10 Janeiro 2025
Está já disponível a nova tradução experimental do livro de Jó, no âmbito do projeto dinamizado pela Conferência Episcopal Portuguesa. O livro de Jó é um dos mais reconhecidos da Bíblia, que conta a história das “circunstâncias dolorosas de um ser humano justo e bom, que, depois de ter sido privado de todos os seus bens, filhos e saúde, viu premiada a firmeza da sua fé”, como refere uma nota do Secretariado Nacional da Liturgia (SNL) enviada ao 7MARGENS.
A reportagem é de António Marujo, publicada por 7MARGENS, 03-01-2025.
A narrativa “espelha a experiência do ser humano de todos os tempos”, de um “incompreensível silêncio de Deus” perante o sofrimento que atinge um inocente, “um ser humano bom e íntegro”. Nela, “autores sucessivos inseriram uma longa série de diálogos e reflexões sobre uma das questões mais incisivas: a da justiça divina perante o sofrimento do justo e inocente”, acrescenta a nota.
Na introdução ao livro de Jó que faz na sua tradução da Bíblia, editada pela Quetzal, Frederico Lourenço recorda o poeta oitocentista francês Lamartine, que dizia que o livro de Jó é “o monumento mais sublime da alma humana”. No entanto, acrescenta Lourenço, “este texto magnífico (que na sua estonteante beleza literária e na sua assombrosa profundidade filosófica esgota todos os superlativos) está longe de patentear os traços da perfeição”. O que, entre outros elementos, remete para o fato de o livro ser “um texto compósito, com diferentes autorias”.
A comissão de tradução mobilizada pelo SNL recorda também que o livro recebe o nome da personagem principal, “um tal Jó, ‘servo de Deus’”, mas “não se sabe quem foi o autor do livro, nem em que época ele apareceu”.
“O livro é composto por um longo diálogo poético, precedido e seguido de uma breve narrativa em prosa, centrada numa descrição da identidade do protagonista, da maneira como foi colocado à prova e finalmente recompensado pela sua justiça”.
Na obra Bíblia – O Livro dos livros (edição Expresso), o padre e biblista Joaquim Carreira das Neves (1934-2017) considerava também o livro de Jó como uma “peça literária única”. E escrevia, sobre o protagonista:
“Jó não é um judeu puro, mas um herói proveniente de uma terra longínqua. (…) Jó foi muito rico e muito feliz, mas num abrir e fechar de olhos, caiu na maior das misérias e desgraças. Tem grandes amigos sábios-teólogos, Elifaz de Teman, Bildad de Chua e Sofar de Naamá, que, de amigos se tornam inimigos ao interpretarem a sua desgraça como castigo divino, segundo a teodiceia clássica dos judeus e não judeus baseada na justiça retributiva”.
Mas na construção desta narrativa, acrescentava Carreira das Neves (na obra reeditada pela Editorial Franciscana), o texto “serve-se duma velha lenda sobre um Jó justo e reto” que foi sendo construída entre os séculos X e III antes de Cristo.
A experiência do sofrimento incompreensível que atinge Jó “é revista à luz dos parâmetros da tradição bíblica da retribuição do comportamento humano, onde o sofrimento era considerado como uma punição do pecado”, diz ainda a nota dos tradutores desta versão. “Esta concepção é partilhada pelos três amigos de Jó, que dominam o drama no interior do livro, e por um quarto sábio que se propõe oferecer a Jó sabedoria e compreensão. Os argumentos esgrimidos em defesa de uma justiça intocável de Deus e a alegação de que o sofrimento do ser humano é sempre consequência de uma culpa é contestada por Jó”.
Também o protagonista deste livro é “incapaz de compreender o sofrimento do inocente”, insurgindo-se “com palavras veementes que emergem do coração da sua condição humana sofredora, dirigindo a Deus um grito lacerante, pedindo uma palavra que explique o agir de Deus, uma compreensão que o ajude a entender o seu sofrimento e um defensor que medeie a sua causa junto de Deus”, dizem os tradutores.
Um outro comentário ao livro de Jó foi publicado em 2001 pelo cineasta Manoel de Oliveira, na edição da Bíblia da Três Sinais Editores. Nessa altura, o realizador de Benilde ou a Virgem Mãe estava a preparar o seu filme O Princípio da Incerteza. “Com efeito, na vida nada se poderá ter por certo-certo”, escrevia. “Mas a Fé de Jó em Deus era verdadeira e, por mais submetido a torturas físicas e morais, por mais submetido às tentações da descrença, por mais que fosse inquietado pela mulher, sua esposa, nunca Jó foi abalado no seu princípio da certeza”. E Jó, acrescentava o cineasta, vem à luz do dia “justamente para prevenir os insensatos da sua insensatez”.
Na nota dos tradutores agora divulgada, destaca-se que Jó e os seus amigos têm “Deus como horizonte”, mas a partir de ângulos diversos: “Os amigos são pela defesa teórica da justiça divina, Jó é pelo questionamento árduo e veemente do sofredor”. E os seus diálogos ou monólogos “terminam sem uma resposta”. No fim, “Deus, desafiado por Jó, irrompe na narrativa, não para responder diretamente às muitas perguntas de Jó, mas para colocar diante dele o mistério insondável do seu poder criador”.
A comissão de tradução, composta por 34 especialistas e coordenada pelo padre e biblista Mário de Sousa, de Algarve, tem vindo a publicar, desde 2019, as suas versões da tradução, que sujeita à apreciação pública – os textos estão disponíveis para download a partir da página do projeto.
Desde agosto de 2021, em cada mês há um livro da Bíblia que é disponibilizado em formato digital naquela página. Estão neste momento disponíveis já todos os 27 livros do Novo Testamento e 22 do Antigo Testamento. Em 2019, tinha sido publicado o volume com Os Quatro Evangelhos e os Salmos, que será revista e atualizada em função dos comentários recebidos. Esta primeira escolha para publicação em livro justificava-se, dizia a comissão, pelo “lugar especial que os Evangelhos e os Salmos ocupam na liturgia cristã”, por serem os textos bíblicos lidos com mais frequência.
Qualquer leitor é agora convidado a contribuir com comentários, de modo a melhor a compreensibilidade do texto, diz a nota do SNL. Para isso, os leitores e interessados devem enviar os seus contributos para o endereço Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
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O “incompreensível silêncio de Deus” diante do sofrimento já está traduzido e espera comentários - Instituto Humanitas Unisinos - IHU