Novo Ensino Médio está alinhado a uma visão neoliberal e aprofundará as desigualdades educacionais. Entrevista especial com Ângela Both Chagas

Para a doutora em Educação, esta reforma representa uma política autoritária e reduz a autonomia das escolas

Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado

Por: André Cardoso e Elstor Hanzen | 10 Janeiro 2025

Após a luta de estudantes, educadores e movimentos sociais, a reestruturação do Ensino Médio, a partir da Lei nº 14.945/2024, conseguiu amenizar alguns dos danos promovidos pela Lei nº 13.415/2017, que institui o Novo Ensino Médio. “Não houve uma revogação integral da Lei de 2017, mas pontos importantes foram alterados, como a ampliação da carga horária da Formação Geral Básica, comum a todos os estudantes, e a recomposição da obrigatoriedade de componentes curriculares como História, Sociologia, Filosofia, Artes, Educação Física, Biologia”, afirma a doutora em educação, Ângela Both Chagas.

Em entrevista por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a especialista, entretanto, pontua que a política segue problemática: há um alinhamento de toda reforma com uma visão neoliberal, de esvaziamento de conhecimentos científicos e culturais. “O Novo Ensino Médio representa uma política do autoritarismo materializada no processo de implementação da rede estadual do Rio Grande do Sul, reduzindo a autonomia das escolas e aprofundando as desigualdades”, pontua.

Outro alerta que Ângela faz é para o aumento das desigualdades educacionais – e, consequentemente, sociais – a partir de uma educação voltada à precarização da vida dos estudantes. “Entre as consequências dessa política, está o desalento dos estudantes em relação ao futuro, já que o Novo Ensino Médio não prepara nem para a continuidade dos estudos, nem para a inserção qualificada no mundo do trabalho”.

Ângela Chagas | Foto: Alice Vergueiro

Ângela Both Chagas é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pesquisadora de pós-doutorado na Faculdade de Educação da UFRGS, com bolsa CNPq, e graduada em Pedagogia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e em Jornalismo pela UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU – A Lei nº 14.945/2024 instituiu a Política Nacional de Ensino Médio, em substituição à Lei nº 13.415/2017. Quais são os principais pontos de mudança na legislação? Em que consiste a reestruturação da política de Ensino Médio?

Ângela Both Chagas – Para iniciar, considero importante contextualizar que a reestruturação da política de Ensino Médio é o resultado da mobilização de estudantes, professores, pesquisadores e movimentos sociais pela revogação da Lei nº 13.415/2017, conhecida como Novo Ensino Médio. Diante dos protestos nas ruas e dos resultados de pesquisas que evidenciaram os prejuízos para a formação dos estudantes, o Ministério da Educação apresentou um Projeto de Lei que, entre avanços e recuos na disputa política no Congresso Nacional, resultou na Lei nº 14.945, sancionada no ano passado. Não houve uma revogação integral da lei de 2017, mas pontos importantes foram alterados, como a ampliação da carga horária da Formação Geral Básica, comum a todos os estudantes, e a recomposição da obrigatoriedade de componentes curriculares como História, Sociologia, Filosofia, Artes, Educação Física, Biologia, entre outros.

Mesmo assim, a política mantém elementos problemáticos, como o alinhamento à concepção de competências instrumentais da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, reduzindo os currículos escolares ao seu caráter utilitarista e padronizado. E traz alguns pontos preocupantes, como a carga horária menor da formação geral para quem vai cursar o itinerário da formação técnico-profissional.

Assim, entre avanços e recuos, entendo que 2025 representará um momento decisivo para as escolas, no sentido de disputarem politicamente o projeto de educação, fazendo valer da sua autonomia para ressignificar conceitos e reafirmar o seu poder na construção de políticas educacionais efetivamente democráticas.

IHU – Quais os pontos negativos e positivos do Novo Ensino Médio?

Ângela Both Chagas – Na tese de doutorado que defendi em julho de 2024, argumento que o Novo Ensino Médio representa uma política do autoritarismo materializada no processo de implementação da rede estadual do Rio Grande do Sul, reduzindo a autonomia das escolas e aprofundando as desigualdades. Para isso, é preciso rememorar que essa política foi instituída a partir de uma Medida Provisória apresentada em 2016, sem diálogo com estudantes e educadores, a partir de um “diagnóstico” de crise do Ensino Médio brasileiro. A solução seria flexibilizar os currículos por meio da escolha individual dos percursos formativos.

O que constatei, depois analisar documentos e dados estatísticos e depois de mergulhar nos cotidianos de duas escolas, foi que, em vez de tornar a escola mais atraente aos estudantes com a propalada liberdade de escolha, essa reforma promoveu o esvaziamento do conhecimento escolar e sua substituição por componentes fragmentados e “sem sentido” das trilhas, como afirmaram estudantes entrevistados.

Por isso, não consigo ver pontos positivos em uma política que faz do desalento um projeto educativo, na medida em que retira da escola sua função de garantir aos estudantes a apropriação dos conhecimentos culturais e científicos fundamentais para a superação das desigualdades. Mas o projeto do autoritarismo almeja justamente isso, disciplinar as juventudes para a precariedade da vida, restringindo os espaços de construção coletiva, responsabilizando os indivíduos pelos fracassos e despolitizando a escola, reduzida ao papel de cumprir determinações impostas centralmente.

Espero que o “novíssimo Ensino Médio”, como tem sido chamada essa política aprovada em 2024, não represente mais do mesmo e que os ataques à educação enquanto um bem público sejam enfrentados com mais força em 2025.

IHU – Como será distribuída a carga horária das disciplinas tradicionais e dos itinerários formativos no Ensino Médio agora? O que mudará para os estudantes a partir de 2025?

Ângela Both Chagas – A lei de 2017 definiu um teto de 1.800 horas para a Formação Geral Básica (FGB), que compreende os componentes curriculares comuns a todos os estudantes, e 1.200 horas para os itinerários formativos, a dita parte flexível. Com a mudança na legislação em 2024, tivemos uma ampliação da FGB para um mínimo de 2.400 horas. Com isso, reduziu-se os itinerários a 600 horas. Em outras palavras, para uma escola com jornada de cinco horas diárias, a proporção da Formação Geral passou de um teto de 60% da carga horária para um mínimo de 80%. Claro que é importante fazer a ressalva que para a formação técnica-profissional, a lei abre a possibilidade de uma carga horária menor para a FGB, de no mínimo 2.100 horas.

O ano de 2025 será de transição para o novo modelo, mas aqui na rede estadual do Rio Grande do Sul tanto os estudantes que entrarão no Ensino Médio este ano quanto aqueles que já estavam cursando o “velho” Novo Ensino Médio terão a carga horária das disciplinas escolares ampliada, o que é importantíssimo tendo em vista os prejuízos para a formação dos estudantes fartamente registrados nas pesquisas científicas com a inserção dos itinerários formativos.

IHU – Como avalia a introdução dos itinerários formativos? Como professores e alunos têm avaliado essas aulas?

Ângela Both Chagas – Na pesquisa nas escolas estaduais gaúchas, todos os entrevistados, tanto estudantes quanto professores, manifestaram preocupação com o esvaziamento da formação científica, cultural e humanística decorrente da inserção dos itinerários formativos. Para exemplificar: no 2º ano do Ensino Médio, havia em 2023 três períodos para Português e Matemática, a mesma carga horária de “Empreender-se e Inovar para a Sustentabilidade”, um dos componentes curriculares entre as trilhas que compõem os itinerários. Em contraponto, apenas um período para História, Geografia, Sociologia, Química, Física, Biologia, Arte, Educação Física, Literatura, Inglês e Espanhol. Um período para Ensino Religioso; nenhum para Filosofia.

Para os estudantes, os novos componentes são “sem sentido” e “perda de tempo”. Para os professores, não há aprofundamento nas ementas dos componentes e nem formação adequada para trabalhá-los, o que, combinado com a dissociação da formação inicial desses docentes, leva ao improviso. Além disso, toda a estrutura curricular dos itinerários, por meio de trilhas e eletivas, foi construída centralmente, pela Secretaria da Educação (SEDUC-RS), sem a participação das comunidades escolares e sem a garantia de condições materiais para uma oferta diversificada.

IHU – Que avaliações os professores e alunos estão fazendo das mudanças? Quais são os argumentos favoráveis e contrários às alterações previstas a partir do próximo ano?

Ângela Both Chagas – Uma diretora que eu entrevistei antes da sanção da nova lei resumiu de uma forma muito interessante este processo de construção da nova política de Ensino Médio: “As pessoas que propuseram a mudança A estão propondo a mudança B? Então a gente continua no mesmo tabuleiro, sendo coordenados pelas mesmas pessoas”. Acredito que essa fala sintetiza um certo ceticismo em relação às mudanças, no sentido de que pessoas e instituições que estiveram muito alinhadas à construção do Novo Ensino Médio passaram a trabalhar na sua reestruturação, inclusive atuando dentro da estrutura do Ministério da Educação.

Então existe um processo de incertezas nas escolas sobre o quanto essa nova política efetivamente enfrentará os retrocessos dos últimos anos. Claro que há pontos importantes de mudança, como a ampliação da carga horária da formação comum, que é comemorada tanto por professores quanto por estudantes. Mas existe uma preocupação quanto à manutenção de uma estrutura curricular de caráter utilitarista, de preparação para o mercado de trabalho precarizado e para o treinamento para as avaliações em escala. E, ainda, da continuidade do processo de desvalorização da escola e dos seus profissionais na construção das políticas educacionais. As primeiras ações da SEDUC-RS para a implementação das mudanças a partir de 2025 já indicam a manutenção de encenações participativas, relegando às escolas o papel de execução da política decretada centralmente pela Secretaria e seus parceiros.

IHU – Uma das críticas ao Novo Ensino Médio diz respeito aos impactos na formação dos jovens. Pode explicar quais são as consequências da reforma na formação dos estudantes?

Ângela Both Chagas – Com o ingresso de uma população historicamente excluída na escola nas últimas décadas, tivemos um aprofundamento da disputa entre os sentidos do Ensino Médio. O que argumentei na pesquisa de doutorado, a partir da análise da rede estadual do RS, é que esta reforma está alinhada a uma visão de escola como treinadora de habitus neoliberal, ou seja, que esvazia os conhecimentos culturais e científicos, a fim de privilegiar o desenvolvimento de competências instrumentais e a escolha individual. Isso mostra que não é à toa que Filosofia passou a não ter mais espaço no currículo.

Com isso, o foco do Ensino Médio passa a ser o treinamento das juventudes para as avaliações em escala e a legitimação da competição com vistas a um mercado de trabalho precarizado, responsabilizando os indivíduos pelos seus fracassos. Entre as consequências dessa política está o desalento dos estudantes em relação ao futuro, já que o Novo Ensino Médio não prepara nem para a continuidade dos estudos, nem para a inserção qualificada no mundo do trabalho. Inclusive dados de uma pesquisa da própria SEDUC-RS com estudantes de todo o estado – e que obtive via Lei de Acesso à Informação porque nunca foram publicizados – indicam que a grande maioria deles não vê perspectivas futuras com o Novo Ensino Médio.

IHU – Quais desigualdades podem ser acentuadas entre os estudantes a partir do Novo Ensino Médio?

Ângela Both Chagas – Desde 2016, quando o Novo Ensino Médio (NEM) foi apresentado via Medida Provisória, pesquisadores alertavam para o aprofundamento das desigualdades, o que se efetivou com o avanço da implementação nas redes de ensino. Eu costumo falar em camadas de desigualdades educacionais, que estão ligadas às desigualdades sociais porque não podemos apartar o que acontece na escola das condições de vida, de moradia e de renda da população.

Então essas desigualdades não são apenas entre as escolas privadas que mantêm uma formação para ingresso na Educação Superior e as escolas públicas submetidas ao esvaziamento curricular do NEM. É também entre as escolas públicas, como no caso da rede estadual do Rio Grande do Sul, onde algumas instituições atuam nas brechas de autonomia para a contenção de danos e há aquelas que, diante da precarização extrema, não conseguem nem garantir o mínimo.

Aqui abro um parêntese para citar o exemplo de uma das escolas onde fiz pesquisa, na qual todos os dias estudantes entravam e saíam mais cedo por conta da falta de professores. Em uma das turmas que acompanhei, durante seis meses não houve aula de nenhum dos três componentes da trilha de Expressão Corporal por não haver docente designado pela SEDUC-RS, mesmo diante dos inúmeros pedidos feitos pela direção.

Temos, ainda, as desigualdades intraescolares, entre estudantes que conseguem mobilizar recursos para buscar em outros espaços oportunidades para a continuidade dos estudos e a inserção mais qualificada no mercado de trabalho, e os que precisam sobreviver diante das condições precárias de estudo, de trabalho e de vida.

IHU – A reforma do Ensino Médio representa uma redução da participação do Estado na educação?

Ângela Both Chagas – Um dos pontos que me chamou atenção durante a pesquisa de doutorado, principalmente ao mapear todas as notícias publicadas no site da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul, de 2019 a 2023, foi um aumento da presença de fundações e institutos ligados ao empresariado na condução da política de Ensino Médio. Cruzei essas informações com dados de convênios firmados pela SEDUC-RS e cheguei a 16 parceiros envolvidos com a implementação do Novo Ensino Médio na rede estadual do Rio Grande do Sul.

São fundações, a maioria com base em São Paulo, que trabalharam na estruturação da matriz curricular, na construção dos cadernos com as ementas das trilhas, na formação dos professores, nas estratégias de comunicação. Então o Estado transfere para essas fundações o seu papel, esvaziando o poder das instituições escolares. Temos aquilo que a professora Vera Peroni define com uma privatização da política educacional, com graves efeitos para a democracia. A legislação de 2024 não enfrenta o empresariamento da educação, pelo contrário, mantém a porteira aberta para as parcerias, por isso a importância de seguirmos acompanhando esses movimentos nas pesquisas.

IHU – No longo prazo, quais os impactos que este novo modelo de Ensino Médio pode causar?

Ângela Both Chagas – Em 2024, fechamos o primeiro ciclo de implementação do Novo Ensino Médio em todas as escolas. Ou seja: estudantes que entraram e concluíram a etapa sob a nova estrutura curricular. Em 2023, para a pesquisa de doutorado, entrevistei um estudante que foi às ruas protestar pela revogação do NEM. Ele disse que era mobilizado pelo desejo de que a irmã mais nova tivesse uma experiência diferente quando chegasse ao Ensino Médio, sem a estrutura dos itinerários formativos. Então nós não vamos recuperar a “perda de tempo” com os componentes “sem sentido” do NEM, para retomar as expressões dos estudantes entrevistados, mas podemos fazer diferente para quem está chegando na etapa. Enfrentar os impactos das desigualdades educacionais impulsionadas pelo Novo Ensino Médio requer uma política educacional que coloque centralidade na educação como um direito de todas e todos, um bem público que não pode ser apropriado pelos interesses de alguns. Os esforços até agora têm sido, no mínimo, insuficientes.

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