29 Março 2025
Representantes das comunidades quilombolas de Bocaina e Mocó, em Piatã, na Chapada Diamantina, acusam a CBPM (Companhia Baiana de Pesquisa Mineral), estatal comandada pelo governo petista da Bahia, de atuar como aliada da mineradora inglesa Brazil Iron em conflito socioambiental causado pela empresa.
A reportagem é de Daniel Camargos, publicada por Repórter Brasil, 27-03-2025.
Lideranças quilombolas da Chapada Diamantina, na Bahia, acusam a empresa estatal CBPM (Companhia Baiana de Pesquisa Mineral) de atuar em favor dos interesses da mineradora inglesa Brazil Iron em um conflito com comunidades da região.
Os quilombolas denunciam os ingleses por danos ambientais nas Justiças do Brasil e do Reino Unido. Há duas semanas, a corte estrangeira decidiu dar seguimento à ação movida na Europa.
“Não é só a empresa que nos ameaça. Agora, é também o Estado”, afirma Catarina Oliveira da Silva, presidente da associação de moradores da Bocaina, em Piatã (BA), onde as atividades da mineradora fizeram as paredes das casas racharem por causa das explosões da mina e a água de uma nascente ser contaminada. “A CBPM virou a garota de recado da Brazil Iron”, diz a quilombola.
Em agosto de 2024, a CBPM e a Brazil Iron firmaram um acordo por meio do qual a estatal baiana assumiu a responsabilidade de intermediar o diálogo entre a mineradora e a sociedade civil, o que inclui as comunidades quilombolas. A parceria, cujo objetivo declarado é viabilizar um projeto de quase R$ 30 bilhões da empresa inglesa, prevê também uma consultoria em questões burocráticas.
Os resultados dessa colaboração têm aparecido desde então. Em fevereiro deste ano, o governo estadual enviou um emissário à comunidade da Bocaina: o tenente-coronel da Polícia Militar da Bahia, Paulo Cezar Cabral, que ocupa o cargo de mediador de conflitos na gestão do governador Jerônimo Rodrigues (PT).
Segundo os moradores, durante reunião no pátio da escola da comunidade, o oficial questionou a legalidade do reconhecimento do território como quilombola e se posicionou em defesa dos interesses da mineradora. Vinte dias antes, Cabral havia treinado técnicos da CBPM sobre “interação social e mediação”, a pedido do próprio governador, conforme a estatal.
O próprio presidente da CBPM, Henrique Carballal, é testemunha da Brazil Iron na ação na Justiça do Reino Unido. Em carta ao tribunal inglês, ele buscou dissuadir os juízes do caso a aceitar a jurisdição. “Isso poderia desencorajar o investimento estrangeiro na Bahia”, escreveu, segundo resumo da ação publicado pela corte inglesa.
Na carta, Carballal, condenado na semana passada pela prática de “rachadinha” quando era vereador de Salvador, disse ainda que um juiz inglês não pode decidir sobre a titulação de terras brasileiras, que o judiciário brasileiro é “perfeitamente capaz de oferecer uma solução” e que a “soberania do Estado da Bahia e do Brasil está em risco”.
Em dezembro de 2024, a CBPM enviou um ofício ao Itamaraty solicitando apoio diplomático à mineradora inglesa no litígio com os quilombolas, revelou a revista Piauí. No documento, a estatal alegava que a ação internacional era uma afronta à soberania brasileira. O Itamaraty não atendeu ao pedido sob a justificativa de não ser atribuição da pasta intervir em disputas privadas no exterior.
O ofício foi assinado por Carlos Borel Neto, presidente interino da companhia na época, pois Carballal estava afastado para coordenar a campanha mal-sucedida do vice-governador Geraldo Júnior (PMDB) à Prefeitura de Salvador.
Em fevereiro de 2025, de volta ao comando da estatal, Carballal viajou à Alemanha com representantes da Brazil Iron. A comitiva visitou a sede da RWE, empresa alemã de energia renovável, para conhecer tecnologias de mineração sustentável que, segundo os envolvidos, serão aplicadas nos novos projetos na Bahia. A agenda incluiu também uma passagem por Londres, para encontro com a diretoria da mineradora.
A atuação da CBPM como intermediadora do diálogo entre a Brazil Iron e as comunidades é vista pelos quilombolas como uma forma de driblar uma determinação da Justiça inglesa. Em outubro de 2023, a Alta Corte de Justiça do país atendeu a um pedido de liminar feito por 103 quilombolas e proibiu representantes da mineradora de manterem contato com os moradores.
A decisão foi tomada após relatos de intimidação e pressão que passaram a acontecer especialmente depois que os quilombolas ingressaram com o processo judicial no Reino Unido contra a empresa inglesa, por danos ambientais. A mineradora nega qualquer irregularidade e questiona a legitimidade da corte estrangeira para julgar o caso.
“É preocupante que uma questão envolvendo brasileiros, sobre um empreendimento localizado em território nacional, contra uma empresa regularmente instalada e registrada no Brasil, seja julgada por um tribunal inglês“, afirma a Brazil Iron, que vai recorrer da decisão da Justiça inglesa de dar seguimento à ação (leia íntegra da resposta).
Na nota, a mineradora diz também que a afirmação de que esteja usando a estatal baiana para driblar uma decisão judicial é uma “alegação infundada”. “É coerente e corriqueiro que o governo do estado e a CBPM tenham interação com quaisquer comunidades no entorno de empreendimentos desse tipo.”
A Repórter Brasil procurou a CBPM e o governo da Bahia para responder às denúncias de que a estatal estaria atuando em favor da mineradora. Em sua resposta, a estatal não respondeu os questionamentos e os classificou como “tendenciosos” e “pautados por interesses escusos” (leia íntegra da resposta).
A reportagem também solicitou esclarecimentos sobre a atuação de Carballal e o ofício enviado pela CBPM ao Itamaraty, mas nem a estatal nem o governo baiano se manifestaram. O questionamento sobre a fala do tenente-coronel Paulo Cezar Cabral aos quilombolas também ficou sem resposta.
A Brazil Iron mantém projetos de extração de minério de ferro e infraestrutura pesada na Chapada Diamantina. O novo projeto, que inclui a parceria com a CBPM, promete explorar minério de ferro “verde” e investimentos de quase R$ 30 bilhões. O plano inclui a construção de uma mina, um ramal ferroviário e unidades siderúrgicas para produção. A previsão é gerar 55 mil empregos diretos e indiretos.
O presidente da CBPM descreveu a parceria com a Brazil Iron, que busca viabilizar o empreendimento, como “uma mudança de filosofia” da estatal: deixaria de atuar apenas na pesquisa mineral para também apoiar a produção e o desenvolvimento regional.
“As mesmas técnicas e condições que estão sendo aplicadas aqui [na Alemanha] serão implementadas no projeto que a Brazil Iron vai desenvolver na Bahia, entre elas, máquinas que, além de operarem na mineração, são capazes de recompor o solo, promovendo a recuperação ambiental e o reflorestamento das áreas exploradas”, escreveu Carballal em uma postagem feita da Alemanha em fevereiro deste ano.
Antes de assumir a CBPM, em junho de 2023, Carballal foi eleito vereador três vezes em Salvador pelo PT, PV e pelo PDT, quando foi líder do governo de Antônio Carlos Magalhães Neto na Câmara Municipal. Ele foi citado em delações da Odebrecht como destinatário de recursos não declarados na campanha eleitoral de 2010.
Na sexta-feira (21), Carballal foi condenado a três anos e nove meses de prisão pela prática de “rachadinha”, em decisão proferida pela juíza Virgínia Silveira Wanderley dos Santos Vieira.
Ele foi denunciado pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público da Bahia, em março de 2013, por ter se apropriado, total ou parcialmente, dos vencimentos de seus 19 assessores entre 2009 e 2010, durante o mandato de vereador. Em sua defesa, Carballal alegou que a denúncia carecia de provas e que não recebeu repasses ilícitos.
A promessa de explorar minério de ferro “verde” e de gerar empregos, no entanto, contrasta com os sentimentos de desconfiança e medo que dominam as comunidades quilombolas de Bocaina e Mocó, em Piatã.
Para Vanusia Santos, moradora da comunidade da Bocaina, a relação entre o Estado e os grandes empreendimentos, como o realizado pela Brazil Iron, privilegia os interesses das empresas. “O que a gente está vendo aqui é um grande incentivo [estatal] direcionado às demandas da mineração, enquanto as necessidades básicas das comunidades tradicionais continuam sem resposta. As vozes das comunidades locais, que há gerações preservam suas culturas e modos de vida, são muitas vezes ignoradas”, protesta.
A tensão entre a mineradora e os quilombolas não é recente. Desde a instalação da “lavra experimental”, moradores denunciam impactos da exploração mineral: além da poeira que cobre os telhados e invade os pulmões, há relatos de nascentes destruídas, contaminação do solo e assoreamento do rio Bebedouro. Um estudo da UFBA (Universidade Federal da Bahia), realizado em 2020, apontou a presença de metais pesados como chumbo, manganês e fósforo nas amostras de água do rio.
A Repórter Brasil esteve na comunidade em 2022 e relatou a circulação intensa de caminhões e explosões próximas às casas. Durante a fase de pesquisa, a movimentação de terra feita pela Brazil Iron teria assoreado uma nascente, segundo os moradores.
“Eles [Brazil Iron] começaram a degradar em cima do morro e o rejeito de minério foi descendo para a nascente”, detalha a líder quilombola Catarina Silva. Ela acompanhou a reportagem até o local para mostrar os efeitos do assoreamento provocado pela mineração, como retrata o vídeo a seguir.
Além da nascente, os quilombolas relataram outros impactos ocorridos ao longo dos anos de perfurações e detonações realizadas pela empresa inglesa. As comunidades reclamaram do barulho das explosões com dinamite, das rachaduras nas casas e da poeira excessiva gerada pelo tráfego de caminhões — fator associado a problemas respiratórios.
Na ocasião, o gerente de logística da Brazil Iron chamou a polícia para a equipe da Repórter Brasil e tentou apreender os equipamentos de gravação. Dias depois, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia) constatou ao menos 15 irregularidades na operação da mineradora e interditou suas atividades por tempo indeterminado. Entre os problemas identificados, estavam o assoreamento da nascente e a ausência de um plano de recuperação para as moradias danificadas.
Em paralelo ao processo no Reino Unido, a DPU (Defensoria Pública da União) ajuizou uma ação civil pública no Brasil contra a Brazil Iron e a Agência Nacional de Mineração, solicitando R$ 5 milhões em indenizações pelos danos causados às comunidades. A empresa, que se apresenta como líder em “mineração verde”, nega todas as acusações e afirma atuar dentro da legalidade ambiental.
Recentemente, a expansão da mineradora britânica na Bahia teve novo desdobramento, quando a Brazil Iron fez uma oferta de US$ 1 bilhão pela Bahia Mineração (Bamin), empresa controlada pelo grupo cazaque Eurasian Resources Group (ERG), segundo a agência Bloomberg.
A Bamin controla a mina Pedra de Ferro em Caetité, além de ativos estratégicos como o Porto Sul e um trecho da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol). A Brazil Iron assinou um acordo de confidencialidade com a ERG, enquanto Vale e governo federal também demonstraram interesse nos ativos.