12 Novembro 2024
Projeto de lei visa garantir a prática da aviação agrícola no RS, apesar das preocupações ambientais e de saúde
A reportagem é de Yasmmin Ferreira, publicada por Sul21, 11-11-2024.
Na última quinta (31), a Comissão de Agricultura, Pesca e Cooperativismo da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou, por 8 votos a 1, o parecer favorável ao Projeto de Lei 442/23, que reconhece a aviação agrícola como atividade de relevante interesse social, público e econômico no estado. O projeto responde a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que delegou às unidades federativas a responsabilidade de legislar sobre o uso da ferramenta aérea. De autoria do deputado Marcus Vinícius de Almeida (Progressistas) e com o apoio de 23 coautores, o texto do PL garante a prática da aviação agrícola, respeitando as normas regulatórias vigentes, e segue agora para votação em plenário.
O deputado alega que a medida é essencial para proteger o agronegócio gaúcho e garantir a segurança alimentar, descrevendo o projeto como um “antídoto indispensável” para a agricultura de precisão e a produção de alimentos. No entanto, essa proposta, que promete liberar o uso de uma frota de 419 aeronaves no estado – equivalente a 17,23% da frota nacional –, levanta preocupações.
Há exatos quatro anos, o Assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, na região Metropolitana de Porto Alegre, sofreu perdas significativas em sua produção agroecológica devido à pulverização de agrotóxicos nas lavouras vizinhas. Nos dias 11 e 12 de 2020, cerca de 20 das 100 famílias residentes do local perderam colheitas de alimentos orgânicos após um avião pulverizar insumos químicos sobre suas hortas, aquíferos e áreas de vegetação nativa. Além das perdas na produção, moradores relataram sintomas de intoxicação.
As famílias denunciaram o caso aos órgãos competentes, incluindo a Polícia Civil e diversas secretarias municipais, e exigiram investigação, reparação de danos e uma legislação ambiental mais rigorosa. Em reuniões posteriores com autoridades locais, os assentados cobraram políticas públicas para produtores orgânicos e o fim da pulverização aérea no município.
Pedro Francisco, um dos moradores do assentamento, expressou ao Sul21, em entrevista, uma preocupação profunda com as consequências da legalização da pulverização de agrotóxicos. O assentado afirma que ele e sua comunidade, que trabalham com hortas orgânicas e produção de arroz, estão sofrendo desde que foram atingidos pela deriva – quando os agrotóxicos se espalham para áreas próximas, afetando a saúde e a segurança de agricultores e consumidores – de veneno, quatro anos atrás. Apesar de terem comprovado os danos através de testes laboratoriais, ainda não receberam compensação, e o processo judicial está avançando lentamente.
“Essa semana faz aniversário de quatro anos que a gente sofreu uma deriva de agrotóxicos feita por aviação agrícola, por pulverização aérea de agrotóxico nas granjas vizinhas e no assentamento, né? E nós não estamos comemorando; estamos tristes, lamentando, porque é uma situação criminosa do ponto de vista das comunidades como a nossa, que produzem alimentos e cumprem uma função social da terra, mas são atingidas por uma chuva de veneno. Passam-se quatro anos e a gente não tem nenhum ressarcimento”, pontua Francisco. Em complemento, menciona que os membros da região de Nova Santa Rita sofrem assédio constante dos “agros”. “As famílias sofrem assédio permanente, ameaças que não são veladas. É uma situação de desconforto”, afirma.
Francisco também critica a forma como os agrotóxicos são utilizados indiscriminadamente, afetando a saúde pública e o meio ambiente, e denuncia que essa prática coloca em risco a vida das comunidades que produzem alimentos de forma agroecológica. “Quantas crianças estão com problemas de patologias, problemas esses relacionados aos intensivos de agrotóxicos que vão para os alimentos, que vão para as águas, que depois chegam na mesa da grande população e geram um problema de saúde pública imenso? O que, principalmente, envolve a questão das águas… Não podemos aceitar que usem agrotóxicos ou venenos com aviação agrícola. Esses venenos, boa parte deles, caem no solo, boa parte vai para o ar e depois cai nos rios. Esses rios vão abastecer a população. […] Isso é criminoso. […] Ficar jogando veneno aí para matar os animais, as árvores…”, diz.
Para o assentado, as comunidades deveriam possuir o direito de escolher sua forma de trabalho e produção, sem ser forçadas a seguir os métodos convencionais que dependem de veneno e aviação agrícola. Para ele, “nós (moradores do assentamento) queremos ter o direito de escolher a forma de trabalhar, de organizar o nosso trabalho, de organizar nossa renda… Uma forma de gerar renda nas pequenas propriedades, né? A maneira de se alimentar… Tu vê, a sociedade não pode querer padronizar o alimento que chega na mesa da população brasileira. Mas, sinceramente, na mesa dos camponeses, os camponeses sempre produziram comida, e é um direito deles escolher a forma de produzir seu próprio alimento”.
Desde 2020, diversas pulverizações aéreas de agrotóxicos têm sido realizadas em fazendas vizinhas ao Assentamento Santa Rita de Cássia II, afetando diretamente os moradores. Em nota recente, uma família do local relatou que, em 23 de outubro de 2024, uma pulverização ocorreu das 10h até as 18h, com um forte odor químico sentido ao longo do dia. Após o meio-dia, a temperatura ultrapassou 30°C, e ventos de aproximadamente 25 km/h direcionaram os produtos tóxicos para o assentamento, afetando áreas de moradia e preservação. A família destacou que o avião realizava manobras rasantes, passando diretamente sobre os espaços habitados, o que contraria as regulamentações da ANAC sobre distâncias de segurança para áreas povoadas.
A nota também ressaltou os impactos recorrentes dessas práticas na saúde, nos cultivos e na renda dos moradores, que enfrentam sintomas de intoxicação e a perda de quase toda a produção. “Ficamos no aguardo de medidas que sejam realmente eficazes”, menciona a família. Desde então, a situação foi denunciada diversas vezes, mas sem resultados concretos. Ainda, os membros da comunidade relatam uma falta de fiscalização efetiva das autoridades estaduais e federais, já que as pulverizações continuam a ocorrer em condições climáticas inadequadas e em horários impróprios, aumentando os riscos para a comunidade.
A família que encaminhou a nota, representando outros moradores do assentamento, solicitou medidas urgentes que garantam o direito à saúde e a um ambiente seguro, além de ações legais que possam assegurar ressarcimento pelas perdas sofridas e uma fiscalização rigorosa para evitar que tais incidentes se repitam.
Emiliano Maldonado, advogado popular e professor de Direito na UFRGS, ao abordar o PL 442 de 2023, esclarece que essa proposta levanta alertas significativos. “Esse PL, na nossa avaliação, é inconstitucional, pois fere esse princípio de vedação de retrocesso em matéria ambiental e também por desvirtuar o conceito de relevante interesse social, a fim de gerar simbolicamente uma defesa dessa atividade que deveria ser abandonada no Rio Grande do Sul, tendo em vista que hoje já existem outros tipos de técnicas que não contaminam tanto o ar, a água ou o solo e que não geram os problemas decorrentes da deriva”, explica.
Além disso, o professor lembra que, há quatro anos: “(ocorreu) um dos principais episódios de contaminação provocados por esse tipo de prática, em novembro de 2020, quando vários agricultores agroecológicos dos assentamentos da reforma agrária da região metropolitana sofreram com a contaminação e pela deriva de agrotóxicos”. Assim, vê como preocupante o fato de a Assembleia Legislativa estar votando esse projeto exatamente neste período. Segundo ele, a aprovação dessa proposta vai contra o papel do órgão, que “deveria proteger o meio ambiente, a saúde pública e os produtores que fornecem alimentos saudáveis à população rio-grandense”.
Adicionalmente, Francisco aponta o uso excessivo e indiscriminado de agrotóxicos no Brasil, ressaltando que muitos dos produtos vendidos no país são banidos na União Europeia, o que o leva a questionar por que esses produtos, que apresentam riscos à saúde e ao meio ambiente, ainda são permitidos. Conforme o morador, o país é um “depósito de lixo” para multinacionais que despejam substâncias poluentes, e a aceitação social dessa prática é absurda. “Os agrotóxicos não deveriam, muitos deles ou na totalidade, ser permitidos. […] Oque acontece é que a gente, como sociedade, aceita”, conclui.
Ele também aponta que, diante dos desafios ambientais como o aquecimento global, queimadas, enchentes e secas, o país precisa rever suas práticas políticas, econômicas e de trabalho. Porém, essa mudança requer apoio governamental e um fortalecimento das práticas culturais e educativas nas comunidades.
Da mesma forma, Francisco critica a proposta de regulamentação da aviação agrícola defendida por alguns deputados, que, segundo ele, aumentaria o uso de agrotóxicos no solo brasileiro. Esse modelo, argumenta, visa atender ao interesse de exportação de “commodities” em vez de garantir alimentos de qualidade para o país, e ainda aprofunda a pobreza no campo. “Precisamos do apoio de todos aqueles que defendem um projeto de sociedade que valoriza a vida para repudiar essa forma de fazer política baseada essencialmente no lucro de meia dúzia de empresas e de grandes proprietários de terra”, finaliza.
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RS. Quatro anos após contaminação em assentamento, PL que regula aviação agrícola pode ir a voto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU