Os homens voltam da floresta carregando os frutos da terra, e as crianças, ainda assustadas, tentam entender o mundo ao seu redor. Há uma urgência em proteger o que resta, em ensinar os mais jovens que a memória é uma arma. Cada canção entoada é um ato de desafio. Cada rito preservado é uma vitória contra o esquecimento.
Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil. Assim começava Clara Nunes no seu "Canto das três raças". Historicamente, o povo brasileiro em sua essência, no caso os povos originários, sempre buscaram e lutaram por seus direitos. Atualmente, assim como diz a música citada, de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo dessa terra quando pode cantar, canta de dor.
O artigo é de Marcelo Zanotti, historiador, mestrando em educação pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Era uma vez uma terra sem donos, um chão que respirava livre como os ventos que varriam seus campos e florestas. Nessa terra, antes do ferro, do asfalto e da ganância, viviam homens e mulheres que não conheciam o conceito de propriedade. Para eles, a terra era um corpo sagrado, uma mãe generosa que nutria sem pedir escritura. Seus rios tinham dono? Tinha dono o céu ou as estrelas? Os indígenas dançavam em volta do fogo e sabiam: a terra é de quem a respeita.
Então vieram os barcos. Barcos enormes, carregados de homens brancos, suas armas e um idioma estranho. Eles traziam espelhos, um brilho que ofuscava. Trazendo também a fé, mas não a piedade. O espelho dizia que a terra agora tinha dono: não mais a mãe sagrada, mas o lucro. Começava ali um embate que não termina, um combate que atravessa os séculos como uma cicatriz que insiste em reabrir.
No Paraná, nos confins de tantas matas desmatadas, há uma família com crianças Ava-Guarani que, ao invés de brincar, corre por entre tiros e gritos. O que já foi um lar hoje é uma barricada. O branco, sempre armado, exige: “Saia!”. A criança não entende por quê. Seu avô explica: “É porque esquecem que somos parte desta terra. Eles acham que somos menos que gente.”
No Planalto Central, a “PEC da Morte” ecoa pelos corredores do poder. Um papel assinado pode apagar memórias e selar desterros. Quantos não foram à luta? Quantas vozes indígenas clamaram por respeito? Mas as vozes enfrentam um paredão de ouvidos surdos, um sistema erguido para conservar os interesses de poucos em detrimento dos muitos. Não é só a terra que querem. Querem a alma, a cultura, os costumes. Querem enterrar também o modo de existir dos povos originários.
“Por que não respeitam a cultura indígena?”, pergunta a criança, com a inocência de quem ainda acredita em justiça. Talvez porque o respeito demande humildade, e o branco não sabe curvar-se. Talvez porque a cultura indígena nos lembre do que fomos, do que ainda podemos ser: filhos da natureza, não seus algozes. O branco, que se veste de progresso, teme esse espelho. Ver-se como colonizador é desconfortável.
O avô Ava-Guarani, em sua sabedoria de folhas e rios, senta-se na beira da mata e observa. Ele sabe que a luta nunca foi apenas por terra. É por dignidade. É por futuro. Sua neta, ainda confusa, pergunta: “Eles nunca vão parar, vovô?” Ele suspira. “Não sei, minha filha. Mas enquanto tivermos pés para andar e voz para cantar, continuaremos lembrando a eles que estamos aqui.”
A noite cai, e na aldeia resiste um fogo que nunca se apaga. Em volta dele, mulheres preparam alimentos enquanto cantam histórias antigas. Os homens voltam da floresta carregando os frutos da terra, e as crianças, ainda assustadas, tentam entender o mundo ao seu redor. Há uma urgência em proteger o que resta, em ensinar os mais jovens que a memória é uma arma. Cada canção entoada é um ato de desafio. Cada rito preservado é uma vitória contra o esquecimento.
No entanto, o inimigo muda de rosto. Se antes eram os colonizadores com suas armaduras, agora são os engravatados com suas leis. Se antes vinham com espadas, hoje chegam com tratores. A devastação tem outro nome, mas o efeito é o mesmo: expulsar, destruir, calar. E mesmo assim, os povos originários permanecem. Sua força é um milagre cotidiano, uma reafirmação de que existir é resistir.
No horizonte, a alvorada traz tanto esperança quanto incerteza. Será possível um dia recuperar a harmonia perdida? Será que o homem branco aprenderá a ouvir a terra e os que dela cuidam? Enquanto isso, a lógica do lucro avança, devorando o que encontra pela frente. Mas há também aqueles que acordam para a luta, que reconhecem que a causa indígena é também a causa de todos que desejam um futuro onde a vida prevaleça sobre a ganância.
E assim seguem. O branco escreve leis, mas os indígenas escrevem resistência na terra. De tempos em tempos, um massacre. De tempos em tempos, um ato heroico. Há derrotas, mas também há vitórias. E a cicatriz que nunca fecha é também a marca da esperança: um lembrete de que a luta pela terra é, acima de tudo, a luta pelo que nos faz humanos. E enquanto houver voz para contar a história, enquanto houver mãos para plantar o futuro, os povos originários continuarão. Porque a terra, mesmo ferida, ainda canta, e seu canto ecoa no coração de quem sabe ouvir.