsas aparências; Trump apenas a degradou a um espetáculo de declarações rimbombantes, mentiras e contradições. A tenaz resistência dos cidadãos gazenses guarda verdades. Não contam muito, nem importam para os poderosos — mas possuem o valor incomensurável da autenticidade.
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