Empresas-plataforma: o Brasil na retaguarda. Artigo de Renan Bernardi Kalil

13 Setembro 2024

Espalham-se, por todo o mundo, leis e jurisprudências que garantem direitos trabalhistas e impõem deveres às corporações. Aqui, um lobby poderoso bloqueia avanços e contamina governo e Congresso, com argumentos insustentáveis.

O artigo é de Renan Bernardi Kalil [1], doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e procurador do Trabalho, publicado por Outras Palavras, 11-09-2024.

Eis o artigo.

Este texto é uma síntese do artigo – com o mesmo nome – publicado no livro Um horizonte de lutas para a autogestão: o trabalho organizado por plataforma digital, organizado por Ricardo Toledo Neder e Flávio Chedid Henriques. O grande mérito dessa obra é o empenho coletivo para se pensar em um outro mundo do trabalho no contexto da disseminação das plataformas digitais. Nossa contribuição se soma a esse esforço, colocando em discussão a necessidade em se garantir direitos mínimos aos trabalhadores. Esse tema adquire centralidade em tempos de debates sobre o PLP 12/2024 e importância de não aceitarmos qualquer regulação que trate motoristas e entregadores como trabalhadores de segunda categoria.

Em julho de 2020, milhares de entregadores via plataformas digitais foram às ruas de diversas cidades do Brasil para reivindicar melhores condições de trabalho. A manifestação, que chamou atenção de toda a sociedade pela dimensão que tomou, evidenciou uma contradição: os trabalhadores foram vistos como essenciais durante a pandemia – especialmente para evitar a circulação de pessoas e para permitir o isolamento social –, mas são considerados autônomos pelas plataformas digitais, o que não lhes garante nenhum direito.

As manifestações contribuíram para lançar perante a opinião pública um debate que, até então, estava circunscrito aos meios universitário, judicial e de alguns grupos de trabalhadores: Como deve ocorrer a regulação do trabalho via plataformas digitais?

Preliminarmente, fazemos duas considerações. Em primeiro lugar, ressaltamos a centralidade do direito do trabalho em qualquer debate sobre o estabelecimento de regras no trabalho via plataformas digitais. Essa área do direito é uma evolução na regulação do trabalho, pois é produto da superação da aplicação de institutos civilistas e penais nas relações de trabalho no século XIX e início do século XX, bem como da ficção jurídica da igualdade e da liberdade entre trabalhador e empresário. O direito do trabalho foi concebido para apresentar respostas à desigualdade econômica entre as partes do contrato de trabalho, estabelecendo disposições para corrigir essa assimetria e para compensá-la por meio da proteção jurídica ao trabalhador. Considerando que não houve alteração no cerne da forma pela qual ocorre a exploração do trabalho humano pelas empresas proprietárias de plataformas digitais, não há razões para afastar as intervenções do direito do trabalho nos debates regulatórios.

Em segundo lugar, é necessário reconhecer que o trabalho via plataformas digitais vai além do de motoristas e entregadores, sendo encontrado em diferentes setores e sob outras formas. Uma de suas expressões, ainda pouco conhecida no Brasil, é o crowdwork (Kalil, 2020) [2]. Ter isso em vista é fundamental para que as tentativas de regulação contemplem as realidades de todos os trabalhadores. Contudo, dadas as limitações deste texto e o maior destaque que motoristas e entregadores tiveram em 2020, centraremos esta análise nesses grupos de trabalhadores.

Neste ensaio, analisaremos como se caracterizam as atividades econômicas desenvolvidas pelas empresas proprietárias de plataformas digitais, examinaremos as deficiências do debate brasileiro e como o resto do mundo está tratando o tema. Ao final, faremos alguns apontamentos acerca dos caminhos que podem ser trilhados.

Uma caracterização em disputa

Para debater em que termos deve ocorrer a regulação do trabalho via plataformas digitais, é preciso um mínimo de consenso sobre o que são essas plataformas. E é já aqui que começam as dificuldades.

A primeira divergência está na caracterização das empresas proprietárias das plataformas digitais. Elas constroem uma narrativa que as coloca como empresas de tecnologia, segundo a qual elas funcionariam meramente como um instrumento de combinação entre oferta e demanda de mão de obra. Essas empresas se referem aos motoristas e entregadores de diversas formas como “parceiros” ou “empreendedores”, sempre evitando chamá-los pelo o que de fato são: trabalhadores. Assim, esvaziam o conteúdo laboral das atividades que realizam.

Contudo, a realidade é outra. Adotar meios tecnológicos sofisticados não as torna empresas de tecnologia. Devemos olhar para a substância do que elas realmente fazem, que é o transporte de passageiros e entregas. Ninguém é cliente da Uber ou do iFood porque busca uma solução tecnológica, mas porque precisa fazer uma viagem de carro ou receber um produto. Caso contrário, qualquer empresa que adote inovações tecnológicas avançadas em seu processo produtivo se transformará automaticamente em uma organização do setor de tecnologia.

A segunda divergência está na compreensão da dinâmica do trabalho. As empresas afirmam que os trabalhadores possuem a liberdade de gerenciar seus horários e de administrar seus ganhos, enquanto elas apenas combinam os pedidos de viagens ou entregas de seus clientes à disponibilidade dos trabalhadores cadastrados nas plataformas digitais. Dizem ainda que o código de conduta, o sistema de avaliação dos trabalhadores e as regras estabelecidas para a realização do trabalho não passariam de medidas para assegurar a qualidade e confiabilidade dos serviços – o que seria de interesse de todos os envolvidos nessa relação.

Contudo, mais uma vez, os fatos se sobrepõem ao marketing. As empresas têm amplo controle sobre o trabalho realizado. Esse controle é viabilizado pela administração da mão de obra por meio dos algoritmos.[3] Há a automação de atividades anteriormente atribuídas a gerentes, encarregados, contadores, atendentes e trabalhadores do setor de recursos humanos, a partir de informações extraídas dos trabalhadores diretamente pelas plataformas digitais e por meio do feedback de seus clientes. A programação algorítmica permite distribuir as atividades entre os trabalhadores, fixar o valor do trabalho, indicar o tempo para a realização de uma tarefa e a duração das pausas, determinar como o serviço deve ser feito, avaliar os trabalhadores e aplicar sanções. É o que se chama de gerenciamento algorítmico.

O sistema de avaliações é um dos instrumentos que viabiliza a organização do negócio. Parcela das empresas permite que seus clientes deem notas para os trabalhadores ao término da execução da tarefa, sendo que essa avaliação leva em conta a expectativa gerada pela empresa acerca da forma da prestação do serviço – o que, por sua vez, influi na distribuição de trabalho e na permanência na empresa. Ter uma média de avaliação muito elevada (acima de 96%) assegura o recebimento preferencial de atividades em determinadas localidades. Ademais, para que seja possível continuar trabalhando para a empresa, os trabalhadores devem manter uma média alta (geralmente acima de 90%). Obter uma média inferior ao patamar estabelecido pela empresa acarreta a aplicação de punições, que vão desde a suspensão até a exclusão definitiva (ou seja, a dispensa).

A análise da flexibilidade dos horários deve considerar fatores estruturais do trabalho via plataformas digitais, como a dependência econômica dos trabalhadores. Quanto maior a necessidade de realizar atividades para as plataformas para sobreviver, menor a liberdade de determinar a jornada de trabalho. Em pesquisa realizada com motoristas da Uber na cidade de São Paulo, identificou-se que 77,5% dependiam economicamente da empresa. Desse grupo, todos trabalhavam mais de 40 horas semanais, 75% trabalhavam ao menos seis dias na semana [4], e um terço trabalhava mais de 60 horas semanais (Kalil, 2020)5. Estudo desenvolvido por pesquisadores da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir) com entregadores durante a pandemia apontou que a maioria trabalhava mais de nove horas diárias, sete dias por semana. Ou seja, para muitos trabalhadores, essa liberdade se resume tão somente a escolher quando começar uma longa jornada de trabalho.

Além disso, algumas empresas, especialmente no setor de entregas, estabelecem sistemas de pontuação que determinam a frequência, as áreas e os horários em que os trabalhadores podem realizar entregas. A acumulação de pontos ocorre a partir de critérios definidos pelas empresas, como a quantidade de ofertas de trabalho aceitas. Nesses casos, a liberdade para escolher os horários de trabalho fica condicionada ao cumprimento das regras da empresa e a trabalhar demasiadamente, uma vez que fazer muitas entregas gera uma maior pontuação.

Os problemas do debate brasileiro

Parte das análises sobre a dinâmica do trabalho via plataformas digitais no setor de transporte de passageiros e de entregas no Brasil, especialmente no Poder Judiciário, centra-se excessivamente nos fatores que a empresa não controla – que são, basicamente, alguns aspectos da jornada de trabalho – e na documentação escrita – produzida unilateralmente pelas empresas –, sendo os termos de condições de uso a mais utilizada.

Além disso, aceita-se nas discussões sobre o tema, acriticamente, muitos elementos da narrativa construída pelas plataformas: elas seriam empresas de tecnologia que ofereceriam trabalho em um cenário de desemprego elevado, assegurando fontes complementares de renda para diversos trabalhadores. As regras estabelecidas a eles, assim, não passariam de mecanismos de conveniência para passageiros e motoristas.

Se este texto fosse escrito em 2014, ano em que a Uber chegou ao Brasil e pouco se conhecia a respeito do funcionamento das plataformas digitais, aceitar esses argumentos seria compreensível. Uma década depois, porém, com diversas pesquisas jurídicas e sociológicas demonstrando que a realidade é bem distinta da narrativa empresarial, aderir integralmente a suas premissas promove uma visão fictícia do trabalho via plataformas digitais e afasta o país da tendência mundial de proteger esses trabalhadores.

Há diversos estudos, nacionais e internacionais, demonstrando a relação direta entre dependência e precariedade. Eles indicam as distintas formas de controle dos trabalhadores (Prassl, 2018) [6], o gerenciamento algorítmico (Amorim; Moda, 2020; Rosenblat, 2018) [7], o déficit de trabalho decente nas plataformas (Fairwork, 2024) [8], as nuances na flexibilidade da jornada de trabalho e a acentuada assimetria de poderes entre trabalhadores e empresas (Kalil, 2020a) [9], atestando, de fato, que quanto mais dependentes são os trabalhadores da empresa para sobreviver, maior é a precariedade de suas condições de trabalho (Kalil, 2020; Schor, 2020) [10]. Ou seja: já existe um suporte científico, embasado e robusto, que aponta para um mundo no qual os trabalhadores estão sujeitos à intensa exploração por essas empresas.

Além de ignorar todos esses estudos, a Jutiça brasileira se restringe às tentativas de produzir provas do gerenciamento algorítmico nos processos judiciais. Em maio de 2021, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) suspendeu a realização de uma perícia no algoritmo de uma empresa proprietária de plataforma digital. Argumentou que tal medida poderia “trazer à tona informações sigilosas”, que podem ser resguardadas pelo próprio Poder Judiciário, além de não ser necessária para examinar a existência ou não da relação de emprego entre motorista e a empresa, sem a devida fundamentação sobre essa desnecessidade (BRASIL, 2021, p. 6) [11].

Nesse sentido, nota-se que parte dos posicionamentos assumidos no debate trabalhista sobre o trabalho via plataformas digitais no Brasil opera sob a racionalidade que impulsionou a Reforma Trabalhista de 2017 (Krein; Colombi, 2019) [12], especialmente no que se refere à flexibilização das modalidades de contratação, da jornada de trabalho e da remuneração, e à individualização dos riscos – o que reduz os custos para os empregadores e aumenta a insegurança para os trabalhadores.

Um olhar para fora

A lógica de operação das empresas proprietárias de plataformas digitais nos setores de transporte de passageiros e de entregas, ainda que cada uma delas tenha suas particularidades, compartilha os mesmos pressupostos de funcionamento. Considerando que diversas empresas atuam em vários países, é relevante saber como o tema é tratado em outros lugares.

Tribunais superiores decidiram pela aplicação da legislação trabalhista às relações entre motoristas e entregadores e plataformas digitais no estado da Califórnia (nos Estados Unidos), no Chile, na Espanha, na França, na Holanda, na Itália, no Reino Unido e no Uruguai [13]. Chama atenção o fato de que as decisões em alguns desses países influenciaram positivamente a conjuntura para os trabalhadores para além do debate judicial, como veremos a seguir.

Em 2018, a Suprema Corte estadual da Califórnia, alterou seu entendimento sobre a caracterização da relação de emprego, adotando o chamado teste ABC. A partir desse novo critério, para o trabalhador ser considerado autônomo, é necessário que ele: (a) não esteja sob direção ou controle do contratante, do ponto de vista seja formal, seja material; (b) não desempenhe atividade inserida no negócio principal da empresa contratante; e (c) realize, de forma independente, atividades para as quais é contratado. A prestação de trabalho em troca de remuneração que não atenda simultaneamente a esses três requisitos passou, então, a ser considerada uma relação de emprego (Califórnia, 2018) [14].

No ano seguinte, o Legislativo californiano promoveu uma alteração no Código de Trabalho estadual para incorporar o teste ABC no texto legal, aprovando o chamado Assembly Bill No. 5 (AB 5). O AB 5 entrou em vigor em 2020, o que demandava que empresas proprietárias de plataformas digitais do setor de transporte de passageiros, como a Uber, passassem a classificar seus motoristas como empregados (Califórnia, 2019) [15]. Mas eles não fizeram isso e os mantiveram como autônomos. O estado da Califórnia, então, ajuizou uma ação para obrigá-las a respeitar a nova regulação e, em agosto de 2020, a Suprema Corte estadual determinou que os motoristas eram empregados (Roth; Chapman; Eidelson, 2020) [16].

Na Espanha, o Tribunal Supremo decidiu, em setembro de 2020, que a relação entre entregadores e a Glovo (uma empresa proprietária de plataforma digital) é de emprego. Na sentença, os magistrados apontaram os seguintes elementos: nessa atividade econômica, as plataformas digitais – e não as motos ou os telefones celulares – são os meios de produção; as avaliações dos trabalhadores são uma forma de controle e vigilância; a empresa atua no setor de entregas; as decisões comerciais, o valor do serviço oferecido, os métodos de pagamento e a remuneração dos entregadores são definidos unilateralmente pela empresa, de modo que os trabalhadores não possuem autonomia para definir os aspectos relevantes da atividade, enquanto a empresa detém o poder de direção e de organização (Espanha, 2020) [17].

A decisão do Tribunal Supremo influenciou a atividade legislativa na Espanha. Em outubro de 2020, foi criada uma mesa de diálogo tripartite com representantes de trabalhadores, empregadores e governamentais para debater como garantir direitos trabalhistas aos entregadores via plataformas digitais. O resultado foi a promulgação do Real Decreto-lei 9/2021, que estabelece a presunção de laboralidade no âmbito das plataformas digitais de entrega e, em relação à representação dos trabalhadores, o direito de ser informada sobre os parâmetros, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos e que afetam as decisões que influenciam as condições de trabalho, incluindo o ingresso e a continuidade na empresa (Espanha, 2021) [18].

No Reino Unido, em fevereiro de 2021, a Suprema Corte confirmou as decisões dos tribunais trabalhistas que classificaram os motoristas da Uber como “workers” – uma figura intermediária entre empregados e autônomos, em que se garantem alguns direitos, como o salário mínimo, férias e regras sobre jornada de trabalho (Reino Unido, 2021) [19]. Os magistrados britânicos ressaltaram ainda que a empresa controla e determina de maneira rígida como o trabalho deve ser realizado pelos motoristas [20].

Três meses após essa decisão, a Uber aceitou negociar com o sindicato GMB Union, garantindo-lhe acesso aos pontos de encontro dos motoristas e possibilidade de intervir em casos nos quais os trabalhadores são suspensos ou dispensados (Butler, 2021) [21]. Isso seria impensável um ano antes, considerando a postura da empresa em se recusar a tratar diretamente com entidades sindicais. A sentença da Suprema Corte e a mobilização coletiva dos trabalhadores ingleses foram decisivas para mudar esse cenário no Reino Unido.

Na Itália, em janeiro de 2020, a Corte Suprema di Cassazione decidiu que o trabalho dos entregadores da Foodora é organizado por outra parte (no caso, pela empresa proprietária da plataforma digital), o que configura o trabalho hetero-organizado. A corte entendeu que esse tipo de trabalho deve ter as mesmas proteções do trabalho subordinado (De Stefano et al., 2021) [22]. Com base nesse entendimento, em fevereiro de 2021, a inspeção do trabalho junto a promotores de Milão determinaram que as maiores plataformas digitais devem respeitar a legislação trabalhista em suas relações com os entregadores, e impuseram uma multa de 733 milhões de euros (Cater, 2021) [23].

No início de 2021, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou seu relatório anual sobre perspectivas sociais e de emprego no mundo, desta vez dedicado ao papel das plataformas digitais nas transformações no mundo do trabalho. Segundo a OIT, os países adotam quatro abordagens para classificar os trabalhadores. A primeira é a de considerá-los empregados, como ocorre na Espanha e França. A segunda é a de classificá-los em categorias intermediárias, como se dá no Reino Unido. A terceira é a de enquadrá-los como uma figura intermediária “de fato”, em que eles podem ser considerados empregados para fins previdenciários, mas não trabalhistas, como se verifica na China. A quarta é a de identificá-los como autônomos – e sem direitos – pelo fato de poderem estabelecer seus horários, mencionando como exemplos a Austrália e o Brasil (OIT, 2021) [24].

Para onde ir?

A legislação brasileira oferece instrumentos para assegurar direitos mínimos aos trabalhadores via plataformas digitais nos setores de transporte de passageiros e de entrega. Os requisitos para caracterizar a relação de emprego no Brasil – pessoal natural, pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação – são detectados na grande maioria dos casos. Especificamente em relação à subordinação, uma alteração promovida na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 2011 não deixa dúvidas: “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio” (art. 6º, § único).

O fato de os motoristas e entregadores trabalharem para mais de uma empresa não é um obstáculo para a aplicação da legislação trabalhista. A exclusividade não é uma condição para a existência do vínculo empregatício. No Brasil, prestar serviços para mais de um empregador é uma realidade comum a diversas profissões, como vigilantes, profissionais da saúde e professores. Isso jamais impediu que fossem reconhecidos como empregados. A mesma regra deve valer para motoristas e entregadores.

O Poder Judiciário tem um papel central em assegurar a proteção desses trabalhadores. É necessário superar a narrativa das empresas, fazer valer a primazia da realidade – um dos princípios mais importantes do direito do trabalho – e desvelar o conteúdo do trabalho via plataformas digitais para compreender adequadamente sua dinâmica e proteger os motoristas e entregadores. Decisões judiciais determinando a aplicação da lei trabalhista nesses casos tiveram efeitos positivos em vários países, contribuindo para desenvolver a legislação, promover a ação coletiva e apoiar a atuação de outros órgãos do sistema público trabalhista.

No Brasil, a aplicação da legislação trabalhista, na forma existente, deve ser o ponto de partida, e não o de chegada. A Reforma Trabalhista de 2017 trouxe mecanismos de precarização do trabalho, como a introdução do contrato intermitente e a ampliação da terceirização. É necessário conceber propostas para aprimorar a proteção dos trabalhadores das plataformas digitais, especialmente a partir de suas demandas – como a portabilidade das avaliações entre as plataformas, o direito ao contraditório em casos de avaliações ruins ou reclamações de clientes, a transparência dos sistemas de avaliação e do funcionamento dos algoritmos, a remuneração dinâmica para os casos em que não se garante um mínimo de trabalho por mês, entre outras. É fundamental que eventuais alterações legislativas ocorram sob as premissas do direito do trabalho, considerando a notória desigualdade entre o trabalhador e a plataforma digital, bem como o papel que essa área do direito desempenha nessas situações.

Finalmente, é primordial inserir os trabalhadores no centro desse debate. Primeiro, porque escutar os sujeitos que vivem a experiência diária da atividade é de grande importância para entender como determinado trabalho ocorre. Segundo, porque qualquer modificação da lei deve ter como pressuposto ouvir os principais afetados pela mudança. Por fim, porque os períodos em que os direitos trabalhistas no Brasil tiveram maior efetividade foram justamente os períodos em que o movimento sindical lutou pela aplicação da legislação. Garantir voz aos atores mais importantes dessa discussão é a única forma de responder aos anseios daqueles que atualmente não possuem nenhuma proteção social.

Notas

[1] - Renan Bernardi Kalil fez doutorado, mestrado e graduação em direito pela Universidade de São Paulo (USP). É procurador do Trabalho no Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP) e atualmente está como Coordenador Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho. É professor de direito no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

[2] - KALIL, R.B. A regulação do trabalho via plataformas digitais. São Paulo: Blucher, 2020.

[3] - Algoritmos são conjuntos de etapas de um processo cujo objetivo é a solução de um problema ou a execução de uma tarefa. O caminho percorrido pelo algoritmo para desempenhar sua função é registrado para possibilitar a repetição e para instruir outras pessoas ou máquinas na realização da tarefa. A definição do conteúdo das etapas ocorre a partir de decisões tomadas pelo ser humano responsável pela programação e leva em consideração as condições materiais que informam sua criação.

[4] - A folga geralmente ocorria no dia de rodízio do veículo próprio do trabalhador na cidade de São Paulo.

[6] - KALIL, op. cit.

[6] - PRASSL, J. Humans as a service: the promise and perils of work in the gig economy. Oxford, UK: Oxford University Press, 2018.

[7] - AMORIM, H.; MODA, F.B. Trabalho por aplicativo: gerenciamento algorítmico e condições de trabalho dos motoristas da Uber. Revista Fronteiras, v. 22, n. 1, 2020. doi.org/10.4013/fem.2020.221.06; ROSENBLAT, A. Uberland: how algorithms are rewriting the rules of work. Berkeley: University of California Press, 2018.

[8] - FAIRWORK. Fairwork. Oxford, UK: Oxford Internet Institute, University of Oxford, 2024. Disponível aqui.

[9] - KALIL, op. cit.

[10] - KALIL, op. cit.; SCHOR, J. After the gig: how the sharing economy got hijacked and how to win it back. Berkeley, CA: University of California Press, 2020.

[11] - BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Tutela Cautelar Antecedente 1000825-67.2021.5.00.0000. Requerente: Uber do Brasil Tecnologia Ltda. Requerido: Juízo da 80ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro-RJ. Relator: Des. Douglas Alencar Rodrigues. Brasília, 28 mai.2021. Disponível aqui

[12] - KREIN, J.D.; COLOMBI, A.P.F. A reforma trabalhista em foco: desconstrução da proteção social em tempos de neoliberalismo autoritário. Educação & Sociedade, v. 40, p. e0223441, 2019. Disponível aqui.

[13] - Para saber mais sobre essas decisões, ver: FRANÇA. Cour de cassation, civile, Chambre sociale. N° de pourvoi : 19-13.316. ECLI:FR:CCASS:2020:SO00374. Décision attaquée : Cour d’appel de Paris, du 10 janvier 2019. 1°/ la société Uber France; 2°/ la société Uber BV. Président : M. Cathala. Solution : Rejet. Légifrance, Paris, 4 mar.2020. Disponível aqui ; HOLANDA. Gerechtshof Amsterdam. Arrest van de meervoudige burgerlijke kamer van 16 februari 2021. Verklaring voor recht; vordering art. 3:305a BW. Op basis van alle omstandigheden van het geval kwalificeert de overeenkomst van de maaltijdbezorgers met Deliveroo als arbeidsovereenkomst. Rechtspraak: Uitspraken, Zaaknummer 200.261.051/01, Amsterdam, 16 fev.2021. Disponível aqui ; LEÓN, C. Corte de Concepción da espaldarazo a exrepartidor de PedidosYa y recalca la existencia de un vínculo laboral. Diario Financiero, Santiago, Chile,16 jan.2021. Disponível em aqui; CARLI, F.R. Fin del partido. Uruguay: los choferes de Uber son trabajadores dependientes (TAT de 1º turno, sentencia nº 111/2020, 03.06.2020). Opinión y Crítica sobre el Derecho del Trabajo, 4 jun.2020. Disponível aqui.

[14] - CALIFÓRNIA. Supreme Court of California. Dynamex Operations West, Inc. v. Superior Court of Los Angeles County, Opinion No. S222732. Justia: Supreme Court of California Decisions, San Francisco, CA, 30 abr.2018. Disponível aqui.

[15] - CALIFÓRNIA. Legislative Counsel. Assembly Bill No. 5. An act to amend Section 3351 of, and to add Section 2750.3 to, the Labor Code, and to amend Sections 606.5 and 621 of the Unemployment Insurance Code, relating to employment, and making an appropriation therefor. California Legislative Information: AB-5 Worker status: employees and independent contractors, Sacramento, CA, 19 set. 2019. Disponível aqui

[16] - ROTH, C.; CHAPMAN, L.; EIDELSON, J. California wins preliminary injunction against Uber, Lyft. Bloomberg, 10 ago.2020. Disponível aqui. Contudo, as empresas proprietárias de plataformas digitais de transporte de passageiros apresentaram ao Poder Público uma proposta alternativa, a Proposition 22, que excluía a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício dos motoristas com as empresas-plataforma prevista na lei californiana. Mas admitia alguns direitos, como salário mínimo e auxílio-saúde. Após elas investirem mais de 200 milhões de dólares na campanha, enquanto seus oponentes gastaram menos de 10% desse valor, a Proposition 22 foi à votação em novembro de 2020, juntamente com as eleições presidenciais, e acabou sendo aprovada. A Proposition 22 teve a sua constitucionalidade questionada e está sub judice pela Supreme Court estadual da Califórnia. (CONGER, K. Uber and Lyft drivers in California will remain contractors. The New York Times, 4 nov.2020. Disponível aqui.

[17] - ESPANHA. Consejo General del Poder Judicial. Comunicación del Poder Judicial. El Tribunal Supremo declara la existencia de la relación laboral entre Glovo y un repartidor. Madri, 23 set.2020. Disponível aqui.

[18] - ESPANHA. Real Decreto-ley 9/2021, de 11 de mayo, por el que se modifica el texto refundido de la Ley del Estatuto de los Trabajadores, aprobado por el Real Decreto Legislativo 2/2015, de 23 de octubre, para garantizar los derechos laborales de las personas dedicadas al reparto en el ámbito de plataformas digitales. Boletín Oficial del Estado: Madrid, n. 113, p. 56733-56738, 12 mai.2021. Disponível aqui.

[19] - REINO UNIDO. The Supreme Court. Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). Judicial Committee of the Privy Council: Case details, Case ID: UKSC 2019/0029, London, 19 fev.2021. Disponível aqui.

[20] - Explicamos o teor da decisão inglesa em: KALIL, R.B. A condenação da Uber no Reino Unido, a OIT e a situação no Brasil. Carta Capital, 9 mar.2021. Disponível aqui.

[21] - BUTLER, S. Uber agrees union recognition deal with GMB. The Guardian, 26 mai.2021. Disponível aqui.

[22] - DE STEFANO, V. et alPlatform work and the employment relationship. ILO Working Paper No. 27. Genebra: OIT, 2021. Disponível aqui

[23] - CATER, L. Italy demands € 733M in fines from food delivery platforms. Politico, 25 fev.2021. Disponível aqui.

[24] - OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. World employment and social outlook 2021: the role of digital labour platforms in transforming the world of work. Genebra: OIT, 2021. Disponível aqui.

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