"A genealogia bíblica tem um valor transcendental, pois vai além do real. Ela tem um caráter de fé que coloca o judeu em relação com o outro da família, ainda que distante, e com Deus que o criou e que com ele criou laços de pertença desde a criação do mundo", escreve o Prof. Dr. Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH, mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de exegese bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), sacerdote Franciscano, autor de treze livros e coautor de quinze. Conheça o canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.
O texto que inspira a nossa reflexão é Mt 1,1-17. Trata-se da genealogia, dos antepassados de Jesus no contexto da história da Salvação, desde Abraão até Maria. Os nossos antepassados são importantes na construção de nossas relações no tempo presente. Segunda a cultura africana de matriz linguística Yoruba, de onde provém a maior parte dos nagô (negros escravizados da África Ocidental) brasileiros, a nossa existência é dividida em dois mundos: o humano, materializado, chamado de aiyê, e o transcendente, orun, onde vivem os orixás, forças universais que unem o ser humano ao cosmos, e os eguns, força que une os laços familiares à ancestralidade.[1]
A passagem de um mundo para outro é perfeita quando o funeral é bem celebrado, de modo que o ente querido possa ser integrado, de forma tranquila, ao plano da existência. Quando isso não acontece, o falecido pode continuar interferindo na vida dos vivos com os seus costumes e crenças, muitas delas negativas e inconscientes. Quais seriam essas influências dos antepassados na nossa existência? Como descobrir os laços, as vivências que se repetem nas gerações? Estamos falando de genealogia ou de psicogenealogia? Como entender Jesus nessa relação de ancestralidade?
Retomemos, portanto, a passagem de Mt 1,1-17. Nela são elencados três grupos de quatorze gerações, de Abraão até Davi, de Davi (1010 a 970 a.E.C.) até o exílio da Babilônia (597-536 a.E.C.) e do exílio até Jesus. O primeiro grupo representa a monarquia, o segundo, o cativeiro e o terceiro, a vinda definitiva do messias. Jesus, com isso, está situado em três fases importantes da história de Israel, a partir de sua ancestralidade.
Notável é o fato de o rei Davi aparecer na lista como sendo o décimo quarto, e a contagem do número corresponde às letras hebraicas do seu nome que são 14. De Davi (דוד) resulta: 4 é o ד dálet, 6 é ו vav e mais um dálet ד,= 14, o que demostra a importância de Davi na genealogia de Jesus, o messias prometido a Israel no seu reinado. Quatorze equivale a sete duas vezes. Sete é um número perfeito. Três representa o divino. Depois de três gerações de quatorze, Jesus inaugura a última geração que nos leva a Deus. Essa não passa mais, é a plenitude dos tempos.
Na lista dos antepassados de Jesus estão muitos heróis da fé, o santo e pecador rei Davi, mas também reis cruéis, bem como patriarcas, isto é, pais do povo judeu, e mulheres estrangeiras e prostituídas. Sua mãe, Maria, aparece, juntamente com mais quatro mulheres (Tamar, Rute, Raab e Bersabeia) em meio a quarenta e seis homens, sem contar os irmãos. Das quatro mulheres, duas delas, Tamar e Raab, foram mulheres prostituídas. Bersabeia teve o marido morto no front de batalha para ser possuída pelo rei Davi. Além disso, o fato de Tamar, Rute e Raab não serem judias ressalta a importância de Jesus, o messias esperado da casa de Davi, que não veio somente para judeus.
Jesus, ao ser chamado na abertura da genealogia de filho de Davi e de Abraão, recebe a chancela de Messias e judeu plenamente. A ancestralidade judaica e messiânica de Jesus é confirmada pela sua história. A figura de José também demonstra a ligação com a descendência de Davi, mesmo que não tenha sido ele a gerar Jesus. Atribuição conferida à sua esposa Maria, da qual nasceu Jesus, chamado de Cristo (Messias).
Sem sombra de dúvida, as genealogias exercem um papel importante na historiografia de formação do povo da Aliança, Israel. As genealogias formam, já no livro do Gênesis, uma rede de fios que associam as descendências às pessoas dos patriarcas e matriarcas, sobretudo, Abraão. Não poderia ser diferente no evangelho de Mateus para falar de Jesus. Abraão é o personagem que unifica, de forma inclusiva, parentes e povos, próximos e distantes, em várias ramificações genealógicas. Não em menor escala, as genealogias serviram para unir o povo de Abraão ao mundo criado por Deus e à humanidade, conforme relatos do livro de Gênesis.
Genealogia, no plural hebraico, é Tôledôt, e pode ser traduzido por descendente ou “a história de”, tem como objetivo no mundo bíblico, dentre outras coisas, unir por laços parentais, étnicos e culturais as famílias patriarcais; apresentar os legítimos herdeiros das promessas de Deus a Abraão; estabelecer os membros do povo da promessa; manter viva a memória e a identidade do povo judeu; exaltar a figura de um personagem ilustre, como Jesus.
A genealogia serviu para criar pontes entre as inúmeras histórias de fé, no passado e no presente da história, sobre o rio do esquecimento que liga a margem do hoje à margem do anteontem, como escreve SKA, ao falar da função da genealogia: [2]
É preciso construir essas pontes quando o rio do esquecimento chega a separar o hoje do ontem e do anteontem, ou seja, quando não é mais possível alcançar a margem dos próprios antepassados. A ponte começa também onde se torna indispensável encontrar o caminho para a margem do passado para autenticar ligações pessoais ou coletivas, geográficas ou políticas, ou para legitimar uma função ou uma dignidade hereditária. Há, enfim, pontes que ligam membros de famílias separadas pelo rio do esquecimento e que querem manter vivos laços étnicos, geográficos, econômicos, políticos ou simplesmente culturais.
Mateus quis demonstrar como os laços que unem Jesus ao passado de Israel fazem dele o Salvador do povo eleito. Diferente de Mateus, a comunidade Lucas (Lc 3,23-38) fez a genealogia de Jesus até Adão, tendo como objetivo ressaltar a sua humanidade.
A genealogia é um modo bíblico de firmar, no tempo da vida presente, a memória de um passado que não pode ser esquecido. Sem laços não nos tornamos eternos. Como um retrato pendurado na parede da sala, assim é a nossa árvore genealógica que nos conduz aos quartos, à cozinha de nossas vidas tecidas nas relações que se transformam em fios de eternidade. A genealogia bíblica tem um valor transcendental, pois vai além do real. Ela tem um caráter de fé que coloca o judeu em relação com o outro da família, ainda que distante, e com Deus que o criou e que com ele criou laços de pertença desde a criação do mundo.
Nenhum outro povo, na história, soube valorizar tanto as genealogias, como Israel. Essa cultura foi repassada para outros povos. Na nossa cultura pós-moderna vemos, infelizmente, a cultura dos laços familiares se perderem no emaranhado das grandes cidades, na falta de tempo para conviver, ainda que laços vazios, alimentem as redes sociais nos zaps da vida. Perder os laços familiares é o mesmo que perder a identidade. Que os nossos pais e mães na fé nos inspirem relacionamentos duradouros.
Saber entender a influência dos laços familiares em nossa vida é outro desafio não menos importante. Herdamos as dores e os problemas não resolvidos, mas também as bênçãos e as glórias de nossos antepassados. O desafio está posto. Jesus soube muito bem ouvir o passado de seu povo e propor novos relacionamentos, ressignificar a história. E nós? E você? Pare, pense e reflita!
[1] FARIA, Jacir de Freitas. O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019. p. 204-205.
[2] SKA, J.-L. O canteiro do Pentateuco: problemas de composição e interpretação – aspectos literários e teológicos. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 77.
FARIA, Jacir de Freitas. O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019.
FARIA, Jacir de Freitas. Genealogias em Gênesis: fios que se entrelaçam na historiografia de Israel a partir de Abraão. ReBiblica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 210-226, jul./dez. 2021
SKA, J.-L. O canteiro do Pentateuco: problemas de composição e interpretação – aspectos literários e teológicos. São Paulo: Paulinas, 2016.