29 Julho 2025
Quinze meses após início das inundações, cidades gaúchas ainda têm dificuldade em reerguer equipamentos e filas estão enormes. Dogmas neoliberais de Eduardo Leite atrasam o processo. Mas há ensinamentos importantes, como a criação de unidades resilientes
A reportagem é de Gabriel Brito, publicada por Outras Palavras, 28-07-2025.
As enchentes que mataram 184 pessoas no Rio Grande do Sul ainda contam 25 desaparecidos e deixaram cerca de 735 mil desalojados. O total de 2,4 milhões de afetados não só ficarão para sempre na memória coletiva como ainda afetam o cotidiano do Rio Grande do Sul.
É um capítulo brutal do “novo ciclo climático que veio para ficar e serve de exemplo para o Brasil todo”, como resumiu Diego Espíndola, diretor executivo do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul – Cosems/RS, ao Outra Saúde.
No entanto, sua mensagem ainda parece longe de assimilação pela classe política brasileira. Em âmbito estadual, a reconstrução caminha lentamente. Nacionalmente, a aprovação do PL da Devastação e possivelmente outros projetos de avanço do capital sobre territórios ainda não explorados economicamente parecem colocar o país numa rota suicida.
“O governo estadual não apresentou planos consistentes nem durante a pandemia nem após as enchentes. O ‘Plano Rio Grande’, proposto por entidades da sociedade civil para gerir recursos de reconstrução – inclusive na saúde – está parado. Enquanto isso, só um terço das 467 estruturas de saúde afetadas foi recuperado”, relata Rosângela Dornelles, conselheira e presidente da Comissão de Fiscalização do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul.
Médica do SUS na região metropolitana de Porto Alegre, Dornelles traz um panorama social dramático. Foi causado, em boa parte, pela letargia de Eduardo Leite, um governador que, a despeito de ter falado em “Plano Marshall” enquanto a tragédia estava à flor da pele, não abre mão dos dogmas neoliberais na gestão do Estado.
Como denunciado por Fernando Ritter, secretário de saúde de Porto Alegre, cidade comandada pelo aliado Sebastião Melo, Leite deixou de aplicar R$ 1,2 bilhão do piso mínimo de saúde. Ainda segundo Ritter, repassou serviços de média e alta complexidade para o município “sem estudo técnico aprofundado” e de forma “quase amadora”.
“O governo alega falta de recursos e dívidas acumuladas, mas contraditoriamente vemos investimentos em outras áreas, como carreiras públicas. Enquanto isso, a saúde sofre com a falta de leitos, equipamentos e profissionais. O governo federal tem feito sua parte: só em 2025, já repassou R$ 4,3 bilhões ao estado via fundo MAC (Média e Alta Complexidade), mas o governo estadual não complementa esse esforço”, explicou Rosângela Dornelles, que visitou o Ministério Público em Canoas, uma das cidades que até hoje mais sofre para se recuperar, em nome do Conselho.
A crítica de que Leite prioriza o setor privado na reconstrução do estado é colocada por parlamentares e setores de esquerda gaúcha desde o início. No que se refere ao SUS, os reflexos são duramente sentidos pela população. Segundo Dornelles, há uma sobrecarga que beira o insuportável no sistema público de saúde, tanto para profissionais como usuários.
“Trabalho diretamente em uma emergência, então vejo o caos diariamente. O perfil epidemiológico mudou: doenças controladas voltaram com força, agravadas pelo negacionismo vacinal. Pacientes esperam horas por atendimento, e muitos desistem – alguns morrem antes de conseguir uma consulta com especialistas. A demora para cirurgias eletivas é absurda”, sintetiza.
“Os municípios mais afetados pelas enchentes – como Canoas e Eldorado do Sul – perderam unidades de saúde essenciais. Um exemplo dramático foi o Hospital de Pronto-Socorro (HPS) de Canoas, que atendia toda a região dos Vales do Sinos, do Caí e do Paranhana. Quando uma estrutura dessa magnitude desaparece, o impacto é sistêmico: as filas, que já eram longas desde a pandemia, explodiram”, completa.
Para piorar, o estado lida como peso da reforma do IPE Saúde, o plano de saúde de funcionários públicos, cujos reajustes nos preços fizeram parte dos usuários migrarem para o SUS. “Uma falência não comunicada”, segundo Fernando Ritter.
Membro também da Associação Vida e Justiça, que luta por reparações a familiares de vítimas de covid e portadores de suas sequelas, Rosângela Dornelles destaca que o estado se deparou com uma nova hecatombe sobre seu sistema de saúde sem terminar de superar o peso da anterior, a pandemia.
Diante da ação de Leite, “os municípios acabam investindo além do mínimo constitucional na média e alta complexidade, mas isso esvazia a Atenção Básica – o que só piora as filas e a qualidade do atendimento”.
Apesar de tudo, a reconstrução dos equipamentos de saúde continua, também auxiliada pelo PAC, que em seu eixo de saúde prevê a construção de 800 novas UBS e reforma de outras milhares pelo país.
“Acredito que até o final do ano que vem teremos 100% das unidades de saúde do estado entregues. Muitas estão no PAC e outras também estão no projeto de reconstrução”, previu Diego Espíndola.
Aqui, o RS aparece como experiência fundamental para a criação de unidades resilientes, conceito recém adotado pelos governos e gestores. E, mais uma vez, a ação estatal se mostra fundamental para a adaptação do SUS ao novo ciclo climático referido por Espíndola.
“Apresentamos pesquisa de quanto as UBS consomem de energia para adotar uma matriz fotovoltaica, o que já conseguimos em 80% dos hospitais do estado. Tais projetos também podem ser financiados pelo Banrisul e nós queremos que esse projeto avance nas UBS, farmácias populares, CAPS e unidades de SAMU. São 15 mil unidades de saúde no estado e temos a chance de fazer essa ressignificação”, afirmou o diretor do Cosems-RS.
Para Rosângela Dornelles, os pactos políticos precisam ser reforçados. Resta saber se o apego ideológico a um modelo econômico em xeque por todo o mundo será deixado de lado pelo governador, que tenta se posicionar no cenário nacional sob o discurso de “fim da polarização”.
“Além das sequelas das enchentes, enfrentamos temperaturas extremas, surtos de doenças e desemprego – tudo isso pressiona o SUS. Enquanto o estado não assumir sua responsabilidade, continuaremos vendo usuários morrerem em filas e profissionais de saúde esgotados. A dignidade da população gaúcha está em jogo”, lamentou Rosângela Dornelles.